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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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7º Porto Femme: em Abril ser Mulher é continuar na Luta

Hugo Gomes, 18.04.24

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Sew to Say (Rakel Aguirre, 2023)

Abril, Águas Mil, contudo, nos último ano, na cidade do Porto parece ser costume clamar Abril, Mulheres Mil. Tendo arrancado na passada terça-feira (16/04), o festival Porto Femme apresenta-nos uma nova edição, a sétima para sermos mais exactos, novamente com destaque nas vozes femininas e acima de tudo nas suas histórias e Histórias.

Este ano, as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril contamina a programação, de lutadoras de gema a revoluções, pequenas ou grandes, redefinidoras de um cosmo feminino. Além disso, Margarida Cardoso, realizadora com sensibilidades atentas a um Moçambique historicamente colonial, é homenageada no palco (e tela) dos Maus Hábitos e do Cinema Batalha (estendendo-se para a Casa Comum do Porto, Casa das Artes e a Universidade Lusófona do Porto).

Em conversa com o Cinematograficamente Falando …, Rita Capucho, co-diretora artística do evento, aborda as novidades, os filmes (122 oriundos de 38 países), os desafios, workshops, masterclasses, e todos esses elementos que constituem este 7º Porto Femme.   

Que desafios trazem esta nova edição do Porto Femme?

A cada edição lidamos com alguns desafios que são constantes, sendo o financiamento o principal. A dignidade que pretendemos alcançar, a devida e justa para todas as pessoas que trabalham no projecto e que nele participam mobilizam-nos todos os anos.

Para esta edição em particular o maior desafio foi olhar para a nossa trajetória e pensarmos em termos de interseccionalidade e de diversidade e de que modo poderíamos trilhar um caminho mais inclusivo.

O festival tem sido programado no mês de abril desde a sua sexta edição e neste ano de 2024 ganhou um sentido especial além do desafio de pensar um programa para o mês com a enorme carga simbólica que são os 50 anos da Revolução dos Cravos. Longe de fugir ao tema, resolvemos mergulhar e refletir sobre o seu contexto histórico e como afetou a vida das mulheres. A escolha do tema recaiu sobre as mulheres e as revoluções, com intuito de refletir sobre a luta dos direitos das mulheres que ainda está bastante aquém, e tão pouco chegou com o 25 de abril, se se pensa com relação à igualdade de género, à liberdade e ao poder de decisão sobre o próprio corpo, entre outros aspectos. A decisão de apresentar o tema “Mulheres e Revoluções” no plural, quer refletir a diversidade em termos de contextos político, sociais, geográficos e étnicos. O movimento feminista funciona a diferentes ritmos consoantes esses contextos. 

Um dos destaques desta edição é a homenagem à cineasta Margarida Cardoso, das suas visões oriundas de um Moçambique colonial e pós-colonial, assim como o fortalecimento no olhar feminino nestas mesmas “visões”. Gostaria que me falasse no trajeto até à proposta desta homenagem, e a importância de Cardoso, não só no cinema português e para lá do continente, como também nas correntes discussões sobre o colonialismo.

Desde o início do projeto que a Margarida Cardoso esteve presente na lista das cineastas que pretendíamos homenagear. Com a decisão de abordarmos o tema a partir da perspetiva do 25 de Abril, pareceu-nos o melhor contexto para trazê-la ao palco do festival. Os filmes da Margarida abordam o passado colonial e pós-colonial, debates cada vez mais presentes na sociedade portuguesa, além de seu olhar muito particular que traz as mulheres para o centro, dando visibilidade e que nos parece ser um olhar necessário, atento, sensível e reflexivo. Interessa-nos sobretudo este tipo de olhar e de sensibilidade.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

Gostava de destacar a secção especial “Mulheres de Câmara na Mão, Cinema e Revolução” que apresenta filmes realizados entre 1975 e 2015, e que em sua maioria reperspectivam o 25 de abril. Poderão ser conferidos obras de Ana Hatherly,  Catarina Alves Costa, Margarida Rêgo,  Solveig Nordlund, Monique Rutler e  Luísa Sequeira, co-curadora deste programa. Além disso, os filmes da competição temática traz uma seleção de narrativas revolucionárias, como por exemplo, “Analogue Revolution: How Feminist Media Changed the World” (2024) de Marusya Bociurkiw, faz um apanhado das comunicações feministas entre os anos 70 e 90, precedendo a era #MeToo; “Šagargur” (2024) de Nataša Nelević, é o testemunho sobre um campo de prisioneiros na ilha de São Gregório, onde mais de 600 mulheres foram torturadas entre 1949 e 1952; “Sew to Say” (2022) de Rakel Aguirre, apresenta um protesto feminista que durou quase duas décadas, em que mulheres se fixaram num acampamento para protestar contra as armas nucleares; “Uma Mulher Comum” (2023) de Debora Diniz, é a história de uma mulher que viaja à Argentina para realizar um aborto.

Gostaria que me falasse sobre o workshop - “Desconstruindo estereótipos - o cinema como linguagem para transformação” - e as pretensões e objetivos deste evento.

Este workshop é realizado em parceria com o CineDelas e procura explorar temas da contemporaneidade no cinema e debater de que modo é possível democratizar e criar melhores condições para alterar o atual paradigma do setor no que diz respeito a igualdade de géneros, a condições laborais e a condições de inclusão.  

O objectivo é refletir sobre os estereótipos tendo como temas orientadores o feminismo, a colonização, o patriarcado, a democratização da cultura e do cinema, a importância da cultura local e regional, entre outros. De uma proposta de reflexão surgirá o desafio de criarem uma curtíssima de um minuto que apresente o olhar particular de cada participante.

O recente filme de João Salaviza e Renée Nader Messora - “A Flor do Buriti” - menciona a luta das mulheres indígenas em “empoderar-se” (palavra que extraiu do português do Brasil) num país constantemente alavancado num capitalismo feroz e nas constantes ameaçadas do ultraconservadorismo que relegam os povos originários à condição subhumana. Trago isto como mote de conversa sobre a especial secção “Uma Revolução Íntima. De Monstros e Mulheres no Cinema Indígena”, se a idealização deste espaço prendeu-se com a influência da estreia do filme, e que propósitos tem essa mesma secção especial?

A ideia para esta secção especial já vem de edições anteriores, mas não deixa de ser interessante esta coincidência, inclusive porque possibilita ampliar o diálogo com outras iniciativas afins. Esta secção especial com a curadoria da Maria Luna-Rassa — coordenadora e programadora associada da Muestra Internacional Documental de Bogotá — apresenta filmes produzidos em outros países da América Latina, Colômbia e México, que poderá ser um interessante complemento à produção brasileira. O propósito desta secção, como também da “Enfim o Amor”, é criar espaços de visibilidade, trazendo novas narrativas e novos protagonismos para o centro do festival. 

