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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Próxima paragem: Estónia e arredores, com Porto no coração do 7º BEAST IFF

Hugo Gomes, 25.09.24

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Dark Paradise (Triin Ruumet, 2023)

Depois da Eslováquia, o “comboio” BEAST IFF embarca na Estónia, novamente com uma mostra rica de cinema proveniente daquelas andanças e ares, sem nunca olhar a meio às suas periferias. É o Cinema do Leste novamente a encher o Porto, a partir de hoje (25 de setembro) até ao próximo dia 29, com projeções no Batalha Centro de Cinema, Cinema Trindade, Cinema Passos Manuel, e eventos paralelos, conversas, exposições e DJ sets, na Livraria Térmita e no OKNA

A abertura traz ao grande ecrã três curtas-metragens que definem, e bem, o tom desta sétima edição, com destaque para “Sauna Day” (estreado no último Festival de Cannes), de Anna Hints (que o circuito nacional a reconhecerá de uma outra sauna confessional - “Smoke Sauna Sisterhood”) e Tushar Prakash, um olhar a uma sauna masculina com invocação quase xamânica. Além do filme de Hints / Prakash, a sessão inaugural contará ainda com “Heiki on the Other Side” (2022), de Katariina Aule, comédia negra com o submundo pós-vida à mistura, e “Miisufy” (que teve estreia no último Sundance), de Liisi Grünberg, animação sobre a dualidade real / virtual com inspirações reconhecíveis ao fenómeno Tamagotchi, reforçam a oferta rica e variada deste ano. Os realizadores de “Sauna Day”, a realizadora Katariina Aule e a produtora de “Miisufy” (Aurelia Aasa) estarão presentes na sessão.

Contudo, o Cinematograficamente Falando … dará voz a quem esteve realmente por trás deste evento, desta seleção e desta perspectiva que encherá o Porto nos próximos quatro dias, Radu Sticlea e Teresa Vieira, os diretores artísticos e programadores, repetiram o convite de responder e de desvendar os cantos e recantos desta sétima celebração do BEAST. O comboio não pára!

Com a Estónia enquanto país-homenageado desta edição, pergunto quais foram os critérios usados na selecção dos filmes e eventos que melhor representam o panorama cinematográfico contemporâneo e histórico do país?

O trabalho de desenho de programação advém de uma combinação de factores. Desde logo com os materiais a que o festival tem acesso, graças ao apoio dos nossos parceiros institucionais (como o Instituto de Cinema da Estónia e do Centro de Arte Contemporânea da Estónia, por exemplo). Materiais que advêm de pedidos já de si direcionados pela equipa curatorial do festival. 

O BEAST tem, no seu core, uma atenção para com trabalhos com assinatura de pessoas dentro do amplo espectro da identidade de género (que se traduz numa preocupação de criar uma programação com diversidade de género), uma atenção para trabalhos tanto do presente como do passado, uma atenção para com trabalhos de escola, uma atenção para com obras de videoarte, entre outras. A partir desta base, a equipa permite-se à descoberta: muitas vezes desconhecendo o caminho, este surge através de um longo e profundo trabalho de investigação. 

O programa emerge como resultado das aspirações iniciais da equipa, revelando-se como o fruto da inspiração que surgiu a partir de todos os filmes com os quais entrou em contacto. Assim, temos este ano uma secção de país de foco diversa: de curtas a longas-metragens; de documentários a ficção; de anúncios televisivos a videoarte.

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Sauna Days (Anna Hints & Tushar Prakash, 2024)

Este ano, a competição oficial conta com uma variedade de géneros e formatos, desde ficção até animação. Como garantem um equilíbrio entre a inovação artística e a acessibilidade ao público nas selecções de "Experimental East" e "AnimaEast"? 

Desde a sua primeira edição que o BEAST conta com as secções competitivas East Wave, East Doc e Experimental East. A secção competitiva AnimaEast foi introduzida o ano passado e mantém-se nesta nova edição. Uma adição que consideramos dar o espaço justo ao universo do cinema de animação num festival dedicado a regiões de forte impacto nesse contexto cinematográfico. 

Os filmes de cada uma destas secções são escolhidos pelos respectivos comités de selecção, que contam com especialistas em cada uma das áreas e com pessoas de diferentes nacionalidades - e isto aplica-se igualmente no caso da competição de animação e experimental. Os critérios de selecção têm diversos parâmetros e aquilo que ressalta é a alta qualidade e a relevância política dos trabalhos que procuramos trazer junto do público. Um público que vemos, desde sempre, tanto com interesse em entrar em contacto com narrativas e formas mais normativas, como com espaços de maior expansão das possibilidades da forma do cinema (que não se fechará nunca numa só caixa - e aqui estaremos, em conjunto com o público, sempre curioses e ansioses por navegar em todas as suas possibilidades).

A secção "Visegrad Film Hub" apresenta um conjunto diversificado de filmes de diferentes origens e temas. De que forma os programas como "LAPILLI" e "Fairy Garden" contribuem para a discussão sobre a memória e identidade da Europa Central e de Leste?

A selecção do documentário húngaro “Fairy Garden" foi feita em conjunto com o HU Verzio Film Festival, um dos festivais com os quais o BEAST colabora no contexto do programa Visegrad Film Hub. Este documentário de Gergő Somogyvári, vencedor do prémio do público da última edição do HU Verzio, encaixa na linha de programação do BEAST de representação queer. Este filme mostra-nos a (tanto dura como bela) realidade de vida de Fanni, uma jovem mulher trans e Laci, um homem de 60 anos sem-abrigo. Vivem juntos num lugar longe do centro de Budapeste. E nesse lugar, que surgiu devido à opressão social, à violência, cria-se uma casa de apoio mútuo, de trabalho para construção de uma realidade melhor para ambos. Uma família cria-se neste contexto: e a beleza surge dos gestos de ternura e amor que observamos e acompanhamos. Neste filme temos um equilíbrio entre o negativo e o positivo: mostrando os potenciais de salvação através de comunidade, de família escolhida, não deixando de lado todas as questões problemáticas da sociedade que essa mesma comunidade (ainda) tem que enfrentar. Questões presentes na região da Europa Central e de Leste mas também em Portugal e no resto do mundo. 

Lapilli” é a mais recente longa-metragem de Paula Ďurinová. Um filme-ensaio de homenagem à vida dos seus avós, tal como um filme que cria espaço para a realizadora lidar com os diferentes estágios de luto. Uma observação cuidada, uma abordagem sensível (como um sussurrar cinemático-geológico) que retrata, através do processo individual e único, algo universal. Ďurinová é uma de várias vozes de grande força no contexto cinematográfico da Eslováquia, e consideramos que este filme é um diamante que deve ser partilhado com o público no Porto

Com iniciativas como o CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, vemos uma abordagem histórica e social ao cinema. Como consideram que estas narrativas dialogam com a actualidade sociopolítica, e qual o impacto que esperam gerar no público português? 

CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL abre uma conversa sobre a riqueza da troca cultural — como as interações diversas entre a Europa de Leste e as nações africanas deram origem a alguns dos movimentos criativos mais profundos. Num mundo muitas vezes dividido pelo racismo e discriminação, percebemos que a 'alteridade' não é algo a temer, mas algo essencial para o nosso crescimento e compreensão de quem somos. Com este programa, esperamos mostrar ao público português que, do outro lado da exclusão, está uma força vibrante e poderosa, alimentada pela diversidade. É ao abraçar essas diferenças que construímos as coisas mais impactantes e significativas, uma filosofia que está no coração do nosso festival e de muitos membros da nossa equipa.

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Queer Fighters of Ukraine (Alex King & Angelika Ustymenko, 2023)

A inclusão do primeiro festival de cinema queer da Ucrânia na secção "Queer Ukraine: Sunny Bunny" (que teve primeira edição no ano passado) merece destaque nesta programação. Que papel esperam que o BEAST desempenhe na promoção de cinema queer no contexto de um festival focado na Europa de Leste?

