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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Temos produtores e paixão!", nas saunas da intimidade com Anna Hints e Tushar Prakash

Hugo Gomes, 09.10.24

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Smoke Sauna Sisterhood

As saunas, hoje apropriadas por um certo sistema de castas ou como um escape de uma sociedade febrilmente acelerada, são parte integrante da tradição estoniana, estendendo-se a outras nações vizinhas. Não vamos abordar as suas propriedades medicinais, nem a "fuga à realidade" que as metrópoles "franchisaram", e sim do seu lado confessional. É através desta última faceta que a dupla Anna Hints e Tushar Prakash nos envolve em dois filmes que explora traumas, intimidades, géneros e irmandades. "Smoke Sauna Sisterhood" (2023, prémio de Realização na categoria de World Cinema - Documentários no Festival Sundance) retrata a ligação entre mulheres, as suas histórias e experiências, ecoando naquele espaço — não numa busca por compreensão, mas numa escuta atenta. Já a curta-metragem "Sauna Day" (2024), onde o silêncio é a linguagem predominante, invoca uma ligação xamânica entre homens que desafiam convenções e as pressões historicamente impostas sobre os seus ombros.

Estes filmes abordam temas profundamente contemporâneos, da imagem aos corpos, o nu sem festins, mas o nu a descoberto, entre homens e mulheres, que se tornam nos maiores contadores de histórias. No contexto da 7.ª edição do festival BEAST, que decorreu de 25 a 29 de setembro, e da iniciativa da Embaixada da Estónia, o Cinematograficamente Falando … conversou com estes autores, abordando confissões, processos criativos e, sobretudo, a confiança — a sua maior arma (ou melhor, desarma) no Cinema.

Portanto, o vosso díptico - o “Smoke Sauna Sisterhood” e o “Sauna Day” - decorre e ocorre no mesmo ambiente, mas são filmes completamente diferentes entre si. Então, talvez comece com o primeiro que foi lançado, o “Smoke Sauna Sisterhood”, do qual o Tushar Prakash contribuiu na montagem.

[Dirigindo a Anna Hints] Algo que me impressionou foi como conseguiu criar um elo de confiança para com estas mulheres? O qual sem ela não seria possível a concepção deste filme.

Anna Hints: Bem, antes de mais, acho que este filme foi possível porque venho da cultura da sauna de fumo. Portanto, sim, essa é uma questão muito importante quando queremos representar uma cultura ou uma comunidade: qual é o teu acesso e qual é a tua relação com essa comunidade? A cultura da sauna de fumo é específica do sudeste da Estónia, no sentido em que tem uma expressão mais forte nessa região. Também existe em algumas ilhas, mas o património que está sob a proteção da UNESCO e que ainda se mantém vivo é no sudeste da Estónia, particularmente nas culturas indígenas de Võromaa e Setos. Portanto, sim, considero que isso foi crucial, pois faço parte da comunidade. Era como se as pessoas, as mulheres lá, tivessem confiança que representasse a cultura de uma forma fidedigna.

A segunda questão é que há muitos aspetos a considerar, especialmente porque estas mulheres estão completamente despidas. Na verdade, o grande desafio para mim foi garantir que este olhar não crítico, que existe na sauna de fumo, se mantivesse quando estamos juntas, a sangrar juntas.

Sim, quando estamos na sauna de fumo juntas, temos corpos diferentes. Estamos a suar, a sangrar, a urinar juntas, e não há objetificação entre nós. Não existe esse olhar crítico. Mas, ao mesmo tempo, na sociedade, os corpos femininos nus são tão sexualizados, tão objetificados. De facto, um grande desafio para mim foi como garantir que este olhar não sexualizado também se transferisse para o cinema.

Tenho uma licenciatura em fotografia e estou muito consciente de que, sempre que se pega numa câmara, esta nunca é objetiva. A câmara é sempre subjetiva, sempre tem um olhar. Assim, antes de me encontrar com as mulheres e de filmar, dediquei tempo com o diretor de fotografia para calibrar o nosso olhar através da lente. Fomos juntos à sauna de fumo e filmámos o meu corpo nu, à procura de uma linguagem. Depois, queria mostrar às mulheres de que maneira é que a nossa câmara estava a tratar os seus corpos.

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Anna Hints

A montagem também teve algum papel importante na dessexualização destes corpos?

AH: Não. A edição não pode salvar nada quando se começa a pôr realmente tempo. O que estou a dizer é que, imagina que passámos horas e horas com um cinematógrafo a filmar o meu corpo e a encontrar essa maneira de filmar. Começa já com a forma como filmas, porque a câmara é um olhar. E, tendo um diploma em fotografia, quando alguém diz que "a câmara é objetiva", isso é uma grande mentira. A câmara nunca é objetiva. Portanto, mesmo esta situação aqui poderia ser filmada de uma forma excessivamente sexualizada ou com uma certa dinâmica de poder. 

Assim, estávamos a explorar isso e a encontrar esta chave visual. Depois, mostrei-a às mulheres porque queria que elas clarificassem e verificassem como é que a nossa câmara estava a tratar os seus corpos? Como se sentem? Se estão confortáveis com isso? Todas se sentiram seguras e bem. Na verdade, o material que entrou na edição já não continha essa sexualização. Também é muito importante dedicar tempo a encontrar essa chave visual anteriormente, porque todas aquelas histórias que ouves vêm naturalmente das mulheres. Elas não são escritas. Não sabíamos. Não sabíamos a cada vez que íamos.

Tushar Prakash: Cada vez que íamos à sauna de fumo, era simplesmente o embate com o desconhecido.

AH: Eu não sabia que histórias iriam surgir. Não era uma questão de: "Oh, vamos falar sobre antes disto". A chave é ter certeza em relação à nossa abordagem, à nossa linguagem, para que, quando entrássemos na sauna realmente aquecida a 80 ou 90 graus, não começássemos a procurar algo, ou a repetir também as histórias. Tinha que ser algo que se capturasse. Acho que o material que foi para a edição já estava — vamos dizer, entre aspas, dessexualizado.

TP: Nós não tínhamos um olhar dessexualizado de todo. O material já estava bastante... adequado nesse sentido. A Anna também esteve presente na edição durante todo o processo, como também foi uma das editoras. Tivemos sempre essa orientação na edição para manter essa sensibilidade ao longo de todo o processo também.

AH: Mas isto é, por um lado... é uma resposta mais longa à tua pergunta sobre como foi trabalhar com estas mulheres. Uma das coisas que me perguntaram é: "Como é que as convenceste?". Acho importante salientar que as não convenci. Sabia perfeitamente que fazer este filme só seria possível quando não houvesse nenhum traço de persuasão.

No sentido em que não posso dominar a voz delas. O que fiz foi que, quando conheci as mulheres do sul e da comunidade, fui muito transparente sobre o que queria fazer. Depois perguntei se queriam fazer parte deste projeto, ao que me responderam que sim. Quando senti que a resposta era um não ou um talvez,não insisti. Ao mesmo tempo, fiz o filme durante sete anos, e o processo de edição foi de dois. Sinto que a sociedade também mudou. Houve o movimento #MeToo, e algumas mulheres começaram a reconectar-se comigo e disseram: "Ok, agora quero estar no filme."

E a terceira coisa que é muito importante e que, normalmente, quando alguém diz "sim, quero estar num filme", é o facto da produção trazer papeis legais, para que se assina antes das filmagens, basicamente cedendo os teus direitos antes de qualquer processo. E isso parecia tão errado para mim. Como realizadora, é crucial saber quem são as pessoas com quem trabalhas.

Tenho que realmente congratular e celebrar a minha produtora, Marianne Ostrat, que assumiu connosco um grande risco, ao concordámos que não assinariamos nada antes. Imagina, estivemos a filmar durante sete anos e tínhamos um acordo de que só quando tivéssemos o corte na edição do qual estivéssemos satisfeitas é que mostraríamos às mulheres. Elas teriam o direito de dizer sim ou não até ao fim. Portanto, isso significa que alguém poderia ter dito não e perderíamos todo o projeto. O filme foi possível porque não as convenci, e sim, lhes mostrei como a nossa câmara estava a tratar os seus corpos. Todos concordaram. Não obtive nenhum não.

