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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Elas Fazem Filmes", e fazem mesmo!: Mostra de realizadoras segue pelo país fora através da MUTIM

Hugo Gomes, 18.09.24

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Frágil como o Mundo (Rita Azevedo Gomes, 2001)

Arranca hoje (18/09) a mostra itinerante “Elas Fazem Filmes” - uma colaboração entre a associação MUTIM (Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento) e a Cinemateca Portuguesa, com o apoio do ICA. A mostra parte da “casa-mãe”, o Museu do Cinema, com uma sessão dupla: Cães que Ladram aos Pássaros, curta-metragem de Leonor Teles, e a segunda longa-metragem de Monique Rutler, “Jogo de Mão”, cineasta a ser redescoberta, e prossegue com a ambição de chegar a 14 cidades de todo o país até julho de 2025, trazendo uma coleção de obras, célebres e algumas esquecidas que merecem uma nova apreciação, todas dirigidas por mulheres - cineastas portuguesas que desafiam o cânone ou oferecem uma um novo olhar sobre a História do Cinema Português.

A mostra inclui fragmentos de Barbara Virginia, indiscutivelmente a primeira mulher realizadora em Portugal, com “Três Dias sem Deus” (dos 102 minutos, só restam atualmente 25), a inaugural produção portuguesa a competir no Festival de Cannes. Inclui também as primeiras obras de Rita Azevedo Gomes (“Frágil Como o Mundo”, 2001), Manuela Viegas (“Glória”, 1999) e Margarida Gil (“Relação Fiel e Verdadeira”, 1987), documentos históricos de Raquel Soeiro de Brito (“Erupção Vulcânica dos Capelinhos”, 1958) e de Ana Hatherly (“Revolução”, 1975), animação (trabalhos de Laura Gonçalves, Regina Pessoa e Alexandra Ramires) e documentário (Catarina Mourão, Cláudia Varejão ou Susana de Sousa Dias), entre outros. Um verdadeiro “espectáculo de variedades”, uma montra polivalente de filmes cujo único elo comum é o facto de terem sido conduzidos, concebidos e produzidos através do trabalho árduo e dedicação de mulheres.

O MUTIM disponibilizou-se a responder a algumas questões do Cinematograficamente Falando… não só sobre o ciclo itinerante, como também sobre as projeções e ativismos que “Elas Fazem Filmes” pretende alcançar, bem como sobre a natureza e a estrutura do coletivo. Mariana Liz, professora e co-autora do livro “Realizadoras Portuguesas: Cinema no Feminino na Era Contemporânea”, e Marta Fernandes, distribuidora e programadora [Midas Filmes], aceitaram o desafio, e respeitando o espírito do movimento, falaram em nome de todas, e não apenas uma. Assim, o MUTIM assume uma entidade coletiva e própria neste informativo diálogo. 

Qual foi o impulso inicial para dar vida à mostra “Elas Fazem Filmes” e quais os obstáculos enfrentados ao longo do processo de curadoria e produção?

Desde a sua criação em Abril de 2022, que a MUTIM promove sessões de filmes realizados por mulheres, sessões que contam com debates e a presença sempre que possível de realizadoras ou membros da equipa e de outras profissionais que possam discutir os filmes. As sessões começaram em Lisboa, em parceria com o Goethe-Institut, e mais tarde passámos também a promovê-las no Porto, em conjunto com a Casa das Artes. O ano passado e depois das conclusões do estudo do meio sobre “A Condição da Mulher nos Sectores do Cinema e Audiovisual em Portugal achámos que devíamos criar uma iniciativa que nos permitisse promover o cinema feito por mulheres em Portugal, mas também discutir a nível nacional e com os espectadores as conclusões a que o estudo chegou. As mulheres ganham menos, ocupam menos cargos de chefia, tem mais entraves à progressão da carreira, são vítimas de discriminação de género, assédio, racismo. 

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Jogo de Mão (Monique Rutler, 1983)

Relativamente aos entraves, o apoio que conseguimos do ICA, sendo fundamental para levarmos a cabo a mostra, foi, infelizmente, inferior ao solicitado e por isso não nos permitirá ir a tantas cidades como ambicionávamos. E no processo de programação, existiram também filmes que gostaríamos muito de ter incluído, mas que não foi possível por uma questão de inexistência de cópias disponíveis ou por questões de direitos. 