A ligação entre o BEAST e a Ucrânia tem acontecido ao longo de várias edições de diferentes formas, fora do contexto da secção competitiva do festival. Já tendo sido o País de Foco do festival, e com alguns programas especiais fora de competição, desde 2023 que temos uma colaboração com o Sunny Bunny (que teve nesse ano a sua primeira edição). Consideramos que, tendo em conta o contexto actual do país, torna-se ainda mais urgente criar um espaço para as vozes, as visões cinematográficas da Ucrânia - e, em particular, de narrativas sobre e vidas da comunidade queer.

No geral, BEAST tem tido uma forte presença de filmes queer na sua programação, além de muites des elementes da equipa fazerem também parte da comunidade. Desde o ano passado que decidimos formalizar essa atenção curatorial permanente com a criação de uma secção: How To Care for Cosmos. Um título inspirado no livro-diário de Derek Jarman, “Modern Nature”. Consideramos de extrema importância ter este espaço, e tentamos representar tanto filmes de países cujo contexto relativamente aos direitos e vivências da comunidade LGBTQIA+ não sejam positivos, como também os movimentos progressivos que acontecem na região da Europa Central e de Leste, que permitem um avanço para uma realidade mais igualitária. Uma junção de inquietação com esperança: tentando cuidar do presente para criar um futuro melhor. 

No ano passado, por exemplo, dedicámos um espaço a filmes queer da Eslováquia: país onde duas pessoas queer foram assassinadas a tiro. Uma tentativa de gesto de homenagem às suas vidas e de lançamento de um alerta para com as atitudes homofóbicas, transfóbicas que ainda acontecem em regiões de nossa proximidade. Este ano, por exemplo, temos a presença da Polónia: um país que, durante 8 anos, esteve sob um regime de direita que impediu o avanço dos direitos LGBTQIA+ e que instigou uma narrativa anti-”propaganda LGBTQIA+”. Com a saída desse governo do poder, quisemos criar um espaço que aponte para um futuro que esperamos melhor: “Such Feeling”, um filme de gestos de intimidade, que nos mostra como o apoio dentro da comunidade permitiu a sobrevivência de muites nesse contexto sócio-político. Um filme de lutas fora do ramo da violência (no extremo oposto): uma luta de arte política, de corpos e identidades reivindicativas, que esperamos que, nos próximos anos, alcancem os merecidos e devidos direitos.

A presença destes filmes e destas narrativas é fulcral para um maior entendimento do espectro de situações um pouco por toda a Europa. O BEAST é e quer-se manter como um espaço para a exibição de filmes sobre - e com - essas realidades, para a criação de um diálogo entre os diferentes pontos da Europa, incluindo Portugal.

O que poderá dizer sobre os convidados desta edição? 

Este ano, o festival conta com uma vasta e forte presença de realizadores, produtores e curadores da Estónia (País de Foco): Anna Hints, Tushar Prakash, Katariina Aule, Aurelia Aasa marcam presença na cerimónia de abertura e apresentam os filmes que dão início à 7ª edição do festival. Além disso, vamos contar com a presença de Lyza Jarvis da EKA, que irá apresentar os filmes selecionados para a Carte Blanche da escola de animação de Tallinn. Junta-se também a Marika Agu - gestora de arquivos do CCA, com quem o BEAST colaborou para a criação do programa de videoarte -, que irá apresentar o CCA, além de fazer parte do Júri deste ano.

O júri é constituído por Tadeusz Strączek (Polónia), Heleen Gorritsen (Alemanha), Jakub Spevák (Eslováquia), Eugen Jebeleanu (Roménia) e Juliana Julieta (Portugal). Do contexto da secção Visegrad, contamos com a presença das curadoras do programa CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, Monika Talarczyk e Magda Lipska, que farão uma apresentação deste que é um dos programas de grande destaque do festival. Contamos também com a presença de dois realizadores de realizadores de longas-metragens presentes nesta secção: Paula Ďurinová (“Lapilli”) e Gergo Somogyvari (“Fairy Garden”). No contexto da talk de Festival Makers do contexto Visegrad, teremos um momento de encontro, conversa e partilha com Eniko Gyuresko, Ewa Szablowska e Szymon Stemplewski, que partilharam as suas experiências na direcção ou direcção artística de festivais. São alguns dos destaques deste ano.

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Fairy Garden (Gergő Somogyvári, 2023)

A programação desta edição parece privilegiar não apenas o cinema, mas também as intersecções com outras artes, como a instalação imersiva de Štefan Oliš. Qual é a visão por trás da incorporação destas vertentes e que contributo esperam que tragam ao festival como um todo? 

Este ano, estamos a focar na integração do cinema com outras formas de arte para enriquecer a experiência do festival. Teremos elementos interativos por todo o festival, começando no nosso ponto de informação OKNA. A nossa colaboração com a TRAKT, liderada por Štefan Oliš, uma organização da Eslováquia que se especializa em media interativos e programas educativos para jovens, já dura há vários anos. Os visitantes podem contar com características interativas, como instalações sonoras e arte em vídeo, em vários locais. O nosso objetivo é criar um ambiente mais envolvente que estimule a participação e a interação com a arte apresentada.

Com uma sétima edição, para onde o festival irá, ou que fronteiras falta transpassar ou deseja fazê-lo, numa oitava edição? Por outras palavras, que ambições tem o BEAST?

“Para onde Vamos?” é o mote do festival deste ano. Algo que se relaciona inevitavelmente com um questionamento interno, de tentativa de entendimento do caminho pelo qual o festival quererá atravessar e para onde quererá chegar. Teremos mudanças já para o próximo ano - ainda por anunciar. E esperamos que o público nos siga nos novos passos que o festival irá tomar. 

Mas o mote deste ano não se prende somente com isso: é um reflexo de uma inquietação generalizada. Não é possível definir o futuro, mas queremos fazer parte de um trabalho comunitário - na área da cultura, na área do cinema -, contínuo, de criação de propostas que possam encaminhar para um mundo melhor, para um futuro possível. Ambições de utopia, que esperamos que nos levem a um lugar o mais próximo possível dela - é assim que todes caminhamos na vida. O cinema tem um grande papel nesse sentido: e queremos que o nosso trabalho se mantenha relevante no sentido de melhorar o estado das coisas.

"O digital é talvez o factor mais realista": Eduardo 'Teddy' Williams e a busca do auge da Humanidade

Hugo Gomes, 13.07.24

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Eduardo "Teddy" Williams na rodagem de "El auge del humano 3" (2023)

Foi em vésperas da estreia nacional (com ‘perninha’ no festival Indielisboa e uma retrospetiva no Cinema Batalha), que Eduardo Williams, conhecido por estas bandas cinéfilas como “Teddy”, me recebeu para falar sobre o seu mais recente projeto, "O Auge Humano 3" (“El auge del humano 3”), que conta com produção portuguesa, além de envolver outros 7 países, unidos para explorar uma ideia de universalismo. A nossa conversa abordou desde as ideias por detrás do filme até ao seu cinema em geral, consolidando Teddy como uma das vozes mais debatidas no meio académico cinematográfico e no mundo do cinema experimental e independente.

Com "O Auge Humano 3", lançado sete anos após o primeiro (atenção, nunca houve um "O Auge Humano 2", essa sequela está no “segredo dos deuses”), acompanhamos um grupo de jovens que testemunham um fenómeno difícil de caracterizar para lá das montanhas. Enquanto vivem e debruçam-se sobre os seus quotidianos, ponderam um retorno ao estado selvagem, ao primitivo ou até místico. Eis uma obra sobre a comunicação, mesmo diante de diversas línguas ouvidas ao longo deste percorrer de cenários em 360º e dos glitchs que vão sendo presenciados. Há uma distorção dessa realidade! Mas Teddy acalenta as nossas preocupações, tal é tão ou mais real do que a nossa própria realidade humana. Aliás, o que é ser humano?