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Smoke Sauna Sisterhood

Como é que criou esta atmosfera de intimidade, sabendo que havia uma equipa presente. Sabemos que uma pequena equipa que estava lá. Portanto, como é que se chega a um ponto de confiança em relação a essas pessoas se abrirem-se desta maneira, sabendo que a equipa irá ver e testemunhar as suas confissões? A confiança para chegar e dizer "Ok, precisamos da perch."

AH: Havia um diretor de fotografia, um operador de som e eu. O que é também muito interessante é que, devido à falta de diretora de cinematografia na Estónia, eram todos homens. Portanto, havia um diretor masculino, o Ants Tammik. O que fiz para lidar com isso foi que, uma vez que mostrei como estávamos a tratar os seus corpos, também perguntámos quem queria mostrar o rosto e quem não queria. Assim, elas tinham confiança nisso. Além disso, tinham a certeza de que iriam ver o material, pois não tinham assinado nada. Também passámos tempo juntos, porque estávamos a filmar no campo. Elas passaram tempo com o diretor de fotografia e o operador de som e sentiam-se bem na presença deles, seguras diria. Tudo funcionou lindamente. Acho que este é um dos aspectos mais importantes da realização de um filme: como criar essa confiança.

Estivemos a passar tempo juntas fora da sauna de fumo, mas havia a condição de que não falássemos sobre o que íamos discutir na sauna. Garanti que não entrássemos lá com essa intenção, como também não haveria pressão para o que iriam dizer. Podíamos simplesmente ir para lá e ficar em silêncio. Ao mesmo tempo, sabia e tinha confiança de que as histórias começariam a surgir. Além disso, tínhamos o tempo a nosso favor.

Acho que, quando fazes essa pergunta sobre como foi possível, tens que ter crucialmente tempo. Quando tens uma equipa pequena e crias todo o processo de filmagem de uma forma que não é apressada, tens que dedicar tempo; assim, essa intimidade pode evoluir. Todos tinham o direito de se afastar ou de não entrar. Mas funcionou maravilhosamente. Tenho pensado nisso, e é bastante louco, porque foi fisicamente desafiador. Era realmente uma sauna de fumo quente, a quase 90 graus. Uma sessão de sauna de fumo dura três ou quatro horas. Também podes pensar nisso: não era como se disséssemos: "Entramos na sauna de fumo e imediatamente começamos a falar." Talvez a primeira hora tenha sido apenas para nos sentarmos, ajustarmo-nos, e estarmos confortáveis com a situação. As histórias começaram a surgir na segunda hora. Mas tínhamos tempo. E, de alguma forma, porque o processo era transparente, havia confiança de ambas as partes. Era apenas o operador de som, o de fotografia e eu. Ninguém mais.

Existe algo que me fez refletir no vosso filme. Algo contra os tempos em que vivemos, porque estamos a ouvir estas mulheres falarem durante 10 minutos sobre as suas histórias e nunca as interrompemos, nunca respondemos, e elas nunca sentem que precisam de uma resposta. Hoje em dia, mesmo nos documentários, há uma necessidade de se responder a tudo. Aqui, apenas limitamo-nos a ouvir. 

AH: Isso é muito verdade e preciso! Porque comecei realmente a perceber o poder de ouvir enquanto fazia o filme. E, de facto, é o oposto. Em muitas maneiras, o espaço da sauna de fumo é um antídoto para este mundo em que vivemos agora, onde temos de dar opiniões o tempo todo, de responder, de comentar, de dizer se gostamos ou não gostamos. Estamos sempre nas redes sociais, sempre, o tempo todo. Mas na sauna de fumo, ao entrares, entras nu. Só isso já é diferente. Na sociedade, temos as nossas roupas. As roupas físicas, mas também as roupas metafóricas, como "Eu sou isto, eu sou aquilo", as definições que damos de nós mesmos. Agora, imagina que entras neste útero escuro e tiras todas essas roupas. Todos estão nus ali. Todos têm o direito de existir. Ninguém te julga.

Com o calor, primeiro as camadas mais profundas de sujidade física começam a emergir, e depois também a "sujidade" emocional começa a vir à superfície. O calor é super importante, como também a escuridão – não há eletricidade. Lavar a alma significa exatamente isso: quando as emoções, quando as histórias começam a emergir, os outros apenas ouvem. Percebi que há um enorme poder em dar voz à nossa história e dar espaço para ouvir as histórias dos outros. Pensei muito nisso e percebi que é como alguém partilhar, e os outros não comentarem, apenas ouvirem. E, através disso, o ato de ouvir torna-se num ato poderoso, é como testemunhar. É como dizer: "Testemunhei a tua realidade." E, ao fazer isso, dás à outra pessoa o direito à sua própria realidade. Não há competição de realidades. Não há julgamento das realidades.

Smoke Sauna Sisterhood” não significa que temos de partilhar as mesmas realidades ou sentir o mesmo em relação ao mundo. Realidades diferentes podem coexistir naquele espaço escuro. É na verdade, uma sensação super poderosa. Coexistir com todos esses corpos diferentes, com essas experiências diferentes. Exatamente. Não há julgamento, e também não há julgamento em não responder, porque muitas vezes, quando achamos que estamos a ouvir, já estamos a pensar em como vamos responder, ou no que vamos ensinar ou pregar. Mas aqui é simplesmente: "Essa foi a tua história..." E digamos que partilhas uma história, e talvez ressoe, talvez crie algo em mim, e depois simplesmente partilho a minha história. Mas não comento a tua.

Agora passamos para o “Sauna Day” … há algo cómico nele, porque com as mulheres temos um filme longo, já que elas falam, mas os homens não falam uns com os outros, por isso, temos uma curta-metragem. Como surgiu a ideia do “Sauna Day”? Foi uma resposta ao “Smoke Sisterhood”, ou tentaram usar a mesma abordagem com os homens?

AH: Sim, de certa forma, pode-se dizer que o “Sauna Day" nasceu da experiência do “Smoke Sauna Sisterhood”. O que me fascinou foi que, apesar de termos este espaço incrível da sauna de fumo na nossa cultura, a forma como se expressa a vulnerabilidade e a intimidade não é a mesma entre os géneros. Mesmo no Sul, onde temos a sauna de fumo e os homens também vão lá, eles não partilham ao mesmo nível que as mulheres. Comecei a ficar realmente fascinada pela forma como se evita a intimidade. É como se as palavras que os homens usam não fossem importantes, de certa forma. Eles falam sobre trabalho, sobre política, mas o que começa a ser realmente interessante é o que não estão a falar e como retratar isso.

No “Sauna Day”, vemos dois homens que estão lá, conversam, mas não o fazem através de palavras. É através do silêncio. Sim, é na ação. Isso tornou-se interessante para nós, ao compararmos os dois filmes: enquanto em “Smoke Sauna Sisterhood” as mulheres partilham a sua voz, expressando-se através das palavras, na sauna, eles partilham sem palavras.

Quando viajei com o “Smoke Sauna Sisterhood" por toda a Estónia a mostrar o filme … oh, meu Deus! … em cada sessão havia sempre um homem na audiência que dizia: "Como é possível que quando vamos à sauna, falamos apenas de coisas triviais, em vez de abordarmos o que realmente importa? Por que evitamos a intimidade?" A partir daí, comecei a receber propostas. Não conheço essas pessoas, mas elas enviaram-me cinco propostas por e-mail: "Oi, Anna, eu dou-te dinheiro. Por favor, faz o ‘Smoke Sauna Brotherhood’." E claro, essas pessoas não têm ideia de quanto custa fazer um filme, mas foi tão doce. Uma delas disse: "Poupei 2.000 euros. Podes fazer um filme com isso?" Isso fez-me perceber que sim, há uma necessidade de abertura, mas existem barreiras e medos enormes. Dessa forma encorajava: "Antes de fazer qualquer filme, comece por abrir-se. Seja a primeira a dar o primeiro passo."

Sauna Days

Estamos todos à procura de conexão humana, mas, de alguma forma, gostamos de fazê-lo de forma confortável. No entanto, acredito que não há outra forma do que aceitar a desconfortabilidade, porque para se conectar, é necessário ser vulnerável. E quando não estás habituado a isso, torna-se desconfortável. É também assim que os homens, e Tushar pode falar mais sobre a masculinidade tóxica que vocês enfrentam, sentem a pressão e o conceito do que é um “homem forte”. 