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Quais os próximos desafios para a Porto Femme em edições futuras? Haverá extensões por outro lugares fora da cidade da Invicta (e as sessões de Lisboa)?

Mensalmente, na última quarta do mês, apresentamos as nossas Femme Sessions no Maus Hábitos no Porto e já deixo o convite para a do dia 24 que trará alguns premiados da edição. 

Ao longo do ano percorremos o país com as nossas sessões itinerantes. No ano passado, estivemos em Leiria, Viseu, Coimbra, Águeda, Amarante, Aveiro e Amadora. Habitualmente programamos sessões ao nível internacional, tendo realizado no ano passado sessões no Brasil e no Canadá. Este ano o objectivo é regressar a algumas destas cidades e claro levar o festival a novos locais e a outros países.

Toda a programação aqui

Beatriz no país das "maravilhas"

Hugo Gomes, 17.03.23

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Continuando com o seu formalismo do desesperante real, Marco Martins mantém-se leal aos trajetos agonizantes que as suas personagens, mártires feitos e refeitos, caminham em busca da sua essência. Mas o que é que procuram? A resposta aos seus males, seja ela, física, existencial, obsessiva ou corrosiva. O seu Cinema é composto por essas cores, estas deambulações e nisto, trazendo, não somente emoções, mas uma estética política, “à esquerda” como acusou veemente o jornal Observador nos ares de estreia de “São Jorge” (2016). Em “Great Yarmouth: Provisional Figures”, projeto maturado em dois “mundos” distintos, um pré e pós pandemia, ganha vida acrescida sob os ventos das novas marchas politizadas, reacionária e extremistas e quiçá nacionalistas, pintando-nos como “bons emigrantes”, acarinhados pelos povos do Mundo e bem-sucedidos na sua integração. 

Martins provoca, - porque em Great Yarmouth, cidade costeira inglesa (e uma das mais precárias do Reino Unido) - num êxodo à portuguesa é possível escutar os nativos referindo-os como mão-de-obra silenciosa, assumindo trabalhos que os próprios ingleses desdenham. Na liderança dessa peregrinação ao encontro de “vidas melhores”, está a Mãe, apelidada desta maneira (como gosta, devemos salientar), Tânia, portuguesa integrada, a face de uma rede de “exportação” destes trabalhadores carenciados e reduzidos a corpos exaustos, sacrificados, as outras martirizadas equações deste cosmo. Beatriz Batarda é essa “criminal” emigrante, com sonhos próprios, mesmo que mais mesquinhos e pirosos que sejam (velhos e bingo, combinação da sua vulgaridade). Não interessa, ela própria embarca na “foleirice” como íntimo refúgio, o “Promise Me” de Beverly Craven, por exemplo, servido como canto de sereia e de igualmente forma como canto de banshee, cantarolando para ‘seduzir’ ou invocando o antidote para a sua angústia. 

Digamos que na atriz, o ponto alto de “Great Yarmouth”, Martins deposita-lhe fé e determinação para nos guiar pelos dantescos infernos desta exploração, das madrugadas frias e silenciosas, meio adormecidas e calejadas pelo cansaço acumulado, dos “quartos” de hotel (as aspas não são acidentais) ou das idas e vindas aos matadouros de perus, em que o “trabalho liberta” encontra-se invisivelmente gravado nos seus muros. E nela testemunhamos o cansaço, envolto numa rotina, gradualmente desintegrado por vias de um caos, as rugas vincadas do seu rosto renomeia-se como “cicatrizes do tempo”, o qual não volta atrás de maneira alguma e é comumente sabido, mas são essas supra-expressões que a camufla com as noites intermináveis e os becos sem saídas. O sonho não passa disso … num sonho. Acordar é o derradeiro ato. 

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Enquanto isso, Batarda, é toda ela um filme à parte, a alma, a raiz, a força e a farsa, Martins apenas a filma, a integra e suplica para que nela nasça um filme emancipado. O realismo britânico mimetizado numa narrativa suja e sob curvas e contracurvas, a duração da miserabilidade sente-se, seja pelas sisifistas matanças às aves comestíveis, decepadas e decapitadas, "carne para canhão”, como os portugueses e tudo o resto. Só Beatriz’ salva-se, adquirindo as suas asas e transcendentemente sobrevoando tudo o resto. 

Great Yarmouth: Provisional Figures” instala-se como um ensaio sem norte, talvez as várias vidas e os seus vários procedimentos criativos o esvaziaram, porém, encontra conforto na sua protagonista, maior que o filme, maior que a vida. Beatriz Batarda show, é o que é!

"Dá-me as minhas savings"

Arquitetando males à lá Canijo

Hugo Gomes, 27.02.23

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"Mal Viver" (João Canijo, 2023)

Convém declarar que no cinema de Canijo o processo acaba sempre por ser a atração dos seus projetos, e nele concentra-se uma ação performativa intensamente arrastada, seja nos atores e a sua maleabilidade para aquilo que chamamos de “realismo” (o nosso senso perante essas representações), ou por outra, pela construção de uma instalação visual, cénica e sonora. 

No caso deste recortado “Mal Viver”, a sua característica nata encontra-se no segundo ponto, mais do que as possibilidades com que os seus atores (com muitas “caras” reconhecíveis do universo de Canijo por aqui) possam expressar. É a inteira percepção do realizador em elaborar um filme, arquitetonicamente falando, retalhado em diversas perspectivas (sendo que isso nos levará à outra face do díptico, mas já lá vamos). Assim, com “Mal Viver”, somos conduzidos a uma teia de dramas a ter lugar num hotel rústico, com enfoque na equipa que gerencia este mesmo espaço, esse abordado maioritariamente por vias de planos conjuntos, onde a ação é somente uma janela à escolha do freguês (literalmente e não-literalmente). O espectador assume então a posição de voyeur e é igualmente resistente face a não distrair-se do enredo principal, essa coluna vertebral conectando tudo o resto sem ordenar a sua execução linear. 

João Canijo presta-se ao desafio, vislumbrando o seu mais Tati dos filmes, um objeto aglomerante de ações sob ações, e o procedimento dessas mesmas em grande ecrã, como os diálogos interpolados e independentes, são apenas sintomas dessas personagens em livre arbítrio, pelo menos a sensação dada, visto que o realizador é um realizador por inteiro, autocrata e onipresente (próximo da rigidez de Haneke). O espectador, porém, perde esse estatuto endeusado, convertendo-se num testemunho impotente e sem certezas absolutas, escolhendo a óptica que lhe enquadrar e nisso prescrever o seu próprio filme. 