A mostra reúne cineastas de diferentes gerações, de géneros como também de movimentos artísticos. Como se deu a seleção dos filmes e de que modo acreditam que essa diversidade de perspetivas traduz o panorama do cinema português à luz das mulheres?

A programação da mostra “Elas Fazem Filmes” foi, como aliás todo o processo desde a procura de financiamento até à produção em curso, um trabalho colectivo, feito a muitas mãos. Queríamos apresentar uma programação inédita que permitisse ser um ponto de partida para reflectir sobre o cinema feito por mulheres em Portugal. E para isso era fundamental apresentar filmes de cineastas de diferentes gerações, a trabalhar em diferentes géneros cinematográficos de forma a que pudéssemos ter uma diversidade fértil de olhares e estabelecer diálogos entre filmes e realizadoras. Quisemos ter o máximo de géneros presentes, ter animação, documentários, documentários mais experimentais, aproximações ao fantástico e ao terror, ao filme etnográfico, à ficção científica. Mostrar que o cinema feito por mulheres em Portugal é muito variado e rico. E ajudar a desmontar preconceitos que existam relativamente ao cinema português e especificamente ao cinema realizado por mulheres. 

A colaboração com a Cinemateca Portuguesa, nomeadamente no que toca à digitalização de filmes, foi um ponto essencial para a concretização deste projeto. Como vêem o impacto dessa parceria na preservação e disseminação da obra cinematográfica de mulheres portuguesas?

É um trabalho imprescindível. Parte dos filmes que iremos mostrar só é possível fazê-lo graças a este trabalho da Cinemateca. Seria muito difícil exibir fora de Lisboa e da Cinemateca muitos dos filmes que programamos. É possível fazê-lo porque existem hoje cópias digitais. É preciso ter sempre presente a questão do acesso. Quando, no passado, outras cidades reivindicavam o direito a ter uma Cinemateca, estavam a pedir a descentralização. É claro que o acesso a cópias em 35mm é sempre difícil e por questões de preservação pode ser limitado. Com a digitalização, a circulação torna-se possível e os filmes passam a ser programados mais facilmente, salvando-os de uma invisibilização a que eram sujeitos por uma questão de suporte. Mas é um trabalho que tem de continuar a ser feito, e deve ser defendido e promovido, porque continuam a existir muitos filmes por digitalizar. 

A MUTIM defende uma maior equidade no sector cinematográfico e audiovisual. Na vossa opinião, que transformações mais urgentes precisam de acontecer para garantir uma verdadeira representatividade das mulheres no meio?

Há várias medidas que podem ser postas em prática e que contribuíram não só para uma maior representatividade das mulheres, mas também uma maior igualdade do setor do cinema e audiovisual em Portugal. Por exemplo, a MUTIM defende o estabelecimento de parcerias com instituições públicas, como a

Comissão para a Igualdade de Género, no sentido de explorar sinergias ao nível do aproveitamento de políticas que tenham impacto no nosso sector, e na sociedade de forma mais lata. Inspirando-nos no que já acontece em outros países europeus, propomos também que se implementem, nos concursos públicos de apoio ao sector, incluindo os do ICA, majorações nos projetos que cumpram critérios de representatividade de género e nos projetos que tenham como criadores e/ou chefes de departamento pessoas racializadas. 

Para além disto, defendemos a atribuição de um valor monetário extra a produções que cumpram 50%/50% ao nível da paridade de género na constituição das suas equipas e respetivas direções de departamento; e a atribuição de um valor monetário extra para a seguinte produção de produtora que continue a cumprir o critério dos 50% / 50% na composição de género das equipas. No que tem a ver com composições de jurados de prémios e financiamentos ao setor, é muito importante não só ter paridade, mas também formar as pessoas no sentido de combater o unconscious bias do sector e diminuir os estereótipos das candidaturas. Dar aos jurados Inclusion Checklists para acompanhar a leitura dos projetos pode também ser útil se contemplado no regulamento, e prevendo a atribuição de pontos extra na avaliação aos projetos que os cumpram. 