Essa força é vista como uma forma de evitar a intimidade. A intimidade e a vulnerabilidade são frequentemente percebidas como fraqueza. Por isso, onde quer que vá, tento questionar essa perspectiva, porque, para mim, a verdadeira força reside na coragem de ser vulnerável. Além disso, talvez possas falar sobre a troca de códigos e o que retratámos nesse contexto [dirigindo-se para Tushar].

TP: Em relação à masculinidade tóxica, uma coisa que também gostaria de acrescentar sobre o “Smoke Sauna Sisterhood” é que, durante a edição, tomámos uma decisão muito consciente: nunca se expressa uma opinião sobre os homens no filme. Não dizemos: "os homens são assim" ou "os homens são assado". Eles são retratados através das histórias. Essa foi uma escolha deliberada na edição. Através dessas narrativas, mesmo o público masculino, ao ver o filme, pode vivenciar a experiência que as mulheres estão a partilhar. De certa forma, uma opinião bloqueia a empatia, mas quando uma história é narrada, e uma mulher se mostra vulnerável ao compartilhar o que viveu, os homens ou qualquer pessoa podem conectar-se com essa experiência.

Uma das melhores coisas ao mostrar o “Smoke Sauna Sisterhood" em todo o mundo foi ouvir o público masculino dizer que também se sentiu conectado ao filme. Eles não se sentiram excluídos, mas parte da narrativa. É por isso que quando Anna contou a história de homens que a procuraram e disseram: "Podes, por favor, falar também sobre a nossa vulnerabilidade?", ficou claro que eles desejavam vivenciar isso também, o que me deixa muito orgulhoso.

O “Sauna Day” me fascina por abordar temas como masculinidade, intimidade masculina, e a toxicidade associada a isso. O filme é definitivamente sobre a intimidade masculina e a incapacidade dos homens de se conectarem emocionalmente. Eles carregam o peso de ter de se conformar aos padrões de gênero, de ganhar dinheiro e de se integrar na sociedade. Carregam o fardo dos mitos dos seus antepassados sobre o quão arduamente trabalharam. Conhecemos homens assim na Estónia rural e também na minha família na Índia, que estão sempre a tentar viver à altura das expectativas dos homens que vieram antes deles. E nunca conseguirão, porque quase mitificaram a ideia de seus antepassados, que carregavam 100 quilos de peso, que morreram no trabalho ou que trabalharam de manhã à noite em temperaturas de menos 20 graus.

Esses homens sentem que nunca serão tão bons quanto seus avós ou pais. Isso cria um espaço onde não conseguem abrir-se, onde não conseguem ser íntimos, pois veem a intimidade e as emoções como fraquezas que os tornariam incapazes de funcionar na sociedade. Isso sempre me fascinou. O “Sauna Day” foi um passo para explorar essa dinâmica.

Sim, a sauna é um cenário realmente interessante para explorar ideias e experiências humanas. Também sentimos que os homens são vítimas do patriarcado, não apenas as mulheres. As mulheres, sem dúvida, são as mais afetadas; “Smoke Sauna Sisterhood” mostra isso de forma muito clara. Mas os homens também sofrem sob as mesmas pressões. Sentimos que havia espaço para explorar isso.

Uma questão que o filme também aborda é a troca de códigos: como, quando os homens falam e participam na sociedade, eles se conformam a padrões de gênero, mantendo conversas factuais e abordando assuntos superficiais, como o telhado ou outras banalidades. A linguagem torna-se uma espécie de pele, uma roupa que esconde a verdadeira essência deles, uma forma de se encaixarem na convivência. Porém, quando as palavras emergem do espaço da sauna e os dois personagens ficam sozinhos, surge uma nova linguagem: a linguagem dos corpos, dos gestos, dos instintos, onde talvez o gênero, a sexualidade e os relacionamentos sejam mais fluidos e as coisas não possam ser nomeadas com clareza. Isso foi algo que desejávamos explorar.

Queríamos também que o filme não parecesse estrangeiro à comunidade onde foi filmado, mas que fosse visto como uma história do seu próprio meio. Esse foi um dos nossos desafios: como fazer o filme parecer parte da comunidade. Conseguimos ultrapassar essas barreiras, fazendo com que a comunidade visse o filme como uma história sobre amizade masculina ou uma excelente sessão de vapores entre dois homens. Não precisavam interpretá-lo como um filme queer, mas sim como um filme sobre homens a partilharem algo importante entre si.

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Tushar Prakash

AH: Isso é verdadeiramente fascinante. O que estás a falar, essa troca de códigos ou code-switching, e o ritual que desempenhamos na sociedade, é algo que realmente explora camadas profundas do comportamento humano. Por exemplo, o ato de usar o ramo de vihtas na sauna, que vemos como um ritual amplamente aceito na cultura da sauna, carrega muito mais significado do que aparenta. O “whisking” [ato de chicotear com as ervas vihtas] pode ser visto de várias formas. Por um lado, é apenas um ato físico, um cuidado corporal tradicional, mas, ao mesmo tempo, pode ser interpretado como algo tão íntimo quanto fazer amor. Há algo incrivelmente ambíguo nesse gesto.

O que me parece particularmente interessante é a incapacidade ou relutância de nomear os sentimentos, porque há esse medo profundo de que, ao nomeá-los, damos-lhes existência. O que nos fascinou foi como, mesmo nesse ato de whisking, há tanto uma presença de intimidade quanto uma tentativa de evitá-la. É um jogo constante entre a proximidade e a distância. Esse jogo de tensões é essencial nas comunidades retratadas.

Um momento particularmente marcante foi quando o filme foi exibido em uma grande praça ao ar livre em Tartu, em agosto passado, e cerca de 1.500 pessoas estavam a assistir. O que foi realmente interessante foi a diversidade de reações que recebemos. Homens vieram até nós dizendo: "Isto é exatamente como me senti quando me separei da minha esposa e fizemos esse ritual do whisking." Foi uma representação tão poderosa das suas emoções.

Por outro lado, mulheres também compartilharam o seu ponto de vista: "Sim, isto descreve perfeitamente os homens estonianos, que não falam sobre as suas emoções." E ainda havia o feedback da comunidade queer, que também se sentiu profundamente conectada: "Isto é tão queer. Esta é exatamente a nossa experiência."

A riqueza de interpretações foi incrível. Foi fascinante ver como cada grupo encontrou uma ligação diferente com o filme. Certos códigos de intimidade que talvez não sejam compreendidos por todos, especialmente por aqueles fora da comunidade queer, ainda ressoaram de forma universal. As pessoas conseguiam entender tanto a presença da intimidade quanto a sua ausência, bem como a tensão entre evitá-la e desejá-la.

Essa capacidade do filme de falar de forma tão abrangente e, ao mesmo tempo, tão pessoal a diferentes audiências é algo que realmente nos tocou. Mostra como os rituais culturais e os gestos humanos são capazes de transcender as barreiras de linguagem e identidade, conectando-se a algo mais universal e profundo sobre a experiência humana.

TP: Os códigos são muito culturais. Desculpa, só um pequeno desvio. Mas, na Índia, os homens adoram dar as mãos, e estes são homens que não se identificam como queer. São homens que têm esposas, filhos, mas gostam de dar as mãos. Lembro-me que, sempre que os meus amigos vinham da Europa, olhavam para isto e diziam: "Uau, estão numa relação ou algo assim?" Não, dizia eu, isto é uma forma de partilharem intimidade. É uma forma de partilharem a sua amizade. 

Temos de perceber que estes códigos de intimidade são muito baseados na cultura. Só um pequeno facto trivial. Estou a estudar folclore, por isso tenho observado estes pequenos códigos culturais e tudo mais.

Segundo a minha experiência, normalmente, a intimidade e de partilha entre homens acontece à volta de uma mesa, álcool à mistura.