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"Viver Mal" (João Canijo, 2023)

Mal Viver” não se deleita nos corpos dos seus intérpretes (em território “canijiano” são escravos do seu método), é antes disso um filme-edificante, pensando e casuístico, cuja sua arquitetura se revelará ainda mais com “Viver Mal”, que ao contrário do filme-siamês, tende em controlar a perspetiva do espectador, ao invés de deixá-lo a “marinar” no ambiente. Desta feita, o enredo não é novo, já havia sido “descoberto” no filme anterior, e em modo loop é trabalhado com severidade na sua mimetização. Aqui, seguimos três histórias, três reservas, cada uma apresentando hóspedes presos aos seus respetivos pecados capitais ou crónicos bovarismos (“ah, o velho conto dos privilegiados encurralados nos seus ‘mundinhos’”). 

Mais do que a matéria desenvolvida em “Mal Viver”, “Viver Mal” encanta-se com os seus atores, e ainda mais na dramaturgia emanada por eles, os seus corpos tornam-se devidas medidas temporais quanto à narrativa tríptica, expondo o esqueleto deste projeto, entretanto repartido em duas estâncias fílmicas. E a conexão sexual entre os demais, reluzentes atrativos para o “buraco na fechadura” que o então voyeur-espectador não deixará de espreitar. Tal como o referido, e estabelecido, filme anterior, “misturamo-nos” com a plebe, faminta por “conhecer” os traços das vidas animalescas e de excentricidades calcificadas dos passageiros residentes (o qual tão bem nos identificamos com a personagem de Cleia Almeida, a camareira que remexe os pertences dos hóspedes ou que se intervém nas suas trivialidades, uma fantasiadora do degrau que nunca irá “pisar”). 

Contudo, é neste capítulo que presenciamos os desempenhos mais ferozes, seja uma Beatriz Batarda em modo “mommy dearest” ou uma Leonor Silveira, despojada vilã de novela, no desempenho mais desafiador da sua carreira nos últimos (e largos) anos. Poderão ser dois filmes desiguais, um mais cuidado que o outro, mas são provas da maratona que Canijo tem executado ao longo da sua carreira, da performance à idealização de um cinema prestigiado por diversos “pontos de fuga”.

 

"Magoamos a mãe?"

Fisicamente ...

Parir doi ...

Transforma."

Filipe Duarte é Cinema. Cinema é Filipe Duarte.

Hugo Gomes, 17.04.20

O Cinema, televisão e teatro português acabaram de ficar repentinamente mais pobre. Muito se diz por aqui que Filipe Duarte era um dos melhores da sua geração, sem duvidas algumas, e acima disso, era um homem de uma humildade incrível e de simpatia de fazer inveja, como pude constatar diversas vezes.

E mais triste ainda era ainda a sua "tenra" idade. Too soon ...

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

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Tejo (Henrique Pina, 2011)

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A Outra Margem (Luís Filipe Rocha, 2007)

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Mosquito (João Nuno Pinto, 2020)

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Variações (João Maia, 2019)

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A Vida Invisível (Vítor Gonçalves, 2013)

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Cinzento e Negro (Luís Filipe Rocha, 2015)

Pelos olhos de Luísa

Hugo Gomes, 25.04.19

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Cristina Pinheiro aventura-se no universo das longa-metragens com “Menina”, um retrato de uma comunidade de imigrantes portugueses, em França, vista pelos olhos de uma criança de 8 anos. Obviamente que esta visão está confinada ao limite desta personagem e, ao mesmo tempo, alargada pelo imaginário da mesma. Contudo, devemos salientar que não estamos perante em mais um retrato de fascínio pelo país-abrigo nem pela insuflação do mito do "bom imigrante". Ou seja, “A Gaiola Dourada” não é bem o catálogo aqui, por isso pedreiros e porteiras a favor de um estereótipo duradouro são somente perdidos e não-achados.

Não deixa de ser curioso que a “Menina” abra com as celebrações do 25 de abril, um gesto discreto que não avança em reflexões interiorizadas da condição do imigrante luso, mas se espeta como uma farpa aos movimentos populistas e anti-migrantes diversas vezes apoiados pelos mesmos (de forma contraditória) que utilizam essa data em prol do seu discurso. Porém, como já havia referido, aqui não se trata de política. O enredo assume um certo intimismo ao explorar um amor paternal em fragmentação para com os piores clichés da má índole da paternidade. 

E é através dessa premissa que “Menina”, ou melhor, Luísa Palmeira (a jovem atriz Naomi Biton), que somos encantados pela sua ingenuidade, digna de uma "enfant" comprometida a uma limitada percepção. Luísa é a nossa guia e nós, espectadores, os cúmplices desse olhar. Nunca nos rebaixamos perante ela e, sobretudo, nunca nos sobrepomos a esta, e é nisso que se concentra o grande feito do filme de Cristina Pinheiro: essa compreensão com este mundo infantil, com um devido respeito e crença.

Menina” é isso mesmo, uma protagonista que nos arrebata e um elenco secundário que a suporta com vigor (Nuno Lopes e Beatriz Batarda), figurando um cenário de falso-bucolismo que diverge das evidentes e anteriores comparações anteriores.

Mas ... e como existe sempre um mas, a realizadora exibe uma inexperiência em atar os nós da narrativa. Como resultado, temos um episódico conto e reconto que cede, por fim, a uma miserabilista elipse a simular um velório evitável. É um sofrimento que se poderia resumir somente a uma imagem, e a força desta tinha potencial como mina emocional. Infelizmente, falta aqui “garra”, porque a delicadeza já a temos.

Falando com Beatriz Batarda, a nossa "Sara", a atriz do choro e do riso

Hugo Gomes, 16.11.18

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Foto.: Hugo Gomes

É de facto uma das “caras” mais reconhecidas do cinema português. Beatriz Batarda irá transitar para um novo universo, as séries de televisão e estreará com Sara, um ensaio meta-narrativo de uma atriz de drama que perde a capacidade de chorar e embarca numa jornada ao reencontro do seu “eu”.

A atriz, conhecida pelos seus trabalhos em obras de João Canijo, João Botelho, Margarida Cardoso, Manoel de Oliveira e, claro, Marco Martins, falou sobre a nova aposta da RTP e as escolhas dos atores, mais precisamente, as suas escolhas de carreira.

Confesso que estive a procurar qualquer indício de trabalho na televisão portuguesa. Como não encontrei, presumo que esta seja a sua estreia neste formato, por isso questiono: como é chegar à produção televisiva nacional?

Para dizer a verdade, fiz figuração há 25 anos atrás. Essa informação ficou perdida, nem me lembro se era novela ou série, mas porque hoje só temos currículo se estiver na internet.