A discussão alarga-se sobre "O Auge Humano 3", o virtual enquanto nova realidade, o filme das multi-interpretações e de estéticas e o AI contra a carne da nossa carne. 

Começo a conversa desta forma: que lugar acha o ideal para ver o seu filme?

O lugar para qual o meu filme foi feito? É isso que me está a perguntar?

Sim, é uma questão um pouco abstrata, porque entendo que a sua estética é provocadora, neste caso, neste filme, sinto uma certa distância das pessoas, do factor humano, por ter sido filmado com uma câmara de 360 graus o que lhe aufere uma sensação estética muito virtual. Não sei se era esse o seu propósito.

Sim, uma parte é voluntária, a outra surgiu através da descoberta e do experimento. Em relação ao local, faço filmes para o cinema, seja em película, seja em 360 graus, a sala de cinema será sempre o seu lugar, exceto algumas encomendas para museus. Tenho consciência de que se vê muito cinema em computadores e nos mais diversos lugares. Nada contra essa opção, mas os filmes que faço são concebidos para serem vistos e ouvidos no cinema, refiro o “ouvido” porque considero o som extremamente importante para a experiência cinematográfica, e penso deixar saliente esse elemento na minha filmografia.

Acerca da distância com o humano, não sei o que responder; depende de como se pense nisso. Não o encaro da mesma maneira, porque, para mim, o virtual hoje em dia é parte da minha vida, é essencialmente humano, é uma criação humana e é o mundo em que vivemos. Acho que, para mim, justamente esta presença do virtual no filme fala, pelo menos, de como experimento a vida hoje em dia, e creio que muita gente partilha tal experiência comigo. Então, simplesmente acredito que uso ferramentas para mostrá-lo de uma maneira mais sucinta, talvez. Quanto aos rostos se deformarem e especificamente integrarem a imagem, obviamente que na vida, no real, não vemos isso, mas talvez sintamos isso a acontecer de alguma maneira.

Não sei, pelo menos eu sinto aquilo que os ingleses apelidam de “uncanny valley”, sofro com isso, a deformação das faces das suas personagens quando nos aproximamos, leva-me a distanciar deste conjunto, porque tudo me soa na ressonância do fim da Humanidade. O nosso fim, de certa maneira, não sei, é a minha impressão acerca do seu filme, mas pelo que entendi, também é um filme com várias interpretações, dando uma exposição para quem o vê.

Sim, por isso, mesmo que por vezes se pense o mesmo ou não, o tipo de filme que faço, como bem disseste, é justamente para isso: para se abrir a múltiplas interpretações e não se reduzir somente à minha. Se assim não fosse, faria filmes mais claros e que comunicassem diretamente uma ideia minha, mas essa não é a minha noção de cinema. Gostei de ouvir a tua interpretação e respeito-a, mesmo que não vejas o filme à minha maneira. Não te posso censurar; se o fizesse, seria contra a minha essência. Só te digo como me sinto em relação aos lugares, ao binarismo do humano e do não-humano, mas isso também depende das nossas experiências, das nossas vidas, de como nos sentimos em relação ao cinema. Nem todos nos sentimos da mesma maneira. Mas, o que dizias concretamente no início?

Que existe uma certa distância, como o fim da Humanidade.

Sim, isso! O fim da Humanidade! Não sei. [risos] Tenho esta sensação desde os meus tempos de criança. Chega o ano 2000, termina a Humanidade, desde os lugares mais simples e até aos mais bobos, até coisas como a mudança climática e a destruição do planeta, que se tornam cada vez mais reais. E também há esse desejo de querermos o fim de certas ‘coisas’, mas não a Humanidade, talvez o sistema em que vivemos. Nesse sentido, há que escolher em colocar-se na crise ou de ver a crise do sistema, por assim dizer, de diferentes sistemas. Mas o fim da Humanidade... não sei! Não acredito, na verdade. Por agora, parece-me que ainda falta muito para tal acontecer.

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El auge del humano 3 (2023)

Digo isto, porque existe a certo momento do “O Auge Humano 3” uma personagem a lamentar-se de que existir é cansativo. Entendi isso como algo muito niilista no seu filme.

É verdade, e além disso, acho que deve haver um equilíbrio entre essas coisas. Deparamos por momentos mais niilistas, como esse que citaste, ou do cansaço em relação ao trabalho, à vida  como ela é ou por outras questões, só que também temos que ver que há esperança. O simples facto de pessoas, de países distantes, se reúnem e avançam em conjunto em direção a algo que não entendemos ao certo é para mim uma forma de esperança e de continuar a tentar algo em oposição a esse niilismo: uma revolução. Mas sim, há de tudo, as duas dimensões: falar sobre determinados elementos negativos ou sobre o facto de que a mera existência provoca cansaço, só que não podemos esquecer que temos um outro lado.

Outra característica do seu “O Auge Humano 3”, é que foi filmada em vários lugares do mundo, como Sri Lanka, Taiwan e Peru. Além disso, a forma como juntou os locais cria uma sensação de unidade. É como se toda a Humanidade estivesse conectada, com excepção da linguagem, visto ouvirmos uma panóplia delas, quase como uma Torre de Babel, que nos separa ou nos identifica. Mas, ao mesmo tempo, todos esses lugares e pessoas, apesar das distâncias, são semelhantes porque somos humanos. No entanto, sempre mudamos algo para sermos mais diferentes, especialmente no que diz respeito à linguagem.

Penso que no filme também está implícito uma fantasia: as personagens entendem-se em diferentes idiomas. Há cenas em que um fala mandarim e o outro responde em espanhol. Mostrando que as línguas não nos separam como realmente o fazem. 

Também, ao fazermos um filme, viajo para países cujo idioma não falo e, por vezes, usando a internet e outras ferramentas, conseguimos que essas barreiras linguísticas não sejam a nossa total separação. No filme, há pessoas que não falam inglês, espanhol ou qualquer idioma que eu fale e, de várias maneiras, conseguimos comunicar-nos. Parece-me que isso está presente, também na forma como o fazemos, o que é interessante. Não quero dizer que somos todos iguais, porque, felizmente, é melhor que não sejamos todos iguais, mas que podemos juntar-nos e ter um projeto como este. É como, a certo momento, todas aquelas personagens caminharem juntas para a montanha em busca de algo maior do que elas.

Por mera curiosidade, qual o lugar que, como demonstra no filme, tem aquelas habitações que parecem-nos cogumelos?

Ah, é o Sri Lanka!

É muito peculiar. É como um parque infantil! Gostaria que me falasse sobre os diálogos, li algures que estes foram conseguidos por via da improvisação.

Não só. Alguns textos foram escritos e outros foram improvisados. Há cenas em que tudo o que vemos é totalmente escrito, enquanto outras revelam o improviso, e a maioria das cenas combina os dois registos. Esta é a norma no meu cinema.

E quanto ao que dizes sobre as casas, posso contar-te que a primeira razão para querer filmar no Sri Lanka foi exatamente este bairro. Já tinha ido ao Sri Lanka antes, numa viagem de lazer, digamos, não por motivos de filme ou curiosidade, e passei de autocarro por este bairro e fiquei muito surpreendido. Depois, ao investigar, descobri que tinham construído estas casas sob esta forma porque um tsunami havia destruído tudo, e estas estruturas provaram ser mais resistentes, caso haja outro tsunami, do que uma forma retangular.

O filme ia ser rodado sob a chuva, mas não conseguimos fazê-lo nesse contexto. No entanto, a presença do clima no filme tem o seu lugar nesta narrativa, por isso, achei por bem incluir este cenário estranho ou irreal para nós. Mas, ao mesmo tempo, quando estamos lá, vemos que para estas pessoas aquele bairro é um lugar normal. E isso fascinou-me, um local onde o irreal e o real se encontram na mesma imagem.

Podemos dizer que o seu filme é quase como um retorno ao selvagem, mais concretamente a Humanidade à Natureza, e por fim, as suas esperadas pazes?