AH: Mas também, algo que me interessa muito - visto que estou a fazer o meu mestrado e agora consegui articular sobre o que quero escrever, o qual chamo de “cinema físico”. Temos o teatro físico quando referimos teatro, mas o cinema físico e como trazer o espaço, o corpo e a fisicalidade para o cinema, de forma a que o sintas no teu corpo. É isso que me fascina. Tendo formação em arte contemporânea e fiz muito... como se diz? … performances ligadas ao espaço. Uma performance site-specific, em que tens o corpo, e o corpo que respira, o corpo que cheira, o corpo que existe, o corpo do público, e tu sentes isso. Para mim, sempre houve esse dilema entre o filme e a arte que estava a fazer. Muito bem, mas algo está a faltar. Como fazer com que o ecrã cheire, que transpire, que o sintas nos ossos? Nesse sentido, a sauna de fumo é um espaço muito generoso. Sim, poderia haver uma cena onde os homens estão a beber e a falar, mas o que me fascina mais é o corpo, está molhado.

Sim, e eles também estão a falar sobre isso. A própria pulsação manifesta-se. Sim. Às vezes, quando estás a trabalhar com atores, há certas palavras que podemos dizer. "Está um dia bonito." Mas o que estamos realmente a dizer? Qual é o subtexto? Interessa-me esses subtextos. Interessa-me o que estamos a dizer ou o que não estamos realmente a dizer, e encontrar formas de capturar isso

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Sauna Day

Sobre essa exposição na “Smoke Sisterhood Sauna”, nenhuma mulher dentro da sauna mostra o rosto, exceto uma pessoa (Kadi Kivilo). E essa mulher acaba por se tornar a principal ouvinte, a personagem principal. Como surgiu essa ideia? 

AH: Sim, ótima pergunta. Então, essa mulher é a Kadi Kivilo. Ela é uma amiga de longa data, e entrou no projeto no segundo ano de filmagens. Foi assim que aconteceu: ela sabia que estava a fazer o filme e contactou-me, dizendo: "Quero estar no filme com o meu rosto, com o meu nome, a 100%." Antes disso, já tinha perguntado às mulheres quem queria aparecer com o rosto e quem não queria. Para mim, isso tornou-se também um documento interessante do nosso tempo, porque muitas mulheres estavam dispostas a mostrar os seus corpos, mas não os seus rostos. 

Isso mostra o quanto ainda existe vergonha, o quanto ainda há medo. E, quando pensamos na Estónia, é importante lembrar que é uma comunidade muito pequena, uma população de apenas 1,3 milhões de pessoas. Então, quando a Kadi disse que queria aparecer com o rosto percebi a sua presença total. Ela o fez através do rosto, porque com ele, ofereceu ao público uma face com o qual nos podemos relacionar e ouvir. Além disso, tem essa capacidade natural de escutar plenamente. É incrível a forma como ela ouve. Foi aí que percebi que isso era a chave. Depois disso, foi a pessoa presente em todas as saunas de fumo. Ela participou em todas. Tornou-se a guardiã da sauna. Foi assim que estruturamos o filme. Lidera o acendimento do fogo na sauna de fumo, mantém o espaço e dá-nos a oportunidade de ouvir, juntamente com ela. Foi realmente incrível. Tudo aconteceu de forma muito orgânica.

Têm novos projetos?

AH: Sim, estamos a trabalhar numa longa-metragem.

Podem falar sobre essa longa’? 

AH: Ainda não, não chegámos a esse ponto. Temos 15 páginas de treatment escritas.

Quinze

AH: Sim, páginas do treatment. É como um esboço. Portanto, estamos na fase inicial de desenvolvimento. Mas…

TP: Vamos seguir um pouco a superstição de Fellini, que ele tinha de não querer falar sobre a história antes de ela estar escrita [risos].

Diz-se que Fellini consultava médiuns para “saber” se os filmes seriam êxitos ou não [risos] …

AH: Isso é muito interessante. Acho que, embora não vá a médiuns, sei disto: o que faço é testar a minha voz. Preciso de me isolar dos outros. Este verão, estivemos no sul da Estónia, no campo, porque, depois de ganhar no Sundance, estive a viajar sem parar. E surgiu esta pergunta: "Anna, o que vais fazer a seguir?" Sabes, aquela pressão. E então percebi que tinha de simplesmente... ir lugar onde nem sequer havia sinal. Conectei-me verdadeiramente comigo mesma, com a natureza e com a minha voz interior. E fiquei muito feliz porque, na verdade, tive ideias para cinco filmes. Elas fluíam naturalmente, e senti-me forte em relação a todas. A questão então tornou-se: não vou a médiuns, mas entro num espaço dentro de mim para testar, para perceber que essa voz para o filme vem de dentro, que não é algo para provar a alguém, ou para fazer um filme para um festival, ou o que seja. Sei que essa é a única forma de ser criativamente livre, de não estar a fazer filmes para festivais.

Fazer um filme é um compromisso tão grande, que leva vários anos. E tem de se tornar numa sensação corporal. Tens que sentir isso. Não preciso que um médium me diga se é forte, sinto-o, dentro de mim, se é forte. E também essa disposição para falhar completamente. Acho que isso é super importante. Falhar, aos olhos de outra pessoa, porque não estás a fazer para agradar alguém. Para isso, preciso de me afastar dos médiuns e ir ao meu núcleo. E sim, depois surgirão estas ideias, e percebemos que, é nisto em que devemos trabalhar. Temos produtores e paixão.

TP: Também preciso fazer algo semelhante. Como ir a um retiro de meditação de 10 dias em total silêncio. Quando o ruído desaparece, o teu cérebro começa a dizer-te: "É este o filme? Este filme está realmente a vir de um espaço honesto? O que é que neste filme te afeta verdadeiramente?" E aí as peças começam a juntar-se. Depois disso, vou fazer o Caminho de Santiago também. O mesmo objetivo: duas semanas para assentar os pensamentos, com papel e caneta, a escrever, para realmente juntar as peças e ver como me sinto.

Acho que é muito importante não partilhar logo no início porque precisas dessa conexão contigo mesmo primeiro. Precisas de entrar em contacto com a ideia, sentir se realmente vem de dentro. Só depois, então, podes começar a partilhar a história com o mundo.

Próxima paragem: Estónia e arredores, com Porto no coração do 7º BEAST IFF

Hugo Gomes, 25.09.24

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Dark Paradise (Triin Ruumet, 2023)

Depois da Eslováquia, o “comboio” BEAST IFF embarca na Estónia, novamente com uma mostra rica de cinema proveniente daquelas andanças e ares, sem nunca olhar a meio às suas periferias. É o Cinema do Leste novamente a encher o Porto, a partir de hoje (25 de setembro) até ao próximo dia 29, com projeções no Batalha Centro de Cinema, Cinema Trindade, Cinema Passos Manuel, e eventos paralelos, conversas, exposições e DJ sets, na Livraria Térmita e no OKNA

A abertura traz ao grande ecrã três curtas-metragens que definem, e bem, o tom desta sétima edição, com destaque para “Sauna Day” (estreado no último Festival de Cannes), de Anna Hints (que o circuito nacional a reconhecerá de uma outra sauna confessional - “Smoke Sauna Sisterhood”) e Tushar Prakash, um olhar a uma sauna masculina com invocação quase xamânica. Além do filme de Hints / Prakash, a sessão inaugural contará ainda com “Heiki on the Other Side” (2022), de Katariina Aule, comédia negra com o submundo pós-vida à mistura, e “Miisufy” (que teve estreia no último Sundance), de Liisi Grünberg, animação sobre a dualidade real / virtual com inspirações reconhecíveis ao fenómeno Tamagotchi, reforçam a oferta rica e variada deste ano. Os realizadores de “Sauna Day”, a realizadora Katariina Aule e a produtora de “Miisufy” (Aurelia Aasa) estarão presentes na sessão.

Contudo, o Cinematograficamente Falando … dará voz a quem esteve realmente por trás deste evento, desta seleção e desta perspectiva que encherá o Porto nos próximos quatro dias, Radu Sticlea e Teresa Vieira, os diretores artísticos e programadores, repetiram o convite de responder e de desvendar os cantos e recantos desta sétima celebração do BEAST. O comboio não pára!

Com a Estónia enquanto país-homenageado desta edição, pergunto quais foram os critérios usados na selecção dos filmes e eventos que melhor representam o panorama cinematográfico contemporâneo e histórico do país?