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Três Dias sem Deus (Barbara Virgínia, 1943)

Finalmente, recomendamos que seja posta em prática uma avaliação interna contínua sobre representatividade de género e racial, sendo que, na sequência do nosso estudo, acreditamos que ganhar consciência anual dos dados factuais que compõem ou não a diversidade das produções e das narrativas é um primeiro passo fundamental para a construção de um setor mais diverso e menos desigual. Aliada a esta visão, propomos também o estabelecimento de metas percentuais de representatividade e consequente aplicação de medidas para as concretizar.

De que forma a mostra “Elas Fazem Filmes” procura fomentar uma reflexão crítica sobre a imagem e o papel das mulheres no cinema português, tanto no conteúdo narrativo como nas oportunidades de participação?

Todas as sessões da mostra terão uma conversa / debate no final que contará com as realizadoras, profissionais mulheres que integraram a equipa técnica e artística dos filmes apresentados e associadas da MUTIM. E tentámos organizar as sessões de forma a que duas realizadoras de gerações diferentes pudessem conversar sobre as semelhanças e diferenças nos desafios de filmar nas suas gerações. Ao convidar não só realizadoras a falar sobre o filme, mas também outras profissionais, queremos sublinhar o trabalho da criação de um filme como um trabalho colectivo e valorizar todas as profissionais que para nele trabalham. Como já foi dito, queremos também que associadas da MUTIM estejam presentes para discutir as conclusões do estudo do meio, porque falar das conclusões do estudo é o primeiro passo para a mudança. 

A interseccionalidade tem sido um pilar nas discussões da MUTIM. De que modo este princípio influenciou a escolha dos filmes e como têm procurado dar palco a mulheres de diferentes contextos sociais, raciais e geográficos?

É algo que temos sempre presente e que tentamos cumprir o máximo possível e como tal influenciou parte das escolhas que fizemos de programação. Sabemos que as dificuldades que as mulheres enfrentam no cinema e no audiovisual são ainda maiores quando falamos de mulheres fora dos centros urbanos ou de mulheres imigrantes, racializadas ou trans. O nosso trabalho tem obrigatoriamente de passar por ajudar a eliminar essas barreiras.

A mostra vai passar por várias cidades do país. Como esperam que a itinerância contribua para a receção das obras e para a criação de novos públicos, especialmente fora dos grandes centros urbanos?

Quando começámos a pensar a mostra, pareceu-nos crucial que não fosse mais uma mostra que se centrasse unicamente nos grandes centros urbanos, até porque já organizávamos sessões regularmente nas cidades de Lisboa e do Porto. Tendo em conta que é muito mais difícil aceder a cinema português fora das grandes cidades, e mais ainda a filmes realizados por mulheres, achámos desde o início que a itinerância e levar estes filmes ao máximo de cidades possível seria uma necessidade. Mas mais que mostrá-los, os filmes serão acompanhados pelas realizadoras e por associadas da MUTIM porque queremos que se estabeleça um diálogo com os públicos, queremos ajudar à formação de públicos para o cinema português, mas também ajudar ao debate sobre as questões de género. E tentaremos em todas as cidades por que passarmos e com a ajuda dos nossos parceiros locais fazer um trabalho junto do público escolar, trabalho que nos parece de extrema importância.

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Para mais informação sobre a mostra ver aqui

O meu Cinema é feito de Mulheres!

Hugo Gomes, 09.03.19

Não é só o dia 8 de Março que as mulheres devem celebradas, aliás, o dia da Mulher deve ser, sobretudo, normalizado. Todos os dias são dias de mulheres, e todas as mulheres fazem parte dos nossos dias. Como tal, eis o meu contributo, as mulheres especiais que integram o meu Cinema … digo por passagem, que são somente algumas.

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O "menosprezo" da importância do cinema de investigação

Hugo Gomes, 25.10.17

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Quem é Bárbara Virgínia? (Luísa Sequeira, 2017)

Há uma vertente que levemente tem surgido no panorama do documentário português, uma vertente jornalística, não a de mera entrega de informação, mas de investigação. Essa no qual poderá denotar o pessoal (identitário) ou coletivo (demanda para a divulgação, preservação de memória). Este tipo de documentários, que se prolongam ou evitam o cinema como mera lente de documentação de imagens (que porventura poderá anexar-nos a memórias etnográficas e épicas), não são de todo bem vistas na comunidade-nicho da cinefilia. Há quem os acuse de aligeirar o poder e possibilidades (de momento infinitas) de Cinema, desde a sua narrativa até ao estilo intrínseco e extrínseco, porém, e tendo em conta a muita da seleção presente de um Doclisboa, poderemos considerar esta “básica” forma de fazer documentário num registo outsider e porque não, na maioria dos casos, mais experimentais e concisos na sua abordagem.

