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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Film Noir continua cool! Arranca o 4º Screenings Funchal Festival, na companhia de Bogart e Stanwick.

Hugo Gomes, 03.10.25

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In a Lonely Place (Nicholas Ray, 1950) / 4 de Outubro (Forum Madeira, 21h00)

A Madeira será, nas próximas semanas, uma ilha rodeada por neblina: ruas escuras, detetives privados de gabardine e poses cool, crime, castigo e mistério. Tudo a preto e branco, resguardado nas sombras e nos becos escuros. É o cliché do film noir o que descrevo, mas é precisamente aqui que o genuíno subgénero será apresentado, numa retrospectiva cuidadosamente selecionada.

Contratou-se o seu inspetor na capital do arquipelago: o Screenings Funchal Festival, que chega à quarta edição e a um novo caso, melindroso caso, talvez sob os olhares atentos daquela mulher de passado longínquo, a habitual femme fatale, em quem qualquer homem sonharia perder-se e igualmente temer. Armadilhas, diríamos.

Mas não nos desviemos. Voltemos ao ciclo: Humphrey Bogart e Barbara Stanwyck surgem como protagonistas num prolongado noir na Madeira, narrado por Pedro Pão, programador que rompe a lógica dos festivais de cinema e apresenta, de bandeja acinzentada … para não contrariar o monocromatismo … oito obras, a representar Hollywood no seu esplendor e intriga, a partir do dia 3 de outubro e prolongando pelo resto do mês.

O Cinematograficamente Falando… desafiou o programador a apresentar o seu caso… eis-lo:

O film noir surge na ribalta nesta 4.ª edição do Screenings Funchal Festival. Porquê este subgénero na programação? E, dentro dele, por que motivo estes títulos foram escolhidos como representantes desse universo tão vasto?

O noir não foi o ponto de partida, foi o de chegada. Gosto que haja uma razão estruturada para cada edição, mas às vezes as coisas surgem por acaso, e foi o caso desta. Durante a pandemia, descobri que ninguém do meu grupo próximo de amigos tinha visto o “Casablanca”. Tendo em conta as restrições em vigor, resisti à tentação de arranjar amigos novos, e organizou-se uma sessão privada com projector, Blu-ray num atelier bem amplo. Depois fui-me lembrando de outros filmes que gostava muito com o Bogart, e fiquei com uma ideia (muito embrionária) de um dia fazer um ciclo dedicado ao Bogart

Nesta fase as possibilidades eram demasiadas, e foi preciso pensar em restringir o tema. Assim que decidi que o ciclo não deveria ser exclusivamente focado no Bogart e que deveria ser partilhado com uma protagonista do género feminino achei que só poderia mesmo funcionar dentro do film noir, e a Barbara Stanwyck era a escolha óbvia. Desta forma, foi mais fácil escolher este conjunto de filmes, que apesar de se tratar de uma pequena amostra do noir, representa bem as histórias e personagens que me interessam, e que se encaixa na proposta do ciclo.

O ciclo parece orbitar em torno de dois espectros: Barbara Stanwyck e Humphrey Bogart. Acredita que um subgénero pode ser sintetizado em dois intérpretes? Ou foi antes um atalho para trazer obras prestigiadas, populares e que, ao mesmo tempo, sintetizam o estilo?

O ciclo orbita de facto em torno de Stanwyck e Bogart, mas nunca foi a minha intenção resumir o noir nem aos actores nem ao limitado número de filmes exibidos. Acho que a ideia de “atalho” é perfeita. Achei que eles representam os arquétipos mais emblemáticos do noir e quis usá-los para criar um fio condutor. Além disso, sendo figuras icónicas, (o Bogart provavelmente mais) quis aproveitar isso para que o ciclo fosse o mais apelativo possível. Outro objetivo foi dar visibilidade a uma actriz incrível, a Stanwyck, que creio ser muito menos reconhecida pelo público em geral.

No campo dos realizadores, encontramos nomes distintos e percursos muito diferentes, com exemplos de ecletismo dentro de Hollywood. Teve em conta este factor artístico? E, perante esta diversidade, considera o film noir um subgénero de transição mais do que um corpo coeso?