O trabalho de desenho de programação advém de uma combinação de factores. Desde logo com os materiais a que o festival tem acesso, graças ao apoio dos nossos parceiros institucionais (como o Instituto de Cinema da Estónia e do Centro de Arte Contemporânea da Estónia, por exemplo). Materiais que advêm de pedidos já de si direcionados pela equipa curatorial do festival. 

O BEAST tem, no seu core, uma atenção para com trabalhos com assinatura de pessoas dentro do amplo espectro da identidade de género (que se traduz numa preocupação de criar uma programação com diversidade de género), uma atenção para trabalhos tanto do presente como do passado, uma atenção para com trabalhos de escola, uma atenção para com obras de videoarte, entre outras. A partir desta base, a equipa permite-se à descoberta: muitas vezes desconhecendo o caminho, este surge através de um longo e profundo trabalho de investigação. 

O programa emerge como resultado das aspirações iniciais da equipa, revelando-se como o fruto da inspiração que surgiu a partir de todos os filmes com os quais entrou em contacto. Assim, temos este ano uma secção de país de foco diversa: de curtas a longas-metragens; de documentários a ficção; de anúncios televisivos a videoarte.

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Sauna Days (Anna Hints & Tushar Prakash, 2024)

Este ano, a competição oficial conta com uma variedade de géneros e formatos, desde ficção até animação. Como garantem um equilíbrio entre a inovação artística e a acessibilidade ao público nas selecções de "Experimental East" e "AnimaEast"? 

Desde a sua primeira edição que o BEAST conta com as secções competitivas East Wave, East Doc e Experimental East. A secção competitiva AnimaEast foi introduzida o ano passado e mantém-se nesta nova edição. Uma adição que consideramos dar o espaço justo ao universo do cinema de animação num festival dedicado a regiões de forte impacto nesse contexto cinematográfico. 

Os filmes de cada uma destas secções são escolhidos pelos respectivos comités de selecção, que contam com especialistas em cada uma das áreas e com pessoas de diferentes nacionalidades - e isto aplica-se igualmente no caso da competição de animação e experimental. Os critérios de selecção têm diversos parâmetros e aquilo que ressalta é a alta qualidade e a relevância política dos trabalhos que procuramos trazer junto do público. Um público que vemos, desde sempre, tanto com interesse em entrar em contacto com narrativas e formas mais normativas, como com espaços de maior expansão das possibilidades da forma do cinema (que não se fechará nunca numa só caixa - e aqui estaremos, em conjunto com o público, sempre curioses e ansioses por navegar em todas as suas possibilidades).

A secção "Visegrad Film Hub" apresenta um conjunto diversificado de filmes de diferentes origens e temas. De que forma os programas como "LAPILLI" e "Fairy Garden" contribuem para a discussão sobre a memória e identidade da Europa Central e de Leste?

A selecção do documentário húngaro “Fairy Garden" foi feita em conjunto com o HU Verzio Film Festival, um dos festivais com os quais o BEAST colabora no contexto do programa Visegrad Film Hub. Este documentário de Gergő Somogyvári, vencedor do prémio do público da última edição do HU Verzio, encaixa na linha de programação do BEAST de representação queer. Este filme mostra-nos a (tanto dura como bela) realidade de vida de Fanni, uma jovem mulher trans e Laci, um homem de 60 anos sem-abrigo. Vivem juntos num lugar longe do centro de Budapeste. E nesse lugar, que surgiu devido à opressão social, à violência, cria-se uma casa de apoio mútuo, de trabalho para construção de uma realidade melhor para ambos. Uma família cria-se neste contexto: e a beleza surge dos gestos de ternura e amor que observamos e acompanhamos. Neste filme temos um equilíbrio entre o negativo e o positivo: mostrando os potenciais de salvação através de comunidade, de família escolhida, não deixando de lado todas as questões problemáticas da sociedade que essa mesma comunidade (ainda) tem que enfrentar. Questões presentes na região da Europa Central e de Leste mas também em Portugal e no resto do mundo. 

Lapilli” é a mais recente longa-metragem de Paula Ďurinová. Um filme-ensaio de homenagem à vida dos seus avós, tal como um filme que cria espaço para a realizadora lidar com os diferentes estágios de luto. Uma observação cuidada, uma abordagem sensível (como um sussurrar cinemático-geológico) que retrata, através do processo individual e único, algo universal. Ďurinová é uma de várias vozes de grande força no contexto cinematográfico da Eslováquia, e consideramos que este filme é um diamante que deve ser partilhado com o público no Porto

Com iniciativas como o CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, vemos uma abordagem histórica e social ao cinema. Como consideram que estas narrativas dialogam com a actualidade sociopolítica, e qual o impacto que esperam gerar no público português? 

CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL abre uma conversa sobre a riqueza da troca cultural — como as interações diversas entre a Europa de Leste e as nações africanas deram origem a alguns dos movimentos criativos mais profundos. Num mundo muitas vezes dividido pelo racismo e discriminação, percebemos que a 'alteridade' não é algo a temer, mas algo essencial para o nosso crescimento e compreensão de quem somos. Com este programa, esperamos mostrar ao público português que, do outro lado da exclusão, está uma força vibrante e poderosa, alimentada pela diversidade. É ao abraçar essas diferenças que construímos as coisas mais impactantes e significativas, uma filosofia que está no coração do nosso festival e de muitos membros da nossa equipa.

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Queer Fighters of Ukraine (Alex King & Angelika Ustymenko, 2023)

A inclusão do primeiro festival de cinema queer da Ucrânia na secção "Queer Ukraine: Sunny Bunny" (que teve primeira edição no ano passado) merece destaque nesta programação. Que papel esperam que o BEAST desempenhe na promoção de cinema queer no contexto de um festival focado na Europa de Leste?

A ligação entre o BEAST e a Ucrânia tem acontecido ao longo de várias edições de diferentes formas, fora do contexto da secção competitiva do festival. Já tendo sido o País de Foco do festival, e com alguns programas especiais fora de competição, desde 2023 que temos uma colaboração com o Sunny Bunny (que teve nesse ano a sua primeira edição). Consideramos que, tendo em conta o contexto actual do país, torna-se ainda mais urgente criar um espaço para as vozes, as visões cinematográficas da Ucrânia - e, em particular, de narrativas sobre e vidas da comunidade queer.

No geral, BEAST tem tido uma forte presença de filmes queer na sua programação, além de muites des elementes da equipa fazerem também parte da comunidade. Desde o ano passado que decidimos formalizar essa atenção curatorial permanente com a criação de uma secção: How To Care for Cosmos. Um título inspirado no livro-diário de Derek Jarman, “Modern Nature”. Consideramos de extrema importância ter este espaço, e tentamos representar tanto filmes de países cujo contexto relativamente aos direitos e vivências da comunidade LGBTQIA+ não sejam positivos, como também os movimentos progressivos que acontecem na região da Europa Central e de Leste, que permitem um avanço para uma realidade mais igualitária. Uma junção de inquietação com esperança: tentando cuidar do presente para criar um futuro melhor. 

No ano passado, por exemplo, dedicámos um espaço a filmes queer da Eslováquia: país onde duas pessoas queer foram assassinadas a tiro. Uma tentativa de gesto de homenagem às suas vidas e de lançamento de um alerta para com as atitudes homofóbicas, transfóbicas que ainda acontecem em regiões de nossa proximidade. Este ano, por exemplo, temos a presença da Polónia: um país que, durante 8 anos, esteve sob um regime de direita que impediu o avanço dos direitos LGBTQIA+ e que instigou uma narrativa anti-”propaganda LGBTQIA+”. Com a saída desse governo do poder, quisemos criar um espaço que aponte para um futuro que esperamos melhor: “Such Feeling”, um filme de gestos de intimidade, que nos mostra como o apoio dentro da comunidade permitiu a sobrevivência de muites nesse contexto sócio-político. Um filme de lutas fora do ramo da violência (no extremo oposto): uma luta de arte política, de corpos e identidades reivindicativas, que esperamos que, nos próximos anos, alcancem os merecidos e devidos direitos.