Não sei se diria retorno, mas sim o ato de ir. Não vou sempre atrás da natureza, mas também em frente, como em tudo. Portanto, diria que é ir ou um pouco buscar, afastar-se da cidade que nos aprisiona. Talvez para depois voltar, porque no final a câmara cai, há algo de querer subir e depois descer novamente. Existe sim uma insatisfação com o lugar onde vivemos e a vontade de nos afastar para desencadear outras possibilidades, ir para a selva, ir para a montanha, etc.

Tem administrado um workshop no Porto [Cinema Batalha] e, devido a isso, queria questionar: o que pretende com o workshop que dedica aos jovens ou interessados em cinema?

Depende um pouco de quem vai. Antes de o fazer, não sei ao certo, nem projeto minuciosamente quem vai participar, desconfio se serão mais estudantes ou mais curiosos. Era algo aberto, por isso tenho a perfeita noção de que não seriam apenas estudantes. De qualquer modo, partilho a minha forma de trabalhar e estou disponível para responder às perguntas que tiverem. Partilho a minha abordagem desde o mais concreto, resolvendo problemas específicos, até os meus pensamentos sobre por que faço o que faço, etc. Tento esclarecer sobre o meu cinema, ou pelo menos tento. [risos]

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El auge del humano (2016)

E no seu caso, deixe-me mencionar uma coisa. Porque quando vi este e o primeiro “O Auge Humano“, notei uma estética e uma transição estética de filme para filme. Neste caso, é algo que percebo como muito virtual. Como já havia dito, sente-se uma grande distância em relação às pessoas. O porquê disto? Onde estou? O que é isto? Para onde vou?. Existe uma política estética nos seus filmes? Procura algo absoluto, uma meta?

Relacionado com o deformado realista? Sim. Quero dizer, para mim, o digital é talvez o factor mais realista. Mesmo que, à primeira vista, pareça irreal. É mais que realista, trespassa esse conceito. Através da utilização dessas ferramentas, podes mostrar pelo menos um ponto de vista da realidade de forma mais clara. Como te disse, quando vemos os rostos deformados, isso revela como me sinto, por exemplo, mesmo que não se veja o meu cabelo.

Mudar a estética, é, em parte, apenas curiosidade por usar diferentes ferramentas no cinema, mas, de forma geral, o sentido é sempre expressar um ponto de vista sobre o cinema, sobre a vida, e não restringir a “mim” e à minha perceção. Também tento fazer filmes que não sejam apenas sobre as minhas ideias, mas sobre como essas ideias são percebidas por pessoas em diferentes lugares e em diferentes idiomas. Por isso é que viajo para diferentes países e culturas, para ver como estas minhas ideias podem ser transformadas em outra 'coisa' que não sejam minhas.

E, como te disse, às vezes há improvisação, há “contaminação” de ideias de outras pessoas que integram o filme, e eu realmente pretendo tal contágio, valorizo muito. Estou a tentar agora juntar essas duas coisas, como me pediste, mas não sei. Pode ser muito longo falar sobre o que é realista ou não. Mas sim, não há dúvida de que há uma ideia de expressar ou partilhar pontos de vista sobre o mundo e a realidade, pelo menos como a vejo, e, em alguns casos, como as pessoas no filme a veem e acreditam.

Escolho imagens que mostram isso de forma mais clara, encaro-as como as imagens mais normais da vida. Vejo o mundo assim: o que é real e o que não é são quase indissociáveis. Portanto, há algo, mas não tenho certeza se respondi à tua pergunta neste caso.

Lembro-me de um colega meu, quando viu “O Auge Humano 3” em Locarno, dizer-me que parecia um filme feito por AI, Inteligência Artificial. Pergunto-lhe sobre isso, sobre os avanços na tecnologia para fazer filmes sem pessoas, sem cineastas. Tentaste com essa estética que temos estado a falar para te aproximar mais das propriedades estetizadas, hoje previstas, pelo AI, ou é apenas uma coincidência?

Nem por isso. Não uso AI nos meus filmes.

Não referia ao uso, referia à estética …

Sei, o que quero dizer é que não estou em contacto com a Inteligência Artificial, nem para o filme, nem na minha vida. Não estou a pensar nisso. Sei o que é de forma geral, mas não tenho tentação ou pretensão de me relacionar com isso. Para mim, está mais associado ao mundo digital de outra maneira, por ter vivido muito através da internet desde a juventude e por jogar videojogos. Está muito ligado a essa parte do mundo digital ou vida virtual. 

Quando penso em preparar um filme, estou num modo virtual, porque estou sentado em frente a um computador a descobrir mundos e a “escavar” ideias, porém, quando faço um filme, torna-se também uma experiência muito física. São os opostos da artificialidade vendida pelo conceito da AI. Descubro as cidades e os países que visito e as pessoas que conheço fisicamente, sem qualquer informação virtual. É muito importante que no filme existam esses dois mundos: o virtual e o físico. De um modo geral, se me perguntares o que penso sobre relacionar o filme com inteligência artificial, diria que não o faria, especialmente porque o que entendo sobre inteligência artificial se resume a juntar informações.

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Parsi (2016)

O filme é muito diferente disso, é sobre humanos a decidirem, no momento, o que fazer, sendo surpreendidos por vezes, e outras vezes a prepararem-se. Acho que o funcionamento do nosso cérebro difere dessa inteligência artificial, não estão no mesmo patamar. Contudo, como referi ao longo desta conversa, estou aberto a ouvir e a gerar diferentes pontos de vista com o filme, no entanto, não estou receptivo à AI. Não a utilizo; talvez se o fizesse, compreendê-la-ia de uma forma diferente.

Quanto aos outros elementos, como os videojogos ou a internet, surgem no filme porque fazem parte da minha experiência de vida, portanto, surgem naturalmente. Não acho que com isso desejo fazer um filme sobre a vida virtual ou a internet; isso acontece porque é assim que experiencio o mundo. Depois, percebo que, quando escrevo um filme, não penso muito no início, mas sim mais tarde. É mais tarde que me dou conta de como e quanto a presença da vida virtual está no filme.

Essa presença é muito evidente, não só quando falamos disso, mas ainda mais quando não falamos. A forma como falamos, de como as personagens se expressam, tem muita influência das conversas de chat. Em outras curtas-metragens minhas, isso é dito de forma mais evidente. Mas, em muitos momentos da minha vida, falei mais com as pessoas através de chat na internet do que na vida real. O ritmo da conversa e a forma como organizamos a informação diferem. Quando escrevo diálogos, percebo o quão presente isso está.

Mas neste momento não temos uma ideia clara do que é o cinema de inteligência artificial. Temos algumas imagens definidas e uma visão bastante ampla. Mas quero perguntar: o porquê das câmaras de 360 graus? De onde veio essa ideia?

Usei esta técnica uma vez numa curta-metragem, “Parsy”, em 2019. Escolhi inicialmente porque queria dar a câmara aos atores. Com uma câmara de 360 graus, não é necessário enquadrar durante a filmagem, os atores podem segurar a câmara e não precisam pensar no enquadramento. Isso foi muito útil na altura. Depois de experimentar, descobri outras vantagens durante a filmagem, mas o motivo principal para usar novamente esta técnica neste filme foi a possibilidade de enquadrar na pós-produção. Penso que isto é diferente do que penso sobre a inteligência artificial, porque ao visualizar as imagens num headset de realidade virtual, pude gravar os meus movimentos. Por exemplo, ao visualizar a imagem, se faço isto, o enquadramento fica assim; se faço aquilo, fica de outra forma. É uma maneira muito diferente de abordar o enquadramento num filme. Faço os meus filmes para pessoas que não sabem o que é o enquadramento ou a realidade virtual, mas espero que sintam esta forma especial de observar os outros e de estar com eles através deste método.