Como exemplo desse cinema-investigação, Catarina Mourão elevou-se numa busca ínfima de autodescoberta com “A Toca do Lobo”, onde seguiria o paradeiro do avô da realizadora, figura que não conhecera por completo mas que deixou marcas. A realizadora / documentarista apresenta-nos um objetivo claro na sua proposta (“descobrir quem é este homem”), convite claro que o espectador retém no seu arranque, a viagem, essa, vinculada num híbrido entre a investigação propriamente dita e a deambulação pelas memórias pessoais. Em todo o caso, porque não reconhecer “A Toca do Lobo” como um objeto no limiar do intimismo e da retribuição social.

De estética pessoal, mas de caráter mais urgente, está “Quem é Bárbara Virgínia?”, de Luísa Sequeira, outra investigação [presente nesta edição do Doclisboa] que regista um pedaço de História portuguesa, neste caso Bárbara Virgínia, a multifacetada artista que se tornou na primeira mulher realizadora nacional, atualmente “apagada”, é o corpus de estudo que despoleta uma tremenda jornada de conhecimento pessoal com vista maioritária para o público e memória futura na “salvação” deste personalidade. O objetivo neste caso encontra-se no título (Quem é Bárbara Virgínia?). O espectador tem com isto a certeza do que vai encontrar, a proposta é clara. Quanto à forma como a mensagem é emitida, essa tem a sua razão de divergir dos moldes, digamos, televisivos. Luísa Sequeira consegue sobretudo uma investigação com uma apresentação intimista, até porque esta procura torna-se, para todos os efeitos, bastante pessoal (apercebemos o quanto a imagem de Bárbara Virgínia transgride da meta de estudo para a transferida pessoalidade numa determinada sequência, a anunciada morte de Virgínia e a reação da nossa documentarista perante tal).

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Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (João Monteiro, 2016)

Porém, talvez de caráter urgente acima da sua pessoalidade, temos “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo”, de João Monteiro, uma contagem de linguagem televisiva que visa em projetar o legado de Macedo e apurar as causas do seu “desaparecimento”. Obviamente que este documentário completamente destilado por entre footages e talking heads possui um propósito de preocupação pública e patrimonial, mas se o considerarmos como um objeto cinematográfico de requinte, a sua pobreza não o exaltará como algo mais. Contudo, o objetivo de Monteiro é mais do que simplesmente integrar uma teoria estilística, social e cinematográfica, é como um apelo, um ato ativista, esse, que poderá originar consequências futuras, quem sabe, a revalidação absoluta de Macedo, não simplesmente como tentador do cinema de género em Portugal, mas como cineasta. Estes três exemplos recentes de documentário português, uma minoria perante a divulgação dos festivais, formam um cinema de causa-efeito, a investigação como uma narrativa que não deve ser sobretudo desprezada.

O outro cinema, com exceção de alguns casos que conseguem através dos seus meios desbravar a sua linguagem, apresenta-se como máscara, escondendo a incapacidade e o amadorismo de muitos “documentaristas” pretensiosos, em busca do caminho fácil do estatuto autoral. Esse anti-cinema não deve ser sobretudo erguido como o Cinema, assim como o cinema na sua forma mais clássica, universalmente empática, não deve ser rebaixado a anti-cinema.  

É desta matéria de qual são feita as Lendas ...

Hugo Gomes, 11.03.15

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A mulher, primeira como realizadora em Portugal [primeiro filme português em Cannes, não esquecer], “apagada”, “chutada” da História, o que resta dela é somente isso … “restos”. Importante? Foi. Mas até que ponto? Nunca saberemos. “Três Dias sem Deus” (1945) é somente um fragmento da sua anterir forma, "caído" às mãos de investigadores e académicos. Hoje, morreu, deixou-nos, a mulher, acima de tudo, "abandonada", impedida, uma lenda no velho sentido da mesma. Bárbara Virgínia transformou-se a partir de mesmo momentio em algo sagrado. Prevejo histórias contadas envolta da sua figura.

Bárbara Virgínia (1923 - 2015)