A presença destes filmes e destas narrativas é fulcral para um maior entendimento do espectro de situações um pouco por toda a Europa. O BEAST é e quer-se manter como um espaço para a exibição de filmes sobre - e com - essas realidades, para a criação de um diálogo entre os diferentes pontos da Europa, incluindo Portugal.

O que poderá dizer sobre os convidados desta edição? 

Este ano, o festival conta com uma vasta e forte presença de realizadores, produtores e curadores da Estónia (País de Foco): Anna Hints, Tushar Prakash, Katariina Aule, Aurelia Aasa marcam presença na cerimónia de abertura e apresentam os filmes que dão início à 7ª edição do festival. Além disso, vamos contar com a presença de Lyza Jarvis da EKA, que irá apresentar os filmes selecionados para a Carte Blanche da escola de animação de Tallinn. Junta-se também a Marika Agu - gestora de arquivos do CCA, com quem o BEAST colaborou para a criação do programa de videoarte -, que irá apresentar o CCA, além de fazer parte do Júri deste ano.

O júri é constituído por Tadeusz Strączek (Polónia), Heleen Gorritsen (Alemanha), Jakub Spevák (Eslováquia), Eugen Jebeleanu (Roménia) e Juliana Julieta (Portugal). Do contexto da secção Visegrad, contamos com a presença das curadoras do programa CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, Monika Talarczyk e Magda Lipska, que farão uma apresentação deste que é um dos programas de grande destaque do festival. Contamos também com a presença de dois realizadores de realizadores de longas-metragens presentes nesta secção: Paula Ďurinová (“Lapilli”) e Gergo Somogyvari (“Fairy Garden”). No contexto da talk de Festival Makers do contexto Visegrad, teremos um momento de encontro, conversa e partilha com Eniko Gyuresko, Ewa Szablowska e Szymon Stemplewski, que partilharam as suas experiências na direcção ou direcção artística de festivais. São alguns dos destaques deste ano.

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Fairy Garden (Gergő Somogyvári, 2023)

A programação desta edição parece privilegiar não apenas o cinema, mas também as intersecções com outras artes, como a instalação imersiva de Štefan Oliš. Qual é a visão por trás da incorporação destas vertentes e que contributo esperam que tragam ao festival como um todo? 

Este ano, estamos a focar na integração do cinema com outras formas de arte para enriquecer a experiência do festival. Teremos elementos interativos por todo o festival, começando no nosso ponto de informação OKNA. A nossa colaboração com a TRAKT, liderada por Štefan Oliš, uma organização da Eslováquia que se especializa em media interativos e programas educativos para jovens, já dura há vários anos. Os visitantes podem contar com características interativas, como instalações sonoras e arte em vídeo, em vários locais. O nosso objetivo é criar um ambiente mais envolvente que estimule a participação e a interação com a arte apresentada.

Com uma sétima edição, para onde o festival irá, ou que fronteiras falta transpassar ou deseja fazê-lo, numa oitava edição? Por outras palavras, que ambições tem o BEAST?

“Para onde Vamos?” é o mote do festival deste ano. Algo que se relaciona inevitavelmente com um questionamento interno, de tentativa de entendimento do caminho pelo qual o festival quererá atravessar e para onde quererá chegar. Teremos mudanças já para o próximo ano - ainda por anunciar. E esperamos que o público nos siga nos novos passos que o festival irá tomar. 

Mas o mote deste ano não se prende somente com isso: é um reflexo de uma inquietação generalizada. Não é possível definir o futuro, mas queremos fazer parte de um trabalho comunitário - na área da cultura, na área do cinema -, contínuo, de criação de propostas que possam encaminhar para um mundo melhor, para um futuro possível. Ambições de utopia, que esperamos que nos levem a um lugar o mais próximo possível dela - é assim que todes caminhamos na vida. O cinema tem um grande papel nesse sentido: e queremos que o nosso trabalho se mantenha relevante no sentido de melhorar o estado das coisas.

Arranca o 6º BEAST IFF, da Eslovénia cinematográfica a finais (nada) felizes: "uma procura por novas fórmulas, por novos destinos e por novos caminhos"

Hugo Gomes, 26.09.23

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I Miss Sonja Henie (Karpo Godina, 1971)

A Eslovénia torna-se assim no centro geocultural desta sexta edição do BEAST IFF, o Festival Internacional de Cinema que acontecerá já no dia 27 de setembro, estendendo-se até ao primeiro dia de outubro em vários pontos da cidade do Porto. Este ano, para além do país homenageado e do melhor cinema do leste o qual tem dedicado com coração, poderemos contar (e continuar a contar) com um enorme foco feminino - com especial destaque para argumentista e figurinista Ester Krumbachová, uma das parceiras da “mãe” Věra Chytilová nos seus devaneios que lançaram a nova vaga checoslovaca para o holofote do mundo - e uma forte aposta no cinema queer originário das Balcãs. Sem esquecer Karpo Godina, um dos nomes maiores do cinema esloveno, que marcará presença numa retropectiva à sua figura.

É "no happy ever after" a inundar a cidade invicta nestes cinco dias, mas apesar do slogan pessimista, o BEAST IFF promete ser um festival "feliz", porque Cinema haverá, logo a felicidade é garantida. Só que esta felicidade está nas longitudes longínquas das utopias e dos "we are the worlds" hollywoodescos. Mas deixemos de descrições baratas e passemos aos nossos diretores e programadores - Radu Sticlea e Teresa Vieira - que, respondendo ao convite do Cinematograficamente Falando …, desvendam a rota desta edição.

Ao chegar a uma sexta edição do festival, e olhando em modo retrospectivo, quais os objetivos atingidos e o que poderá ainda atingir?

Radu Sticlea: Acredito que com cada edição conseguimos curar com sucesso um programa que não só mostra o trabalho de realizadores de renome, mas também dá destaque a talentos emergentes. Esta abordagem permitiu-nos nutrir e promover a próxima geração de realizadores da Europa de Leste, enquanto nos estabelecemos como uma plataforma única.

Como festival, a nossa missão é a seguinte: construir uma plataforma dinâmica para colaborar e fazer networking entre Portugal e a Europa Central e de Leste, enquanto simultaneamente desafiamos e desfazemos estereótipos associados à região. Nós acreditamos que um programa reflexivo e provocante não é só um testemunho da nossa dedicação para os talentos cinematográficos, mas também é uma oportunidade para expor a diversidade e densidade criativa do cinema da Europa de Leste. Ao abraçar conteúdos provocativos e quebrar barreiras, temos como objetivo incentivar conexões significativas e contribuir para uma compreensão mais extensa desta paisagem cinematográfica vibrante.

Sobre a Eslovénia, o país-homenageado, o que poderá dizer sobre a sua cinematografia e como resumi-la para o seu Focus. Que impressões os espectadores terão com esta viagem?

Teresa Vieira: Todos os anos, o BEAST dedica-se à criação de uma programação focada no panorama cinematográfico de um país, apresentando trabalhos de realizadores de renome e realizadores emergentes, num leque de diferentes temporalidades (das marcas do passado, ao presente e apontando para um futuro). Este ano, a escolha do Foco na Eslovénia surgiu por diversas razões. Desde logo, por sentirmos uma falta de representatividade do país - ou um certo desconhecimento da sua cinematografia - no panorama nacional, procurando criar um espaço para uma mostra mais aprofundada de produções passadas e presentes. A tal adicionado o facto de ser o primeiro país pós-comunista a legalizar a adopção e o casamento entre casais do mesmo sexo, o que se liga à nossa atenção para com as questões queer na Europa Central e de Leste

Em termos de programação específica, decidimos alterar o modelo de selecção para a cerimónia de abertura (que, ao longo da história do festival, se concretizava com a exibição de uma longa-metragem do País em Foco), seleccionando três curtas-metragens de três realizadoras da Eslovénia. Consideramos esse gesto representativo do festival de diversas formas: o formato de curta, sobre o qual trabalhamos um pouco por toda a programação, como forma de lançamento do mote para esta 6ª edição; e a escolha de três obras realizadas por mulheres, que traduz a nossa atenção para com questões de género na programação. 