Para mim, a maior diferença é que agora posso fazer o enquadramento não durante a filmagem, como é habitual. Durante a rodagem, estamos a pensar em mil e uma coisas, incluindo no próprio enquadramento, agora, faço-o sozinho na pós-produção, numa sala, dedicando todo o meu corpo e mente a isso. É diferente a forma como penso sobre o que enquadrar, onde enquadrar e como sentir isso, incluindo a relação física. Normalmente, enquadramos com as mãos, agora, posso fazer isto, enquadrar e até mover o meu corpo. A relação física com o enquadramento revelou-se diferente. Essa foi a razão para escolher esta câmara. Além disso, editei as duas horas do filme no computador e depois assisti-as de uma vez, para que pudesse enquadrar o filme todo de uma vez. Normalmente, faríamos isso cena por cena. Agora, consegui fazer o enquadramento continuamente, cena após cena, à medida que me movia. A última parte do filme está relacionada com essa experiência de assistir e, não sei, de ter assistido ao filme.

A principal razão para usar a câmara de 360 graus foi essa diferença no enquadramento e, enquanto a usava, descobria outras coisas. Por exemplo, a relação com o tipo de imagem é, por vezes, como o Google Maps, outras vezes como uma câmara de segurança ou como um videojogo. Descobri isso mais enquanto a utilizava do que antes. Não pensei especificamente que queria a câmara por isso. Mas quando vejo e edito, sempre tenho a oportunidade de acentuar isso ou não. Por exemplo, deixei alguns movimentos robóticos no computador porque me faziam pensar numa câmara de segurança. Ou algumas cenas eram mais como o Google Maps e podia escolher se queria que isso fosse mais acentuado ou menos acentuado. Portanto, sim, essa foi a razão.

É fácil conseguir financiamento para os seus filmes? Pergunto isto porque o “Auge Humano 3” é uma coprodução entre 8 países [Argentina, Peru, Brasil, Portugal, Países Baixos, Taiwan, Sri Lanka, Hong Kong].

Não! Fácil não é. Não sei quem te dirá que é fácil. Ninguém sente que é fácil, certo? Mesmo que para alguns filmes seja menos difícil do que para outros, ninguém acha que é fácil. Mas sim, a primeira vez que consegui financiamento institucional vindo de institutos de cinema, como aqui em Portugal, Argentina, Brasil, Holanda e Taiwan, foi para este filme. Para os outros, nunca consegui esse tipo de financiamento, principalmente quando comecei a fazer curtas-metragens. O que escrevia nunca interessava às outras pessoas, porém, acabei por encontrar quem se interessasse pelo meu cinema. Para as curtas, recebia ajuda de pessoas que gostaram de algum trabalho ou que leram algo que escrevi. Talvez, se gostares dos meus filmes, possas “ler” o que quero para o meu próximo filme e entender ou ter uma ideia do que pretendo fazer.

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El auge del humano 3 (2023)

Tentei procurar maneiras de fazer cinema com o dinheiro que tenho, ou fazê-lo com o apoio dos amigos. Apercebi-me de que ter as imagens filmadas é uma forma de conseguir que as pessoas se interessem em financiar o filme. Para a primeira longa-metragem, consegui financiamento privado dessa forma, graças àqueles que viram imagens que já tinha filmado ou as minhas anteriores curtas-metragens. Penso que, para este filme, provavelmente foi porque os anteriores tiveram uma boa recepção nos festivais de cinema e em outras partes do mundo cinematográfico.

E nas escolas de Cinema?

Talvez as instituições confiem mais nos meus filmes agora. Mas não é fácil. Além disso, é interessante que essas complicações tragam novas formas de resolver problemas, o que também é sempre fascinante.

Sigo para a pergunta, do qual julgo que lhe mais fazem. [risos] Este é o “O Auge Humano 3”, e houve um “1”, mas nunca um “2”. Pensa em fazer mais algum “O Auge Humano”? Talvez o 4?

Não sei. O próximo filme não será sobre o “2”, isso é certo. Não há dúvida alguma. Talvez nem sequer seja sobre o universo do “Auge Humano”. Não sei. Talvez no futuro, num futuro muito distante, quem sabe?

Mas por onde anda “O Auge Humano 2”? [risos] Ficará como um mito urbano? [risos]

Perdido no tempo. [risos] Sim, mas por agora, essa é a ideia. Não é uma necessidade fazer essa sequela. Claro, é possível, mas gosto deste mistério. É esse espaço vazio que talvez possa ser preenchido no futuro, ou talvez não. Um buraco misterioso. Também está no meu campo existir tantos buracos e partes que não compreendemos ou que estão de alguma forma em falta.

Pode falar em novos projetos? Sinto que tem um novo filme na sua mente.

Não! [risos] Não estou a sentir-me bem quanto a isso. Claro que tenho ideias em mente, mas por agora são apenas pequenas notas. No início, faço apenas anotações sobre as coisas que me despertam interesse. Depois, quando quero começar um projeto, sento-me, leio as notas e dou-lhes forma. Na maioria das vezes, provavelmente já não gosto da maior parte dessas notas, mas aquelas que ainda me agradam, junto-as e começo a trabalhar nelas. Por agora, estou a viajar muito para apresentar este filme. Além disso, como falo tanto sobre ele, sinto que preciso me distanciar e direcionar a minha mente para outro lugar. Estou sempre muito ligado aos filmes que faço, por isso não consigo dividir os meus pensamentos. Algumas pessoas conseguem ter vários projetos na cabeça; no meu caso, só consigo focar num de cada vez.

Ou seja, um “filho de cada vez” …

Sim, espero começar em breve, mas desde agosto, desde Locarno, tenho viajado sem parar. Vou continuar a viajar por mais alguns meses. Assim que conseguir desacelerar, espero poder iniciar o projeto.

7º Porto Femme: em Abril ser Mulher é continuar na Luta

Hugo Gomes, 18.04.24

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Sew to Say (Rakel Aguirre, 2023)

Abril, Águas Mil, contudo, nos último ano, na cidade do Porto parece ser costume clamar Abril, Mulheres Mil. Tendo arrancado na passada terça-feira (16/04), o festival Porto Femme apresenta-nos uma nova edição, a sétima para sermos mais exactos, novamente com destaque nas vozes femininas e acima de tudo nas suas histórias e Histórias.

Este ano, as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril contamina a programação, de lutadoras de gema a revoluções, pequenas ou grandes, redefinidoras de um cosmo feminino. Além disso, Margarida Cardoso, realizadora com sensibilidades atentas a um Moçambique historicamente colonial, é homenageada no palco (e tela) dos Maus Hábitos e do Cinema Batalha (estendendo-se para a Casa Comum do Porto, Casa das Artes e a Universidade Lusófona do Porto).

Em conversa com o Cinematograficamente Falando …, Rita Capucho, co-diretora artística do evento, aborda as novidades, os filmes (122 oriundos de 38 países), os desafios, workshops, masterclasses, e todos esses elementos que constituem este 7º Porto Femme.   

Que desafios trazem esta nova edição do Porto Femme?

A cada edição lidamos com alguns desafios que são constantes, sendo o financiamento o principal. A dignidade que pretendemos alcançar, a devida e justa para todas as pessoas que trabalham no projecto e que nele participam mobilizam-nos todos os anos.

Para esta edição em particular o maior desafio foi olhar para a nossa trajetória e pensarmos em termos de interseccionalidade e de diversidade e de que modo poderíamos trilhar um caminho mais inclusivo.

O festival tem sido programado no mês de abril desde a sua sexta edição e neste ano de 2024 ganhou um sentido especial além do desafio de pensar um programa para o mês com a enorme carga simbólica que são os 50 anos da Revolução dos Cravos. Longe de fugir ao tema, resolvemos mergulhar e refletir sobre o seu contexto histórico e como afetou a vida das mulheres. A escolha do tema recaiu sobre as mulheres e as revoluções, com intuito de refletir sobre a luta dos direitos das mulheres que ainda está bastante aquém, e tão pouco chegou com o 25 de abril, se se pensa com relação à igualdade de género, à liberdade e ao poder de decisão sobre o próprio corpo, entre outros aspectos. A decisão de apresentar o tema “Mulheres e Revoluções” no plural, quer refletir a diversidade em termos de contextos político, sociais, geográficos e étnicos. O movimento feminista funciona a diferentes ritmos consoantes esses contextos. 