Depois de ter restringido o tema como referi anteriormente, fiquei com um painel de luxo, no que toca a realizadores, para selecionar obras. Achei a diversidade de realizadores muito interessante, e é por isso que se defende que o noir não é tanto um género, mas antes um estilo. Mesmo pela amostra reduzida dos que conheço, isso é notório e fascinante. Wilder, Ray e Lang, entre outros, mostram abordagens muito distintas dentro do noir, e ao longo da década de 40 o noir transformou-se através de experimentações formais, estéticas e influências diversas, tornando-se um território cinematográfico muito rico e interessante por essa diversidade.

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Clash by Night (Fritz Lang, 1952) / 24 de Outubro (Forum Madeira, 21h00)

Relativamente à masterclass de Luís Miguel Oliveira: não lhe peço apenas que fale das intenções de criar este “intervalo” reflexivo no meio da programação, mas também da importância (ou irrelevância) da crítica no papel da curadoria de festivais que, como este, não seguem a lógica dominante do mercado.

A masterclass parte de uma necessidade e lacuna muito grande, do contacto do público madeirense com especialistas, neste caso da área do cinema, mas que se aplicaria igualmente, a muitas outras áreas. Acredito que este esforço de complementar o ciclo com o contributo do LMO enriquecerá não só os espectadores, mas também o próprio festival. Esta lacuna não é exclusiva da insularidade, reflete uma condição de periferia cultural, que no nosso caso se agrava pela nossa condição ultraperiférica e que teria uma solução muito simples chamada: “investimento”.

No que diz respeito à crítica, é difícil imaginar alguém que desempenhe um papel de programador que lhe seja indiferente. Acho o trabalho da crítica inestimável e muitas vezes pouco valorizado. Socorri-me várias vezes dela para ajudar a organizar e justificar a escolha de alguns filmes neste ciclo e sou constantemente enriquecido por ela tanto como programador como espectador.

Enquanto programador e cinéfilo, houve algum filme que gostaria de incluir neste ciclo, por corresponder ao espírito do evento, mas que acabou por ficar de fora?

Falta-me descobrir, ver e aprender demasiadas coisas para me sentir bem com esse intimidante título de cinéfilo. Trabalhar neste ciclo, fez-me perceber que existem muitos mais filmes que ainda quero ver do que aqueles que já vi. Tem sido sempre assim, e isso é algo que eu aprecio imenso no processo. Gostava de ter incluído o “Casablanca”, que acabou por inspirar o festival, mas, não sendo um noir, não se enquadrava na proposta. Outro filme que considerei foi “The File on Thelma Jordon”, mas acabei por optar pelo “Clash by Night”. Apesar de ser um melodrama com elementos noir, pareceu-me mais pertinente para este ciclo, na medida em que explora não o arquétipo da femme fatale, mas uma mulher com consciência social, que procura autonomia e se sente insatisfeita com as expectativas que a sociedade lhe impõe.

É sabido que eventos culturais desta natureza dependem muitas vezes do apoio autárquico. Sente-se apreensivo sabendo que as eleições locais, a decorrer no mesmo mês, podem condicionar a continuidade de futuras edições do festival?

Essa dependência é real e, no nosso caso, decisiva. Este festival nunca poderia realizar-se nestes moldes sem o apoio fundamental da Câmara Municipal do Funchal, ao qual estamos muito agradecidos.

Não me sinto apreensivo por várias razões. Em primeiro lugar, porque o departamento de cultura da CMF é composto por uma equipa cujo trabalho fala por si e que, mesmo numa eventual mudança partidária, dificilmente deixaria de ser reconhecido e continuado. Além disso, acredito que aquilo que temos vindo a oferecer à cidade do Funchal é culturalmente significativo, e o facto de estarmos já na 4.ª edição parece indicar que essa convicção é partilhada. No pior cenário, iremos nos adaptar, como sempre fizemos até hoje, focando e reforçando as nossas sessões regulares.

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The Big Sleep (Howard Hawks, 1946) / 18 de Outubro (Forum Madeira, 21h00)

O Screenings Funchal Festival vai-se consolidando edição após edição. Que linhas de força gostaria de ver no seu futuro? E persistindo; John Waters continua na sua lista de desejos?