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Věra Chytilová e Ester Krumbachová

Aquilo que o público poderá esperar, após esse ponto de partida, é uma viagem por diferentes pontos: uma retrospectiva de curtas metragens dos anos 60 e 70 de Karpo Godina, realizador de renome (aqui num ponto de passado estabelecido e fortemente marcado na história do cinema); duas sessões de trabalhos de duas escolas de cinema (criando uma mostra dos futuros nomes da cena cinematográfica, dando também um espaço para estas produções circularem noutros territórios e contactar com outros públicos); uma sessão especial de LGBT_SLO_1984, parte do programa queer do festival, para um maior entendimento dos movimentos artísticos, activistas e históricos associados à evolução dos direitos LGBTQIA+ do país; uma retrospectiva de video-art, um formato que foi (e ainda é) marcante da cena artística do país, e que consideramos fundamental para um maior entendimento das abordagens artísticas e cinematográficas da Eslovénia, procurando ao mesmo tempo enfatizar o nosso ângulo de criação de espaço para “outros formatos”, por vezes afastados das salas; um cine-concerto de “No Reino Do Chifre De Ouro” (“In the Kingdom of the Goldhorn”, 1931), com o artista sonoro Ivo São Bento, em que exibiremos a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia acompanhado por um trabalho musical e sonoro original e exclusivo para este evento.

Procuramos, no fundo, apresentar uma seleção diversificada de múltiplas formas - e despertar todos os sentidos do público pelo caminho.

Em BEAST IFF existe uma “apetite”, chamaremos assim, em se focar num cinema feito por e para mulheres, descortinando nomes emergentes como a de Tereza Nvotová [“Nightsiren”] ou de heroínas como Ester Krumbachová, colaboradora de Věra Chytilová, ambas representadas nesta edição. Gostaria que me abordasse esta abordagem, se é algo coincidente ou uma convicção político-social-artística do festival?

TV: A resposta poderá passar pelas duas partes: surge de uma convicção político-social-artística e aconteceu igualmente (de forma não coincidente mas) natural - sendo que tal advém, desde logo, por exemplo, de escolhas em pré-criação de programação. A nossa atenção para com questões de representação de género está presente, em primeiro lugar, na constituição da equipa do festival: procuramos ter um grupo de vozes diversas, o que de forma natural influencia os resultados nas escolhas curatoriais e na programação. 

Não tendo uma maioria de programação cis masculina, implica que, regra geral, a questão (necessária, urgente, fundamental) que tem de ser muitas vezes apresentada e reforçada noutros contextos - e firmada constantemente -, de atenção para com a representação de género, se tornou quase “redundante” no nosso processo colectivo de trabalho. No sentido em que, enquanto pessoas que não fazem parte de uma categoria de “privilégio”, tal implica inevitavelmente um posicionamento individual e colectivo - um olhar - que carrega em si estas questões de forma contínua - é a nossa vida, a nossa luta, a nossa história. Faz parte de nós e a programação reflecte isso mesmo. 

Relativamente a elementos de secções não-competitivas, o caso do programa de retrospectiva de video-art da Eslovénia poderá ser ilustrativo: após a selecção de grande parte das obras que vão ser agora exibidas ao público, foi possível observar que o programa, de si, já representava uma maioria feminina. Assim, foi mantida a programação exatamente como estava após essa análise. Em relação a outros programas temáticos (fora de competição e do Foco Eslovénia), dar destaque a Ester Krumbachová é dar uma atenção para o trabalho criado por uma mulher mas também para uma pessoa cuja função não recaiu somente na realização. É igualmente um posicionamento do festival de que é necessário criar e fortalecer espaços de foco em áreas além da realização e produção: o caso da Ester, multi-facetada e fundamental set designer, costume designer, guionista da New Wave Checa, é uma forma de demonstrar essa vontade.

Uma questão pertinente, visto que o festival foca este ano numa mostra de cinema Queer (ou simplesmente de temática LGBTQIA+), o qual decorrerá em simultâneo com o Festival Queer Lisboa e posteriormente com a extensão no Porto. Existe diálogo entre os dois festivais, ou há um sentimento de concorrência?

TV: O BEAST tem dedicado ao longo de diversas edições um espaço para programação de cinema queer. Este ano, o festival decidiu criar um título para essa secção: “How to Care for Cosmos”. Um título que surgiu, entre outras coisas, de inspiração a partir de “Modern Nature”, de Derek Jarman. Uma ideia de um jardim que tem de ser cultivado, com flores que representam o “tudo”, o “universo” - o “nós e es outres”. É um programa que procura o cuidado, a atenção para com questões que consideramos urgentes, de forma a procurar um futuro melhor para todes. 

Este foco transparece uma identidade queer que não é somente uma secção: faz parte do ADN do festival, composto maioritariamente por pessoas da comunidade LGBTQIA+. O programa desta secção, este ano, resulta em grande parte de colaborações com dois festivais de cinema queer da Europa de Leste: Sunny Bunny (Ucrânia) e FFi (Eslováquia). O Sunny Bunny é o primeiro festival de cinema queer da Ucrânia e teve este ano a sua primeira edição. Exibir estas curtas-metragens ucranianas neste momento é também um statement do BEAST, que tem reforçado o seu foco - já existente em edições passadas - no cinema ucraniano durante este período de guerra, com uma vontade explícita de dar voz aos cineastas do país - e, este ano em particular, à comunidade queer. A colaboração com o FFi resulta de uma preocupação para com a situação sócio-política do país: em 2022, duas pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram assassinadas à frente de um bar (safe space para pessoas queer). 

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Before Curfew (Angelika Ustymenko, 2023)

Mostrar curtas-metragens da Eslováquia é também uma forma de demonstrar o nosso apoio para com a comunidade do país, e uma procura para um alerta de movimentos de ódio que ainda (ou desde sempre) acontecem na Europa. Os programas que serão apresentados foram criados colaborativamente: uma selecção que uniu diversos olhares de diferentes pontos geográficos - todos a partir de perspectivas de indivíduos queer.

Esta resposta passou, primeiro, por uma mostra do gesto programático desta secção: colaboração, diálogo e trocas. Não foi por acaso: serve de ponte para aquilo que poderá ser dito em relação ao Queer Lisboa e a sua extensão no Porto. Não só não existe qualquer concorrência entre festivais, como almejamos que existam cada vez mais e mais espaços para vozes, visões e identidades queer - algo que consideramos crucial. Felizmente, nos tempos que correm, é possível ver cada vez mais a presença de cinema queer em programações não dedicadas exclusivamente ao cinema queer

No entanto, a existência do Queer Lisboa/Porto, que têm notoriamente das identidades mais firmadas e estabelecidas no panorama de festivais nacionais, é algo que consideramos absolutamente fundamental, insubstituível e de um valor imenso. A sua linha de programação denota preocupações partilhadas - desde logo, por exemplo, exibindo filmes que relatam as questões da Guerra na Ucrânia - , também com produções de países como a Roménia, o Kosovo, mas também de múltiplas regiões além-Europa (filmes da Nigéria, do Brasil, da Colômbia, entre tantos outros). Partilha de preocupações, um olhar atento para com as questões da comunidade LGBTQIA+ e uma selecção de excelência a nível de qualidade de produção cinematográfica são ingredientes para a receita perfeita para aquilo que diremos de seguida, em jeito de conclusão.

O Queer Lisboa e o Queer Porto são festivais que respeitamos, que admiramos, com quem claramente partilhamos (para além das datas de calendário entre Queer Lisboa e BEAST) uma simpatia imensa e com quem obviamente gostaríamos de um dia colaborar (se elus nos quiserem também ;) ).

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

TV: Um dos destaques inevitáveis da programação é a retrospectiva de Karpo Godina, realizador que marcará presença no festival. As obras produzidas entre os anos 60 e 70 por esta figura incontornável da história do cinema são uma magnífica amostra da originalidade, frescura e a abordagem satírico-politizada (com uns óptimos travos musicais e de humor à mistura) que marcam o espólio deste cineasta e um pouco do seu trajecto inicial no universo cinematográfica - essa descoberta que podemos ter dos primeiros passos que o realizador deu nessa sua própria (e única) viagem.