Mas bem, não considero uma estreia, Sara é a minha chegada. O que posso dizer é que se trata de um universo bem à parte do Cinema. Enquanto espectador particular, porque sou profissional, vejo o quão diferentes são esses formatos: Cinema, Televisão e Teatro. E dentro desses mesmos existem registos completamente distintos. A qualidade maravilhosa desta série é que no mesmo seriado conseguimos reunir imensos registos, e numa forma organizada, natural e até intuitiva, sem perturbar a narrativa, a estética e até a linguagem da montagem que está instituída.

O facto é que o Marco [Martins] ter conseguido na sua realização esse casamento, porque se mantêm essas qualidades que estão todas presentes, é notável. Como se diz - qual está na moda nesse rol de programas de culinária - uma explosão de sabores [risos]. Estes termos e expressões vão ser absorvidos naquilo que é agora a programação televisiva. Esperemos que esta série influencie alguma coisa ou até mesmo alguém.

E como esta ideia chegou a si?

As pessoas quanto muito também conversam, partilham desejos e projeções, e o Marco tinha desejo de experimentar a televisão. Eu fiz pouca televisão, porém, gosto de explorar, aprender, sair da minha zona de conforto e o Bruno [Nogueira] tinha sido desafiado pela RTP para apresentar um projeto novo. Esteve ali nessa procura e apresentou esta sinopse, até porque tudo começa com uma simples sinopse, um esqueleto evidentemente.

A premissa de uma atriz que é apanhada no fundo de uma tragédia, que constitui na perda do seu maior instrumento – a capacidade de chorar – e transformando essa tragédia em algo risível. No fundo é o que fazem os escritores de comédia. É uma forma de ultrapassar, de viver com, digerir as dificuldades da vida. A comédia nos ajuda a fazer isso. Ou seja, ele fez um esqueleto e partilhou com o Marco esta ideia, que por sua vez ficou entusiasmado e quis logo fazer parte enquanto realizador. Penso que não é injusto dizer que a ideia do Bruno surge um pouco inspirada nesta imagem que eu construí, uma imagem pública que não corresponde certamente à verdade.

Sara (Marco Martins, 2018)

E que imagem é essa?

Sei que estou catalogada como aquela atriz ligada ao Cinema de autor, o do drama e com pretensões intelectuais arrogantes. É a construção de uma imagem como outra qualquer que alimenta muitos espelhos. Realmente existe quem se alimente disso e eu vivo bastante bem com essa imagem, é quase como um acordo entre cavalheiros. É agarrada nessa imagem que o Bruno desenvolve a ideia da Sara. Construímos juntos esta personagem, fomos dando essas cores, espaço para várias vertentes. Resumidamente, aquilo pelo qual gosto de construir personagens cheias de contradições. Como tal, fomos criando espaços na narrativa para que estas mesmas contradições ganhassem corpo e dimensão cómica evidentemente.

Poderemos afirmar que a Beatriz e a Sara têm muito em comum?

Não, porque na verdade isso não corresponde à realidade, essa é apenas a imagem que as pessoas tem da minha vida profissional. Tenho um percurso imensamente variado. Já fiz anúncios, comédias, policiais, tragédias clássicas e textos contemporâneos. No Cinema, já passei tanto pelo comercial quanto como de autor. Sempre tive sorte de visitar as várias áreas. No entanto, é aquilo pelo qual sou catalogada nesse nicho. Mas não me identifico de todo com esse rótulo, evidentemente, aliás, nunca fiz novela.

E faria alguma novela?

Porque não? Estás a ver, isso já é uma projeção em relação a mim. Eu nunca disse em entrevista alguma que nunca faria novela ou que era contra as novelas. Até trabalho com muitos atores que fazem novelas. Não as vejo porque não me preenche, não me interessa, mas espreito por causa de imensos atores com os quais trabalho e que entram nesse formato.

Mas concorda com um preconceito em relação aos atores de novela? Quase soa como um sistema de castas.

Há um ditado: diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és. As nossas escolhas não nos definem na totalidade, mas influenciam a nossa estruturação. Há escolhas que fazemos na vida porque sim, porque nos levam àquele caminho inconscientemente. às vezes não podemos escolher, o que é mais grave, algo mais redutor na nossa vida. Olhamos muito para poder oferecer aos nossos filhos a possibilidade de escolha. É uma grande arma, até porque nem toda a gente tem esse poder. Tive a felicidade dessa sorte  (…) e estou grata por isso (…) o de poder escolher e fazê-lo em função das minhas necessidades. Agora, em relação a esse debate de que os atores de novela são inferiores aos atores de Cinema? A minha resposta é não. Não há inferioridades. Os atores transitam e alguns especializam-se em determinadas áreas. Sei que existem atores que são bons em fazer novelas, isso ninguém lhes retira o mérito. Assim como muitos não estão interessados em transitar para outras áreas, como o Cinema. Há espaço para isso tudo. Tal não te faz melhor ou pior ator, versátil ou limitado, tudo se resume a escolhas.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

Assim como a novela, a comédia é também uma plataforma bem subvalorizada pelo grande público, no que se refere a valorização de atores.

Vou dizer algo politicamente incorreto, mas o que é que entendes por valorizar? Dinheiro ou estamos a falar de reconhecimento intelectual. É que tudo isso, como havia dito, são fruto das escolhas. Tudo em função das necessidades. Se precisares de reconhecimento intelectual, então procurarás isso, em caso de retorno financeiro, essa será a tua busca. Isso vai influenciar a escolha do teu caminho. Aqui, por exemplo, o Bruno escreveu uma série, ele é comediante e acima de tudo reconhecido intelectualmente.

Isso da comédia ser subvalorizada é uma bandeira do senso comum. Como por exemplo, é costume dizer que a comédia não vai longe nos Óscares. O que eu acho é que os critérios são muito altos e bastante inflacionáveis consoante o seu contexto. O fenómeno social em que se vive naquele presente que o filme acontece, e isso é muito variável. A comédia é na verdade muito mais difícil do que o drama. Apesar de eu partir do princípio que chorar e rir é essencialmente a mesma coisa.

Ou seja, é da opinião que a comédia vive dos mesmos elos da tragédia?

Na vida, quando tu ris, na verdade estás a chorar, porque estás a reagir ao teu medo. Tu ris porque tens medo. Para mim é a mesma coisa – chorar a rir. Vem da mesma dor, da mesma inquietação, da mesma perda e quando a comédia faz as pazes com isso adquire uma dimensão diferente.

E quanto a expectativas para a série?

Não tenho nenhumas. Nunca tenho expectativas. Eu faço o melhor que posso e depois, já não é meu. Larguei.

Novos projetos?