Um dos destaques desta edição é a homenagem à cineasta Margarida Cardoso, das suas visões oriundas de um Moçambique colonial e pós-colonial, assim como o fortalecimento no olhar feminino nestas mesmas “visões”. Gostaria que me falasse no trajeto até à proposta desta homenagem, e a importância de Cardoso, não só no cinema português e para lá do continente, como também nas correntes discussões sobre o colonialismo.

Desde o início do projeto que a Margarida Cardoso esteve presente na lista das cineastas que pretendíamos homenagear. Com a decisão de abordarmos o tema a partir da perspetiva do 25 de Abril, pareceu-nos o melhor contexto para trazê-la ao palco do festival. Os filmes da Margarida abordam o passado colonial e pós-colonial, debates cada vez mais presentes na sociedade portuguesa, além de seu olhar muito particular que traz as mulheres para o centro, dando visibilidade e que nos parece ser um olhar necessário, atento, sensível e reflexivo. Interessa-nos sobretudo este tipo de olhar e de sensibilidade.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

Gostava de destacar a secção especial “Mulheres de Câmara na Mão, Cinema e Revolução” que apresenta filmes realizados entre 1975 e 2015, e que em sua maioria reperspectivam o 25 de abril. Poderão ser conferidos obras de Ana Hatherly,  Catarina Alves Costa, Margarida Rêgo,  Solveig Nordlund, Monique Rutler e  Luísa Sequeira, co-curadora deste programa. Além disso, os filmes da competição temática traz uma seleção de narrativas revolucionárias, como por exemplo, “Analogue Revolution: How Feminist Media Changed the World” (2024) de Marusya Bociurkiw, faz um apanhado das comunicações feministas entre os anos 70 e 90, precedendo a era #MeToo; “Šagargur” (2024) de Nataša Nelević, é o testemunho sobre um campo de prisioneiros na ilha de São Gregório, onde mais de 600 mulheres foram torturadas entre 1949 e 1952; “Sew to Say” (2022) de Rakel Aguirre, apresenta um protesto feminista que durou quase duas décadas, em que mulheres se fixaram num acampamento para protestar contra as armas nucleares; “Uma Mulher Comum” (2023) de Debora Diniz, é a história de uma mulher que viaja à Argentina para realizar um aborto.

Gostaria que me falasse sobre o workshop - “Desconstruindo estereótipos - o cinema como linguagem para transformação” - e as pretensões e objetivos deste evento.

Este workshop é realizado em parceria com o CineDelas e procura explorar temas da contemporaneidade no cinema e debater de que modo é possível democratizar e criar melhores condições para alterar o atual paradigma do setor no que diz respeito a igualdade de géneros, a condições laborais e a condições de inclusão.  

O objectivo é refletir sobre os estereótipos tendo como temas orientadores o feminismo, a colonização, o patriarcado, a democratização da cultura e do cinema, a importância da cultura local e regional, entre outros. De uma proposta de reflexão surgirá o desafio de criarem uma curtíssima de um minuto que apresente o olhar particular de cada participante.

O recente filme de João Salaviza e Renée Nader Messora - “A Flor do Buriti” - menciona a luta das mulheres indígenas em “empoderar-se” (palavra que extraiu do português do Brasil) num país constantemente alavancado num capitalismo feroz e nas constantes ameaçadas do ultraconservadorismo que relegam os povos originários à condição subhumana. Trago isto como mote de conversa sobre a especial secção “Uma Revolução Íntima. De Monstros e Mulheres no Cinema Indígena”, se a idealização deste espaço prendeu-se com a influência da estreia do filme, e que propósitos tem essa mesma secção especial?

A ideia para esta secção especial já vem de edições anteriores, mas não deixa de ser interessante esta coincidência, inclusive porque possibilita ampliar o diálogo com outras iniciativas afins. Esta secção especial com a curadoria da Maria Luna-Rassa — coordenadora e programadora associada da Muestra Internacional Documental de Bogotá — apresenta filmes produzidos em outros países da América Latina, Colômbia e México, que poderá ser um interessante complemento à produção brasileira. O propósito desta secção, como também da “Enfim o Amor”, é criar espaços de visibilidade, trazendo novas narrativas e novos protagonismos para o centro do festival. 

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Quais os próximos desafios para a Porto Femme em edições futuras? Haverá extensões por outro lugares fora da cidade da Invicta (e as sessões de Lisboa)?

Mensalmente, na última quarta do mês, apresentamos as nossas Femme Sessions no Maus Hábitos no Porto e já deixo o convite para a do dia 24 que trará alguns premiados da edição. 

Ao longo do ano percorremos o país com as nossas sessões itinerantes. No ano passado, estivemos em Leiria, Viseu, Coimbra, Águeda, Amarante, Aveiro e Amadora. Habitualmente programamos sessões ao nível internacional, tendo realizado no ano passado sessões no Brasil e no Canadá. Este ano o objectivo é regressar a algumas destas cidades e claro levar o festival a novos locais e a outros países.

Toda a programação aqui

Cantar para os espíritos reunir ...

Hugo Gomes, 20.03.24

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(...) talvez tenha sido o que mais me emocionou, que vocês, tu João e tu Renée, tenham deixado para trás o antropológico, tenham deixado para trás o etnográfico,entregando-nos a condição humana, deixando-nos simplesmente perante a vida, que é observada, que é olhada e também amada.

Paz Encina, “Passagens” / Edições Batalha Centro de Cinema

 

Aproveitando a deixa da realizadora paraguaia de “Eami”, assumidamente amiga deste casal-cineasta, lanço-me naquilo que tanto me fascinou neste “A Flor do Buriti”, e que já havia sido sugerido em “Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”: o convite e completa submersão num mundo que não é o nosso, sem estranhezas e sem pedagogias de qualquer espécie. Assim, começamos pela noite escura, envolvida numa fogueira sob cânticos ancestrais. Há um chamamento, ou talvez premonição, perto daquela intimista festividade: uma grávida na angústia das suas dores, natural como é assim dito para acalmar a “pobre criatura”. Mais afastado desse círculo, um bando de crianças depara-se com um animal estranho no seu território: um bovino, o símbolo de uma civilização, como os seus integrantes adoram apelidar em prol de uma superioridade modernista, que estes Krahôs pouco ou nada desejam conhecer. Uma praga, ou antes uma espécie invasora anexada a outra com iguais fins. Com este prelúdio, damos de cara à espectralidade que nos aguarda sossegadamente.

A Flor do Buriti”, que conta com a escrita de um dos membros da comunidade indígena (Henrique Ihjãc Krahô), e filmado em 16mm, assume a urgência de um arquivo memorialista, dando palco a estes protagonistas na partilha das suas interações, das suas dores, tragédias com que vivem, ou no medo que os habita. Talvez seja longe do seu costume, mas difícil testemunhamos um sorriso nas suas faces, soam-nos, não “criaturas” tristes, mas indivíduos conformados com a sua fatídica existência no mundo moderno, ora indesejável nestas lides do progresso e das políticas daquele Brasil que declara posse das suas vidas.

E é nessa existência que Salaviza e Messora encaminham invisivelmente, é o tratado do indígena, não uma extração de recordações e de passados que mereciam estar confinados nas profundezas, é o seu simbolismo, como o mundo parece-lhes ou como a fauna e a flora lhes encaram. Resistência e resiliência, transcendências e onirismos terrenos, como os Krahôs acreditam que os seus sonhos são apenas pedestridades da sua alma e como a morte, esse fim, não é mais que uma passagem. Os espíritos permanecem com eles, comunicam e deixam-se ser comunicados, dançam e cantam, a noite torna possível essa tradução, rompendo dimensões e barreiras impostas pela sobrenaturalidade, esse ditame ocidentalizado que coloca numa caixa tudo o que desconhece.