Destaque igualmente para o programa “Post Porn - Radical Visibility”. Criado em colaboração com o Post Pxrn Film Festival Warsaw, surge como resultado de uma curadoria conjunta entre os festivais, de apresentação de uma selecção de curtas-metragens polacas de post porn. O encontro com os diretores deste festival, que estarão presentes na sessão, será uma excelente oportunidade para conhecer melhor o “post-pxrn” mas também a relevância da produção destas - e outras obras -  no contexto sócio-político e artístico particular da Polónia.

Em relação ao programa queer, não só destacamos todas as sessões — Sunny Bunny, FFi e LGBT_SLO_1984 — como também consideramos importante mencionar a Queer Talk que decorrerá durante o festival, onde será possível participar numa conversa com todos os directores desses festivais, aos quais se juntará Romas Zabarauskas, cineasta lituano reconhecido pelo seu trabalho no cinema queer, convidado do evento de indústria do BEAST.

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In the Kingdom of the Goldhorn (Janko Ravnik, 1931)

Por fim, destaque para o regresso da secção CINE-GEOGRAFIA SOCIALISTA | ÁFRICA - EUROPA DE LESTE. Este ano, com um programa em que será exibido um documentário de Traian Cocoș e Răzvan Marchiș “Viagem... longe da África” (1972-194), seguido de uma talk com Iolanda Vasile. Este programa, que conta com o apoio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projecto EDU-AM, e do Instituto Cultural Romeno, criará espaço para uma conversa que terá como ponto de partida a investigação de Iolanda Vasile sobre as ligações que a República Socialista da Roménia teve com vários países do continente africano entre os anos 1965- 1989. Será discutido como os câmbios educacionais, principalmente no cinema, mas também em outras áreas, contribuíram para as transições políticas no continente Africano colocando as bases do processo de transição pós-colonial.

O festival contará com a presença de realizadores das diversas secções, para além de convidades de indústria que estarão presentes durante esta edição.

Muito deste cinema do leste que aposta enquanto tema do evento é normalmente ignorado pela distribuição comercial nacional. Existe um preconceito para com estes filmes, ou entendimento (provavelmente pelo senso comum adquirido pelo experimentalismo de muitas destas cinematografias) como pouco acessíveis a públicos maiores.

RS: Nós reconhecemos o panorama evolutivo do consumo de cinema português. O público português está a demonstrar um interesse cada vez maior pelo cinema de nicho, incluindo as particularidades únicas e cativantes da Europa de Leste. Esta mudança na preferência do público é encorajadora e sinaliza um desejo crescente por experiências cinematográficas diversificadas, para além dos filmes comerciais mainstream.

Além disso, observamos uma tendência positiva no sector da distribuição. Os distribuidores estão a começar a reconhecer a mudança dos gostos do público português e estão mais abertos a atribuir espaço a conteúdos de nicho, incluindo filmes da Europa de Leste. Esta abordagem progressiva reflete um reconhecimento amplo do valor cultural e do significado artístico destes filmes.

Enquanto festival, esforçamo-nos ativamente para estar na vanguarda desta onda de transformação. O nosso objetivo é tornarmo-nos num ponto de encontro fundamental para os profissionais da indústria, incluindo cineastas, produtores e distribuidores, tanto de Portugal como da Europa de Leste. Acreditamos que a promoção de ligações entre estas duas regiões pode levar a oportunidades interessantes de colaboração e co-produção.

Sobre um eventual crescimento do festival, alguma vez colocou-se em cima da mesa extensões das vossas mostras? Ambições para o futuro?

TV: O festival tem realizado extensões ao longo dos anos, vendo esses momentos como forma de reforçar a presença do festival mas acima de tudo de criar a possibilidade de expansão de visibilidade de obras de cineastas. O BEAST, estabelecido, nutrido e com raízes no Porto (onde se pretende manter) já realizou mostras em espaços em Lisboa, como no Cinema City Alvalade e na Galeria Zé dos Bois (neste último caso, em colaboração com o Cineclube Aparição, com uma mostra de cinema ucraniano - o país de foco em 2021 - e os filmes vencedores da competição desse ano).

Em relação ao próprio festival, apostamos na criação de uma plataforma de networking e colaboração — East, Match, Go! —, que terá este ano a primeira edição. Um evento de Indústria que procura aproximar — e fomentar ligações — entre profissionais de Portugal (com ênfase no Porto) e profissionais da Europa Central e do Leste.

Nesse sentido de aproximação de Portugal a esta região da Europa, o festival tem realizado a curadoria de programas de cinema português. Nomeadamente, o exemplo mais recente, foi a criação de um programa de curtas-metragens queer portuguesas, que chegaram a diversos festivais da Europa Central e de Leste (como o BRNO 16, o Sunny Bunny, entre outros).

O objectivo do BEAST — como o de todos os festivais — será sempre o de crescer, mas também de amadurecer e de se fortalecer de forma consciente e atenta àquilo que o rodeia, tendo sempre presente a atenção para com a forma através da qual tal evolução poderá ser sustentável e adequada para a manutenção da qualidade e dos valores do festival. Para o futuro é possível dizer que pretendemos criar uma ligação cada vez mais forte com festivais e mostras com quem partilhamos ideais - e ideias -, num gesto de manter activa e em funcionamento a nossa perspectiva de que, através da colaboração, será possível crescermos — equilibradamente — em conjunto.

no happy ever after”, o tema desta 6ª edição, é um reflexo de uma procura por novas fórmulas, por novos destinos, por novos caminhos. É nesse percurso, de construção, de análise, de escuta e aprendizagem, em que queremos — e precisamos de — estar.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

O canto das mulheres embruxadas e dos homens ridículos

Hugo Gomes, 21.08.22

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As bruxas do leste na óptica de Tereza Nvotová (“Filthy”) não são mais do que vítimas de um prolongado e intrínseco Patriarcado, essa palavra instigadora das mais polarizadas facções; de um lado motivando um ativismo feminista e de desconstrução social, do outro provocando a quem não encara a “culpa masculina” como repertório extendido. Porém, a realizadora declara que na sua segunda longa-metragem - “Nightsiren” (vencedor do Leopardo de Ouro de Locarno, na secção "Cineastas do Presente")- o objetivo não é o de executar um enésimo statement, e sim “resgatar” os negros tempos de bruxarias e lançá-las a uma “fogueira” de reflexão quanto a um obscurismo hoje duradouro.

Tal como o cartão que abre o filme, a supersticiosidade ainda compõem quotidianos nos países do leste (neste caso a Eslováquia), levando todos os indivíduos, seja de género for, a serem reduzidos a peças numa maquinaria de opressão e de culto masculino. “Nightsiren” ostenta esse lado de cenário sociopolítico enquanto testemunhamos uma jovem retornada ao seu local de origem, cujo um conjunto de traumas (sejam de infância, sejam na sua suposta fase de emancipação) a perseguem, induzindo-a a uma investigação própria. Ao longo da sua jornada, por vezes impactadas com “visitas de fantasmas do Natal Passado” acaba por ceder a uma “teia” de misticismo e de misoginia entranhada.

Facilmente poder-se-ia insinuar a citação de um registo folk horror, ou dos ambientes atmosféricos que fizeram “The VVitch: A New-England Folktale” de Robert Eggers (por exemplo) no sucesso de culto hoje descrito, porém Nvotová não se interessa em trabalhar atmosferas (mesmo que aquelas sequências florestais apelem a um outro filme, daqueles habitáveis no esoterismo sexual e no xamânico, fazendo uso carnal e orgástico da fotografia de Federico Cesca) e sim na introspecção da sua protagonista (Natalia Germani) e no choque com uma comunidade sistematicamente medievalista.

Portanto esse lado de “cinema de género”, nunca verdadeiramente abraçado, assume-se como um disfarce para eventos maiores, a linguagem em que muitos artesãos dialogam (de George A. Romero a Wes Craven, de Ishirô Honda a Luis Ospina, sem esquecer obviamente de Jordan Peele) de forma a abordar as políticas e preocupações em ensaios “mais ou menos” figurativos que prevalecem anos após anos. “Nightsiren” é somente a tradição, não convém aclamar um “terror contaminado pelas causas / agendas sociais” [segundo essas vozes críticas], visto que é através do “cinema de género” no qual deparamos com a via, a lente abstrata para ver este nosso mundo. Tereza Nvotová fala-nos de sistemas, e o resto operam como os seus palanques de oração.