O Marco Martins convidou-me para a sua nova longa e eu fiquei imensamente contente. A minha personagem será uma imigrante portuguesa em Inglaterra que faz a ponte entre uma entidade empregadora de uma zona industrial e os imigrantes portugueses em situação limite em busca de uma saída económica.

Tendo em conta o Cinema de Marco Martins, aposto que esse projeto terá algo de Brexit pelo meio.

Não é à toa que ele escolhe Inglaterra como cenário, pretendendo assim levantar todas essas questões, se há ou não livre circulação dentro dos mercados e se em concreto é equilibrada ou não

Bruno Nogueira: "A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer"

Hugo Gomes, 06.10.18

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Uma atriz sobretudo dramática que perde o dom de chorar. Resultado, uma inversão de marcha na sua carreira então presa a arquétipos e uma busca pelo que realmente lhe faz feliz. Esta é a resumida premissa de “Sara”, a série de Marco Martins que promete abalar toda a nossa perspetiva de ficção à portuguesa no pequeno ecrã e demonstrar as versáteis capacidades de Beatriz Batarda, que à imagem da protagonista tem vindo a ser “acorrentada” a rótulos.

Uma proposta deliciosamente satírica e astuta que veio originalmente da mente de Bruno Nogueira. O comediante e ator falou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto e de que maneira ele se insere no panorama audiovisual português.

Sendo o autor da ideia original, gostaria de perguntar como esta surgiu?

Surgiu da minha realidade e da realidade que conhecia da Beatriz, uma atriz que facilmente cai no estereótipo, reduzida ao mesmo tipo de papéis. Sempre que a convidavam, não era para encenar “casamentos felizes”, “famílias felizes”, mas sim desempenhar algo trágico ou coisa que pareça. Pensava muito nesse mecanismo de uma atriz como a Beatriz que de um dia para o outro não conseguia mais chorar. O que aconteceria a esse tipo de atriz dramática se fosse lhe retirada a sua mais preciosa ferramenta de trabalho, e com isso a procura de um lado mais feliz na sua vida. Então imaginei essa viagem, e imaginei a partir da própria Beatriz.

De certo modo, “Sara” é sobre a Beatriz Batarda?

Só o facto de ser uma atriz e ficar quase limitada aos papéis dramáticos, o resto é somente ficção. A sua jornada, famílias, relações, amigos, tudo é fruto da ficção.

Portanto, foi através dela que construiu a base desta série que funciona no todo como uma crítica satírica ao mundo do Audiovisual e do Entretenimento do nosso panorama?

Sim, mas mais que isso, todo este processo de conceção obrigou-me a pensar sobre o Cinema, Teatro e até mesmo Televisão, no que leva um ator a fazer determinada coisa, muitas vezes tendo motivação financeira, outra apenas por curiosidade profissional, ou é uma fase da vida em que se procura o que é mais seguro. Sempre tive esta ideia mesmo quando estava fora do mundo audiovisual, agora que estou dentro apercebo-me que a realidade é para lá disso. Depois só me interessava brincar com a realidade da situação, com aquilo que a Beatriz e o Marco pensavam que era. Depois juntei uma essência forte e eficaz daquilo que é a nossa visão sobre o que são estes meios nos dias de hoje.

Mas “Sara” foi inicialmente pensado como uma série ou um filme?

Numa série. Foi sempre pensado como tal.

Mas diria que existe uma linguagem muito cinematográfica em “Sara”.

Sim, foi parte do Marco [Martins], que entrou no projeto a partir de uma simples conversa de quotidiano. “O que estás a fazer? O que andas a fazer? Projetos futuros?”, falei-lhe desta ideia e segundo as suas próprias palavras, ele achou “perfeito”. Assim, após a sua entrada, esta ideia deixou de ser minha e passou a ser “nossa”. Foi quase um trabalho em família.

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E como pensa que reagirão os espectadores em relação a “Sara”?

Não sei. Acho que toca com vários tópicos, mas sobretudo vai muito ao encontro da perceção que os espectadores têm, outros informaram um pouco mais, mas um caso é um caso. Não sei realmente como reagirão. Isto é uma coisa muito egoísta de dizer, mas “Sara” foi concebido como aquilo que eu gostaria de ver na televisão neste momento. Por isso, como última análise, isto foi para nós vermos. Foi um projeto fiel aquilo que pretendíamos e que gostaríamos de ver, obviamente tendo em conta que isto estava direcionado para televisão.

Mas é um projeto arriscado para a nossa televisão, diria que é uma série construída a partir de uma metalinguagem bastante própria e incisiva.

Vejamos, a ideia era de posicionarmos de fora a assistir a isto tudo. Portanto, tem várias camadas. Dando exemplo, colocamos a Rita Blanco a criticar quem faz novelas e anúncios a bancos, enquanto sabemos que a própria atriz já fez isso tudo. A série retrata um pouco o Mundo de cada um dos envolvidos, e mesmo sendo, em alguns casos, feridas nossas, só o facto de avançarmos com essas representações estamos em certa parte a exorcizar os nossos pontos fracos.

Tendo como base o conteúdo, o contexto e as “farpas” que Sara constantemente lança, gostaria de perguntar como vê a atual produção cinematográfica e televisiva em Portugal?

Cada vez mais o Cinema Português vem ao encontro com o público e durante muito tempo estes dois fatores estavam intrinsecamente desencontrados. O público não via o nosso cinema, guiando por palavras-chaves como “filmes longos e chatos” (e verdade é que existiam imensos longos e chatos). Hoje em dia, uma coisa que ajuda imenso o cinema português, felizmente, é o reconhecimento estrangeiro e desta nova geração de realizadores que têm uma maior proximidade com o público. Por isso, sou da opinião que o cinema português está melhor não só por essa cumplicidade com os espectadores, mas até pelos espectadores que fizeram um esforço para entender a sua linguagem.

A televisão … bem … tendo em conta a minha experiência, uma ideia passa por imensas transformações até chegar ao produto final. Veja-se o caso de “Sara”, a ideia é originalmente minha e foi gradualmente transformada em uma outra ‘coisa’ com as contribuições de Marco Martins, Beatriz Batarda, entre outros. O que restou dos primeiros pensamentos foi nada do que está ali. Julgo que em 90% das séries nacionais, as ideias, que podem ser boa, são submetidas a todo um conjunto de intervenções, passando pelos executivos a produtores, “vamos meter umas gajas nesta cena aqui”, ou o diretor do canal, “epá, o que ficava bem aqui era aquele gajo que agora está na ribalta”. Portanto, a ideia com todos estes contágios misturados resultam numa … papa … perdeu-se no caminho.