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A Flor do Buriti” bebe dessa naturalidade à sobrenaturalidade, o que já estava indiciado na obra anterior, mas leva-nos mais agreste, mais familiarizado (e pudera). Porém, há um contágio, um resquício nessa civilizacionalidade no percurso destes “índios”. Perante as “portas escancaradas” deixadas pelo Governo de Bolsonaro, o par que se destacou, partindo em direção a Brasília, percorrendo um Brasil contaminado pelos cantos e sermões evangélicos (prova viva de colonização) ou da mentalidade de vaqueiro e tudo o que isso acarreta, manifestando-se por um lugar desapropriado, desfeito, desvinculado, são indígenas de tribos várias, que de punho erguido, solicitam um estatuto deveras naquele país multicultural.

Neste último ato, como havia acontecido no “Chuva’” ("Krahô? Não. O teu nome de Branco?", como nunca esquecer aquele golpe de realismo sob comentário social), Salaviza e Messora lançam “farpas”, consolidam a sua experiência e cometem o seu ativismo possível, o seu gesto político, perfeitamente sincronizado com o zeitgeist e com as vontades desses seus protagonistas, é o retiro da realidade que nos impôs, a realidade dos “Krahô”.

Após a fuga, o tal movimento de protesto, as heroínas no palanque prometendo mundo e fundos numa luta, sem questão, desigual, voltemos ao “mato dos Krahôs”, aos seus rituais, à sua oralidade contada, partilhada envolto de cicatrizes e calos, e deixemos enraizar entre eles. O filme leva-nos a isso, a permanecer com eles, sem com isso nos tornarmos iguais, e por sua vez, sem nunca ceder a um olhar de estranheza, “estrangeiro” acrescentamos àquela comunidade. Não se trata do “selvagem conquistado”, mas antes disso do “espectador amestrado”. Uma viagem para além do terreno, do político, de uma dimensão que nós desconhecemos com força. O olhar dos Krahôs!

 

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro

Em sombra, em luz, em som magnífico

Caetano Veloso

Preencher um silêncio em "Os Faroleiros": uma conversa com o compositor Daniel Moreira

Hugo Gomes, 30.03.23

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Realizado, escrito, produzido e protagonizado por Maurice Mariaud, “Os Faroleiros” (1922) foi durante tempos considerado um dos projetos mais ambiciosos concretizados em solo português. O “drama-documentário”, desta forma descrito, apresenta-nos um trio amoroso rompante entre “ondas de paixão e de ódio”, decorrendo numa vila costeira “guardada” por um pujante farol. Aqui, uma bela órfã, Rosa (Abegaida De Almeida), é acolhida pelo tio, o faroleiro João Vidal (o próprio Mariaud), que nutre sentimentos por ela. Contudo, o coração da moça também é disputado por António Gaspar (Castro Neves), o outro faroleiro, sedento de uma mortal obsessão. O filme culminará num confronto entre os dois homens, “barricados” na “torre luminosa” e lutando pela memória de um amor perdido, tentando com isto sobreviver numa prisão marítima algures entre o espiritual e o delirante. 

“Os Faroleiros”, raridade preservada (estando várias décadas desaparecido, até ser reencontrado em 1993 no Palácio do Bolhão, no Porto) e restaurada no âmbito do FILMar, projeto operacionalizado pela Cinemateca Portuguesa, parceira e impulsionadora desta iniciativa, com o apoio do programa EEA Grants 2020/2024, encontra nova vida nos grandes ecrãs. Primeiro no Batalha [Porto] e depois em Lisboa na Culturgest [31.03, pelas 21h00], num concerto orquestral conduzido e originalmente composto por Daniel Moreira e interpretado ao vivo pelo quarteto de cordas The Arditti Quartet.  

Em preparação com o espectáculo a decorrer na capital, conversei com o compositor e investigador musical sobre esta encomenda, e ainda abordando a relação Herrmann / Hitchcock e a escassa tradição de banda-sonora à portuguesa. 

A minha primeira questão soará um bocado “vaga”, mas gostaria de entender a sua relação com o Cinema e com a Música. Se foi através da Música que se relacionou com o Cinema, ou se pelo Cinema se relacionou com a Música?

Desde há muito que tenho uma forte relação com o Cinema. Embora seja músico, de formação e de profissão, costumo dizer que gosto tanto do Cinema como da Música. E na verdade isso possui uma dimensão pessoal, o de gostar de ver filmes e de conhecer o que se faz no mundo do cinema, como também reflete no meu trabalho - porque para além de ser compositor sou também investigador em música, em áreas mais teóricas - cujo foco principal é a música de cinema e a relação entre música e o cinema. 

Tenho projetos, sobretudo, sobre o trabalho de Bernard Herrmann, principalmente com Alfred Hitchcock, e sobre a noção de musicalidade dos filmes do David Lynch. Do ponto de vista da composição, na verdade, este projeto foi fantástico, porque desejava essa experiência de escrita musical para cinema. Tinha alguns projetos que infelizmente não chegaram ao fim, e este é o primeiro que efetivamente chega a concretizar-se.

Queria que me falasse um pouco sobre esse seu trabalho acerca do Bernard Herrmann e até que ponto não podemos desassociar o compositor do cinema de suspense do Hitchcock?

A minha investigação sobre Bernard Herrmann começou pela sua colaboração com Hitchcock, e o que se encontra publicado circula entre os seus trabalhos em torno de “Vertigo” e de “Psycho”, enfim, hoje soam como exemplos previsíveis e supra-estudados, possivelmente os filmes mais estudados dentro do Cinema, não apenas dentro da sua área musical. Mas ao fazer essas investigações e sobretudo a do “Psycho”, acabei por sentir a necessidade, também fui encorajado na altura pelo editor da revista em que o artigo foi publicado, abranger mais sobre o trabalho do Bernard Herrmann no cinema, e não restringi-lo a somente Hitchcock. Este aprofundamento permitiu-me reconhecer particularidades do estilo-modelo, e a partir do último ano, tal estudo começou a abrir outras portas. Encontro-me, atualmente, numa fase de tentar conhecer todas as bandas sonoras da autoria de Herrmann, o qual contamos com por volta de 50 partituras, e com isto desenvolver uma pesquisa mais transversal, porque embora ele seja reconhecido pelas colaborações com Hitchcock, que contabilizam 6 ou 7 obras, ele ainda trabalhou com muitos outros realizadores, e em outros géneros, como filmes de aventura, e de ficção científica.

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Daniel Moreira / Foto.: Culturgest

… e trabalhou com Orson Welles em “Citizen Kane”.

Com o Orson Welles também. Essa colaboração também é muito importante. E depois tem filmes assim, soltos, que na minha opinião possuem uma música igualmente fantástica, por exemplo, “Sisters”, do Brian de Palma, uma banda sonora extraordinária, ou até mesmo "The Day The Earth Stood Still" de Robert Wise. E, portanto, agora estou numa fase de perceber um ‘bocadinho’ melhor o seu trajeto artístico, e muito fora de Hitchcock. Embora, a partir de certa altura, essa ligação tenha sido tão marcante que alguns realizadores desejaram trabalhar com ele devido essa referência de colaboração com Hitchcock

Portanto, é incontornável essa colaboração, até porque transformou o cinema do Hitchcock. O seu cinema não seria mesmo sem essa colaboração.

Em relação a Brian De Palma, há todo um sentido nessa repescagem, visto que Hitchcock era em grande parte o seu modelo de Cinema.

Sim, obviamente.

Tinha uma lógica de seguir essas pisadas. Agora, passando aos “Os Faroleiros”, gostaria que me falasse um pouco deste trabalho. Estamos a falar de um filme mudo, hoje considerado uma raridade, e que durante vários anos esteve perdido, tendo sido posteriormente recuperado, e remasterizado.

Certo.

E sobre “Os Faroleiros”? Teve alguma referência sobre a sua composição musical ou criou algo em termos de raiz?