Acho que temos ótimos autores em Portugal, mas a ideia original perde-se no trajeto e aquilo que presenciamos no ecrã não é, nem tão pouco aquilo que originalmente seria. De resto, não acho que esteja num caminho brilhante. A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer, e por vezes isso é discutível. Para vir para cá, passei por um acidente na A5. Não havia trânsito, mas os carros paravam para ver os destroços. Naquele momento, o que público pretendia era ver o acidente, por isso julgo que essa política “das intenções do público” não seja de todo verdade.

Um canal privado tem outras obrigações para além de mostrar o “acidente”, e a RTP, enquanto pública, tem o papel fundamental que é o respeito pelos atores e cumprir essa preservação autoral, assim como a valorização dessas mesmas.

Novos projetos?

Penso voltar à televisão, por enquanto não é o momento certo, estou à espera de ideias e isso leva o seu tempo. Contudo, vou regressar a algo que tinha saudades e que têm dedicado paixão que é o stand-up comedy. Ando em experiências e testes de material e em novembro arrancarei com uma tournée.

Um abraço (precisa-se) às fragilidades de cada um de nós

Hugo Gomes, 18.03.18

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Em momento algum a palavra “crise” ou até mesmo “austeridade” é citada no contexto cénico-temporal, mas tal rótulo, ou “post-it” para refrescar memórias, é desnecessário, visto que o espectador (principalmente o de nacionalidade portuguesa) encara e identifica facilmente tal ambiente vivido. Uma atmosfera que se vai adensando até atingir as personagens, alterando por completo as bases estruturais estabelecidas pela sociedade como nós conhecemos.

Uma família torna-se assim a cobaia de tal experiência, são as vítimas de tais assombrações sociais, no qual se nota a desfragmentação individual da mesma forma, coletiva, a evidenciar o afastamento do Humano Moderno e Civilizado até à estrutura convencional da ideia de família. Trata-se de um crime existencial, salientam alguns perante estas transformações evidentes. Trata-se de paranoia acumulada pela espera, impaciência, o constrangimento de gerações reprimidas por falsas promessas, ou o pânico de a vida ser reduzida ao somente objetivo de sobrevivência, isto dirão outros perante tais e iguais transformações.

Sim, Teresa Villaverde espelha uma experiência social (ou ensaio cinematográfico, como quisermos lhe chamar), uma pequena provocação direcionada ao espectador de igual método que Yorgos Lanthimos nos conduz entre as suas distopias. Aliás, a distopia de Villaverde tem muito de “Canino”, mas ao invés do ato radical – a eliminação das bases sociais herdadas para a construção de um novo tipo de ser humano - “Colo” apresenta a transição, o questionamento, a hesitação e por fim a ação como a saída possível, levando-nos à partilhada metamorfose.

A obra constrói-se em tal estado, não no somente sentido das personagens, mas como filme em plena metamorfose, um “monstro” que nos falseia com a proposta de retrato, para nos inserir em becos encaminhados pelo pensamento incógnito destes mesmos peões, aspirados pelas falhadas emancipações. As personagens se motivam através disso, fracassando constantemente, necessitando cada um do seu “colo” para embarcar novamente na vida em plena trajetória.

Colo” é isso mesmo, um filme frio, um filme emudecido pelas suas vontades em vão, e que tal como a sua família protagonista, inteirada num prolongado senso de derrota. Villaverde demonstra acima de tudo técnica (nota-se a bruta presença fotográfica de Acácio de Almeida), ou do mosaico planificado estampado nos edifícios obscuros apenas iluminados pela luz interior (serão essas as presenças, os vestígios humanos de um mundo sem humanidade?).

Contudo, o exercício lacrimeja com a imensidão da sua subjetividade, acima da praticável objetividade, assim como o último plano, aquele travelling que avança e recua como predador hesitante. É a deriva pela qual o filme se constrói, mas não é por ele que o filme vive. O registo deixa assim estas trágicas personagens à sua mercê, onde os seus destinos teriam mais em conta, como catarses teorizadas. Enfim, nada cumprido. O Cinema “bonito” pratica-se, porém, não se vinga e tal como a adolescente (Alice Albergaria Borges) que grita para a sua mãe (Beatriz Batarda) – “não estamos em nenhuma Guerra” – refletindo o porquê de tanto sacrifício e irreversíveis decisões, neste caso [o filme], o porquê de tantas derivações.

No fundo é um filme que precisa do nosso colo ... carinho ... empatia.

Por entre os murmúrios de Yvone Kane, uma conversa com a realizadora Margarida Cardoso

Hugo Gomes, 16.03.15

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Beatriz Batarda em "Yvone Kane" (2014)

Yvone Kane chegou aos cinemas dez anos depois da primeira longa-metragem de ficção da cineasta Margarida Cardoso. Trata-se de um revisitar a uma Moçambique traumatizada pelos horrores da guerra colonial e pelas promessas não cumpridas.

O Cinematograficamente Falando … teve o privilégio de falar com a realizadora sobre o seu mais recente filme, a sua confrontação com os fantasmas do passado, o seu regresso “indefinido” a Moçambique e o seu olhar ao panorama atual do cinema português.

Como surgiu a ideia deste filme? Como foi regressar a Moçambique?

Surgiu exatamente do facto de eu não ter regressado. De ter feito imensos projectos lá. Ao longo deste tempo todo, tenho trabalhado sempre em vários projetos de lá e foi então que fui construindo essa ideia de uma grande atração pelos espaços, não é bem paisagens, mas territórios distantes, locais mais abandonados, e tudo isso. E a partir daí decidi fazer um filme que passasse na atualidade. Todos os outros filmes que tinha feito ou eram uma reconstituição dos anos 60 ou exploravam um período pós-colonial. Então senti a necessidade de fazer algo que ocorresse nos dias de hoje. Comecei a construir as peças para filmar uma coisa que fosse atual, captar um mundo com condimentos mais do real e enfim.

Como profissional sentiu alguma diferença entre a produção “A Costa dos Murmúrios” e este “Yvone Kane”?

Sim, há muitas diferenças. Em “A Costa dos Murmúrios” tinha uma época que era a colonial, e então os murmúrios eram os últimos sons antes do fim, ou seja, antes do silêncio. Acontece que depois da época colonial veio um silêncio para os portugueses. Nós utilizávamos muito a História para descobrir algo no tempo, agora não. Também me interessou aqui seguir para outro fim de época, não a colonial, mas neste filme, que se passa na atualidade, tentei falar do fim da nossa relação ideológica com África. Aquelas pessoas que estiveram lá e que acreditavam naquelas causas, naquelas ideologias, no Homem Novo e na igualdade entre as classes. Todas as vezes que essas pessoas tentavam construir esses países, que agora são ultra-capitalistas, são ultra-liberais, enchi-os com “sonhos e ideias comunistas”. Então, com este filme tentei retratar um fim de uma época de ideologias e de sonhos. E são épocas muito diferentes, muito marcadas. Moçambique teve uma Guerra Civil durante muito tempo e agora é um país que se considera em fase de construção, ou seja, muito diferente da época colonial.

Quem é “Yvone Kane”? Como se inspirou para criar a personagem?

Essa personagem é inspirada, digamos, nas suas ações, no que ela faz individualmente. Foi inspirado nos “milhões” de filmes que vi quando fiz o “Kuxa Kanema – O Nascimento” do Cinema. Tive que ver praticamente tudo que havia no arquivo, como também muitas reportagens durante a luta armada e fiquei assim com uma ideia concreta, logisticamente, do que se passa numa manifestação, como funcionam estes movimentos, o destacamento feminino e estas coisas todas. A partir daí comecei a criar uma personagem que é uma mistura entre várias coisas que tenho andado a estudar. Estou a fazer um documentário sobre uma angolana que em 1977 foi assassinada. Ela era uma revolucionária, a Sita Valles, e uma mistura de outras figuras que existem do síndico feminino, como a Josina Machel, que era a ex-mulher do Samora Machel. Então juntei essas personagens e criei uma personagem mítica, uma personagem fictícia, que engloba isso tudo. “Yvone Kane” vai sendo também revelada durante o filme numa pessoa essencialmente verdadeira. Porém, não é uma heroína.

Sentiu dificuldades na produção deste filme? Se sim, quais?

Senti todas as dificuldades [risos], mas não vou numerar uma lista de compras. Sim, senti muita dificuldade. A primeira dificuldade foi o financiamento do filme. Depois, finalmente conseguimos uma colaboração com o Brasil e a próxima questão foi que atravessamos um período de bastante crise na altura em que foi filmado. Começámos as preparações em 2011 e só conseguimos terminá-lo em 2014. Portanto, foram quatro. Em 2012 demorei muito a fazer a pós-produção, por falta de verbas, e foi então passando o tempo. A maior dificuldade do filme foi essa, não em termos económicos, mas nesse financiamento, em desbloquear verbas. Sim, foi difícil.

Porquê a atriz brasileira Irene Ravache como uma das protagonistas?

Porque queria uma pessoa que fosse muito parecida com a Beatriz, que interpretasse a mãe dela e curiosamente a verdadeira mãe da Beatriz não se parece nada com ela [risos]. Nos filmes a gente tenta ir mais além da verdade. A propósito, em Portugal não temos um leque de atrizes tão grande naquela casa dos 70. Teria que encontrar alguém com 70 anos com a mesma simetria da Beatriz e com vitalidade. Queria uma pessoa que transmitisse que estaria a morrer e ao mesmo tempo fora traída pela própria morte. Que poderia viver por ainda mais tempo e que tivesse físico para isso.

Em “Yvone Kane”, filmou muito os reflexos, ou através de janelas e redes. Essa prática pode ser vista como uma proteção para si ou para as personagens?

Tal como nos outros filmes, eu gosto do eco das coisas violentas e gosto de uma coisa que os ingleses denominam muitas vezes que é a aftermath, depois da catástrofe. Eu não me interesso pelo momento em si do conflito, mas pelo que resta disso, o que sobra disso em ecos, reflexos. De certa forma também os reflexos criam uma cinematografia que não é direta. Estás sempre por detrás de qualquer coisa. Acho que tudo isto faz parte do que quero dizer com o filme. Todo ele não é claro, nada é explicado e interessa-me realmente, como dizes, estar protegida. Quando acontece alguma coisa de importante, a minha reação é de colocar a câmara muito longe e não perto. Não estou interessada em abordar acontecimentos muito fortes.

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Margarida Cardoso no Festival do Rio

Neste filme você recorre a poucos planos fixos. Porém, a sequência final é um longo plano fixo. Existe algum significado nessa imagem concreta – a de restaurar uma piscina como uma espécie de exorcismo?

Sim, a piscina é o plano mais simbólico do filme, mas antes disso devo dizer que o filme é praticamente constituído por planos fixos, eu é que não tinha muita maquinaria. Por isso utilizamos muito a câmara à mão, sendo que os planos são muito secos, muito quadrados visualmente, porque é muito distante. O plano da piscina é tão longo quanto os outros. O filme tem uns planos com uma duração muito grande. Mas o tal plano é simbólico porque é evidente. As pessoas enterram o passado, digamos a memória, e fica tudo enterrado. Provavelmente também os “fantasmas”, a personagem descobre documentos e isso pode gerar qualquer coisa, mas a partir daí quis, ao invés de acontecer qualquer coisa que pudesse revelar quem é que matou a Yvone, que não soubéssemos nada e voltássemos à aragem e nos guiassemos pela memória final.

Considero “Yvone Kane” um filme sobre perdas. O filme teve como base alguma perda sua ou um estado de espírito seu?

Sim, acho que é a experiência de perder, mas não diretamente. Não tive perdas diretas, mas tive consequências, por isso é que gosto de falar delas. Tive as consequências de perder muitas coisas à volta. Perder sobretudo um território identitário, o que não tenho, mas que sinceramente é uma boa ajuda não o ter. A mim inspira-me um pouco não ter essa identidade, um atual território identitário, porque ficas sempre condenada a procurar coisas. Não há ninguém que te dê uma resposta clara e então tens que procurar. Nesse aspecto, a perda mostra-se mais como uma ausência de um ponto referenciado.

A vida é estranha, não é?” Sente-se em “Yvone Kane” uma certa desmistificação do misticismo. Existe uma sequência que revela isso. Com isto quer dizer que é pessimista?

Sim. Sou e é bom ser. Creio muito que os outros são capazes de fazer melhor e o pior. Então fico sempre disposta a essa dualidade, quer dizer, fico numa tristeza, uma dificuldade muito grande em aceitar tudo o que é muito violento, duro. Tudo o que há de mau nas pessoas e ao mesmo tempo uma alegria da noção da vida. Tudo muito maravilhoso, muito fantástico, os mistérios da vida que a gente nunca consegue saber onde estão as respostas. Acho isso fantástico e quando aquele rapaz disse que uma coisa que nunca esquece é que por mais que estejas ligado a uma pessoa, tu estás sempre sozinho [a cena]. Não é dramático, mas é verdade. Ele amava a Yvone, a Yvone amava-o. A verdade é que eram capazes de tudo, mas quando a Yvone sumiu, ele estava a fazer outra coisa, e não havia nada que os ligasse. É a natureza da vida. E quando ela diz à mãe que “fizeste o que pudeste”, é isso. As pessoas fazem o que podem. Há laços que são impossíveis, simplesmente não existem.