Sim, foi uma questão que me levou a ter muita reflexão no início, mas em relação a este filme não se conhecia nenhuma banda-sonora autêntica e original da época. Penso que nunca há tido. Soube até, por falar com outras pessoas que têm investigado isso, que na altura dos anos 20, em Portugal, alguns filmes tiveram composições originais. “Os Lobos” de Rino Lupo, por exemplo, teve uma partitura original. 

Consultei algumas dessas partituras para tentar perceber o tipo de música que se fazia na altura no nosso país. Não sei se isto teve uma influência muito direta na música que escrevi, mas constatei que era habitual na década de 20’, quando havia música previamente composta para filmes, eram sobretudo formações de música de câmara e não tanto para orquestra. Por exemplo, quinteto com piano, o quarteto de cordas convencional com piano, ou por vezes formações parecidas com essas, mais um ou dois instrumentos. E desse ponto de vista, achei curioso que a encomenda vinda do Batalha, no Porto, tenha sido uma proposta de escrita para quarteto de cordas. Uma ligação, digamos, à tradição, pelo menos ao tipo de formação existente em Portugal na época.

E, portanto, essa referência foi para mim importante. Na verdade, fiquei satisfeito, em medida que fui avançando no processo, que tivesse seguido para uma formação de câmara e não para uma formação mais larga de grande ensemble [pequeno agrupamento de intérpretes que pode englobar instrumentistas e/ou cantores] ou de orquestra, porque acho que um filme como este … que em certa maneira, é um drama de câmara no mesmo sentido que os filmes do Bergman. Não é que seja muito bergmaniano, é, contudo, bastante focado, pelo menos da maneira na relação entre três ou quatro personagens. Aliás, há uma parte substancial do filme em que até só temos duas personagens. E portanto, pareceu que ter um ensemble relativamente pequeno casava melhor com essa atmosfera do que ter um ensemble muito maior.

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Esse último ato que você falou, quando as duas personagens estão “aprisionadas” no farol, num perverso jogo de “mata-mata”, julgo ser o ponto auge do filme.

Tem uma dimensão quase expressionista, não é? Muito forte, claustrofóbica e violenta, na verdade. Que, musicalmente, foi muito desafiador e para alguém como eu que gosto de Bernard Herrmann e das emoções mais sombrias que era tão exímio ao retratar musicalmente, tais nuances foram inspiradoras. O filme é interessante, porque reúne atmosferas bastantes diferentes, se no final alberga esse tom quase expressionista, o início é-nos muito diferente. Essa diversidade atmosférica converte-se num ambiente sugestivo para a música. Ao mesmo tempo que se tem esta noção de que atmosfera vai para além da música que se cria, do mesmo modo que esta vai-se definindo consoante a composição musical criada. Se impusesse outra partitura, ou até mesmo outro compositor, a atmosfera nunca seria a mesma. Uma das vantagens em ver cinema mudo musicado do que sem música alguma, as experiências são díspares. 

Até à data desta conversa, o Daniel conduziu a sessão do Batalha, e encontra-se pronto para o da Culturgest. Ficaremos por aqui nesta experiência de composição para cinema ou existe um “bichinho” para continuar?

Vou dizer que SIM [risos]. Só que não depende de mim, e sim das instituições que a promovem. Mas sim, foi uma experiência e tanto, e muito gratificante, a de compor uma música para um filme raro e histórico cuja sua partitura original desconhece-se, foi um processo enriquecedor. 

E quanto a banda-sonoras de filmes contemporâneos?

Sinceramente, gostava de avançar numa proposta dessas se alguma oportunidade surgisse. Tenho a consciência que fazer música para um filme sonoro seria muito diferente para um mudo, por várias razões, uma delas é que não tive que negociar a música com o realizador [risos] … por razões óbvias, não é? Enquanto num filme sonoro teria, o que significaria menos liberdade mas que me daria um grau de colaboração o qual gostaria de experimentar. Por outro lado num filme mudo, à partida, o único “som” que se ouvirá será o da música que compus, e num ‘sonoro’ teria que aliar-me a diálogos, sound design e sonoplastia. 

De certa forma, o meu trabalho com “Os Faroleiros” também serviu para compensar essa falta de sonoplastia, dar essa sensação através da música, essencial num filme tão forte nesse ponto de vista, com todo aquele ambiente marinho invocado e os muitos planos expressivos do mar. Não de maneira direta, mas o que tentei fazer foi, através dos instrumentos, sugerir os sons que poderíamos ouvir naquela atmosfera. Obviamente que num ‘sonoro’, a música iria ter essa função, só que estaria em permanente diálogo com os outros elementos sonoplásticos. 

Outra diferença, é que num ‘mudo’ a música necessita ser quase onipresente, se o filme tem duração de 80 minutos são 80 minutos de música ininterrumpida. Já o ‘sonoro’, os outros elementos seriam destacados, por vezes ganhando prioridade sobre a música, ou, por vezes dispensá-la. Outro factor é a gestão dos silêncios, o ‘sonoro’ trabalha o silêncio, coisa que o ‘mudo’ não faz de maneira a não quebrar o seu vínculo musical / visual. 

Pegando novamente na banda-sonora de filmes “falantes”, e num prisma português, não pude deixar de reparar, salvo algumas excepções, que o nosso cinema é pobre em partituras originais. Novamente friso, salvo algumas excepções como alguns trabalhos do Rodrigo Leão, mas tenho notado as enésimas colectâneas de clássicos presentes em muitas das nossas obras, nomeadamente a quantidade de vezes que ouço o “Moonlight Sonata” de Beethoven a tocar. De um modo geral, não possuímos uma tradição de banda-sonora cinematográfica?

Não conheço tão profundamente o universo, mas existem várias excepções, recordo, por exemplo, da colaboração de Manoel de Oliveira com João Paes nos anos 80 e que foram responsáveis pelo original e fantástico “Os Canibais” (1988), um filme de ópera absolutamente único no Mundo. Mas fora mesmo desse registo operático, tens também o “Francisca” (1981), com uma partitura bastante original … e pelo que sei o Daniel Bernardes tem colaborado com o Botelho. Ou seja, as excepções são muitas, mas é verdade que existe essa prática em abundância, o João César Monteiro recorria maioritariamente à música clássica pré-existente … quer dizer, não só clássica, e sim pré-existente. O que também é toda uma arte fantástica, crítica uma obra dessas é como crítica uma obra-prima do Kubrick

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"Os Canibais" (Manoel de Oliveira, 1988)

Claro, claro, não estou a criticar o gesto em si, nem a música selecionada, estou com isto a constatar essa baixa tendência em criar bandas-sonoras próprias. Visto que falou do João Paes e do Oliveira, também gostaria de colocar na conversa o rock progressivo de António de Sousa Dias no badalado “Os Abismos da Meia-Noite” de António de Macedo, que julgo ter sido posteriormente editado em álbum. 

E quanto a novos projetos? 

Sobre investigação posso falar à vontade, já os de composição deixo em abstracto porque ainda não foram anunciados publicamente. Os de investigação são mais aos menos as duas alíneas referidas. O primeiro, que é o de compreender o estilo e influência de Bernard Herrmann (que talvez origine um livro daqui a uns anos) e segundo, não mais sobre um compositor, e sim de um realizador, David Lynch. Uma ideia de musicalidade envolto nos seus filmes, e nas séries televisivas, é um pouco pegar no que ele acredita, ou seja, segundo Lynch as suas obras são como partituras musicais, e isso é comprovado através deles. Na verdade ainda estou em fase, de levar os meus artigos a conferências, com isto recolher feedback das pessoas desse campo, tendo a ideia máxima de transformá-lo num livro.

Do ponto vista da composição, tenho várias ‘coisas’! Sou de formação clássica contemporânea, logo todos os meus projetos não são todos necessariamente relacionados com o cinema. Tenho um projeto que envolve coro e orquestra, e talvez eletrônica, e ainda existe outro que coloca ópera e ecrã. Peço desculpa, mas tenho que ser muito abstrato aqui. [risos]