Joaquim Pinto afirmou recentemente em Berlim numa entrevista ao C7nema que - “o cinema português, pelo menos no que diz respeito aos financiamentos oficiais, não é insensível a grupo de interesse”. Partilha a mesma opinião?

Eu não creio muito, quer dizer, acredito que existe esse tipo de lobbies e interesses, como existe em todo o lado como tudo. Agora, não tenho nenhum complô acerca disso. O que tenho a dizer da minha parte é que tenho mais problemas comigo do que com os outros. A minha grande luta é lutar contra os meus problemas. É trabalhar bem, é conseguir escrever coisas boas, como também fazer filmes bons. É fazer um bom trabalho. Isto aqui é a minha luta, sendo que não tenho muita queixa dos outros. Raramente digo “ai não me deram o subsídio”. Por acaso tive sempre sorte. Mas isso não é um problema. O problema é lutar contra ti. Por vezes dizemos que não fazemos o filme por isto ou por aquilo, isso resulta porque metade das coisas que não consegues é lutar contra ti mesmo. Não acredito nisso, nessa “força” enorme. Mas atenção, eu acho que há lobbies por todo o lado.

Como vê as mudanças implementadas na questão dos júris dos concursos do ICA que tanta celeuma criaram em alguns meios?

Não estou muito preocupada. Mas parece que as associações dos realizadores podiam escolher os representantes ou anunciar alguns nomes. Eu por mim não percebo nada. O que percebo é o porquê de funcionar com juris. Porque legalmente tem que funcionar. Mas no meu sistema ideal preferia que houvesse comissões, por exemplo, trianuais, que fariam uma política trianual, que decidissem quem filma, quem é que não filma e quem é que vai filmar. Pessoas que não fossem os mesmos júris para cada concurso, mas que terminassem passados três anos e saibam a política a seguir. Quanto aos concursos em que uma pessoa apresenta os projetos, e que tanto faz se aquilo é de uma cor ou cinema comercial, são coisas que não fazem sentido nenhum, pois as pessoas vão rodando e nenhuma dessas está a dar pontos indiscriminadamente nos currículos. Num currículo, bem podes ter um ou ter dez [filmes], conforme lhes apetece. Portanto, se estás a ser julgada por um júri o teu currículo tanto vale ter cinco como dez [filmes]. É conforme os concursos. O que é que uma pessoa pode dizer a isto, não é?

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Irene Ravache em "Yvone Kane" (2014)

Tem algum projecto de sonho que devido à conjuntura não conseguiu ainda concretizar? Há algum projecto no futuro?

Tenho muitos, mas vai disto que estava a dizer, que por vezes tem que se abdicar de algumas coisas. Por exemplo, para além de filmar também dou aulas. Às vezes o meu trabalho na escola toma muito tempo para eu fazer outras coisas. Teria que abdicar disso, ou pelo menos tirar um ano. Mas tenho com certeza outros projetos. Tenho um inserido neste último concurso, que é um documentário e acabei de escrever uma ficção, a qual vou apresentá-la no próximo concurso.

Como vê os festivais e que papel desempenham no cinema português?

Os festivais acabam por ser isso, uma rede. Como curadores de arte, os curadores de festivais escolhem os filmes a serem projetados e isso aí é política pura e dura. As pessoas podem ter olhos para o teu filme mas há sempre milhões de filmes tão bons como o teu, ou tão maus como o teu, a concorrer. Por isso, mesmo que o teu filme seja muito bom, ele deve estar protegido para poder “vingar”. E isso é o jogo mais político que se possa imaginar. É muito complicado, é preciso ter uma rede e depois os filmes vêm com aquele rótulo de festival e aparece sempre um distribuidor que só compra o filme que teve em festival X, ou seja, os festivais acabam por condicionar o distribuidor, assim como tudo. É quase como um rótulo. Penso que o papel deles nunca é demonstrar filmes às pessoas que nunca viram tais, mas sim, simplesmente uma ‘coisa’ política, porque muitas vezes esses festivais grandes, como em Veneza, temos sessões em que não aparece lá ninguém. É apenas o esquema todo à volta.

"Yvone Kane": somente vultos presos na memória

Hugo Gomes, 06.03.15

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“Yvone Kane” marca o regresso da realizadora Margarida Cardoso a Moçambique, a terra que a viu nascer, 11 anos depois da sua primeira longa-metragem de ficção, “A Costa dos Murmúrios'' (2004). Enquanto na sua obra anterior adaptava um romance homónimo de Lídia Jorge, aqui toma total liberdade criativa no argumento e o resultado é um intimismo com a intriga. “Yvone Kane'' é um filme sobre perdas, aliás todas as personagens deste registo narrativo sofrem desse mesmo mal, funcionando como uma alusão às memórias coloniais e dos traumas das guerras que teimam em não ser dissipados.

A história segue uma jornalista, Rita (Beatriz Batarda), que encontra num novo trabalho de investigação, a da misteriosa morte da ex-guerrilheira e ativista Yvone Kane, num escape à tragédia embutida no seu quotidiano. Assim, Rita segue para Moçambique, país que tão bem conhece devido às suas raízes. Nele reencontra a sua mãe, Sara (Irene Ravache), uma mulher que luta para obter um ponto de redenção da sua vida passada, enquanto enfrenta um fim predestinado.

“Yvone Kane” é um trabalho cuidadoso que se mantém longe da mensagem explícita, investindo numa narrativa por vias de barreiras físicas, como se o contacto direto com esta fosse uma tarefa intransponível. A câmara de Cardoso ostenta essa fobia e filma uma intriga que recorre muitas vezes ao uso de reflexos, janelas e redes, como se as personagens se envolvessem em proteções com o redor devastado por espíritos aprisionados, como é referido na passagem do hotel assombrado nas proximidades do desfecho. O pretexto para este retrato de legados e descendências de “fardos penosos”, a misteriosa morte de Yvone Kane (Mina Andala), nunca é devidamente explorado, nem sequer é conclusiva para a verdadeira essência da fita, que subliminarmente parece garantir-nos que não estamos perante de um thriller político.

Mas como havia sido referido, o filme de Margarida Cardoso nunca ofereceu nada como gratuito (os planos discretos são tais indícios dessa virtude narrativa). Ao invés, tudo nos remete a um retrato da ausência, o convívio entre mortais e fantasmas e o alcance da imortalidade arrependida através de um prometido mundo pós-morte. Mesmo sob a invocação desses vazios, “Yvone Kane” é acima de tudo uma coletânea de memórias. Curiosamente, tudo começa num cemitério e termina num enterro, sem a utilização de misticismos. Tal como é citado a certa altura,  “a vida é estranha, não é“?