Gostaríamos que o festival crescesse (e não me refiro a after parties e cocktails) e tivesse mais condições para trazer com mais frequência realizadores e outros convidados, pois esse contacto direto com o público é importantíssimo. Mesmo fora do festival, na programação regular, seria possível ter cá com mais regularidade cineastas se tivéssemos algum tipo de apoio mais alargado. 

Em relação ao Pope of Trash, acho imensa piada que tenhas retido isso e que me relembres de vez em quando. É sinal que é uma excelente ideia, e se correr mal, posso sempre alegar ter sido incentivado e induzido em erro pelo crítico. Não sei se o Liarmouth ficou de vez na gaveta, mas poderia ser um incentivo adicional. Gostava mesmo muito de ter um festival dedicado ao John Waters. A Madeira é um dos sítios menos apropriados para o fazer e é exactamente isso que faz da ilha o sítio perfeito para o receber. Não será em 2026, e de forma a evitar que eventuais repercussões possam encurtar o tempo de vida da iniciativa, ainda gostava de ir ao Herzog primeiro. Mas continuo a achar que o “Pink Flamingos" seria o filme perfeito para a última sessão do Screenings Funchal. Um último gesto de celebração e provocação. Podem haver formas melhores de acabar, mas não me ocorre nenhuma de momento. 

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Toda a programação poderá ser consultada aqui.

“Double Indemnity”: O livro e o filme

Hugo Gomes, 07.08.25

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Sim, matei-o. Matei-o por dinheiro — e por uma mulher — e
não fiquei como o dinheiro e não fiquei com a mulher. Bonito, não é?Walter Neff

 

Se Walter Neff ficou sem o dinheiro e a mulher fatal, já os leitores e os espectadores de “Double Indemnity” continuarão a ter a oportunidade de revisitar o livro e o filme que partilham entre si o nome e a essência. Ambos contam com uma atmosfera de malaise, personagens de moral ambígua, a femme fatale, um protagonista aparentemente duro, traições, ou seja, muitos ingredientes associados aos noir. No cerne das duas obras encontra-se o plano que Walter e Phyllis efectuam para eliminar o esposo desta. O primeiro é um vendedor de seguros aparentemente perspicaz, que tem no momento em que se desloca a casa de Mr. Nirdlinger/Dietrichson, para renovar o seguro automóvel do mesmo, o episódio-charneira da sua existência. É nessa ocasião que conhece Phyllis e desde aí fica plantada a semente para um jogo de sedução que desemboca na morte do esposo da antiga enfermeira. Tudo é planeado para parecer um acidente, com vista a que a viúva receba a indemnização dupla do título e os amantes possam mais tarde viver felizes para sempre. Claro que, ao estarmos numa obra noir, o destino da dupla não é a felicidade, mas sim a perdição ou a infelicidade, com os dois a percorrerem alguns caminhos tortuosos até chegarmos ao desfecho.

O livro é da autoria de James M. Cain. A fita é realizada por Billy Wilder e conta com um argumento inspirado na obra literária, escrito pelo cineasta e por Raymond Chandler. Ao colocarmos lado a lado o livro e o filme é possível observarmos algumas diferenças entre ambos, algo completamente natural numa adaptação de material literário para o grande ecrã. A começar pelos nomes das personagens. O Walter Huff de Cain passa a ser Walter Neff, enquanto Phyllis Nirdlinger torna-se Phyllis Dietrichson na marcante fita do realizador oriundo da Galícia, embora a alma destes exemplares noir seja a mesma. Walter é duro e deixa-se apaixonar pela femme fatale em ambas as obras. Phyllis é manipuladora e sedutora, quer no livro, quer no filme. Se a fita for visionada antes da leitura do livro, é praticamente certo que a tarefa de dissociar os personagens dos seus intérpretes será assaz complicada, sobretudo quando estamos perante os protagonistas, seja pelas interpretações marcantes de Fred MacMurray e Barbara Stanwyck, ou pela capacidade do argumento em transportar as especificidades de Walter e Phyllis para a tela.

Na película, Billy Wilder começa o enredo in media res, com Walter a encontrar-se ferido, em visível mau estado, enquanto se desloca até ao local de trabalho, onde se prepara para utilizar o gravador de Barton Keyes (Edward G. Robinson), o seu superior e amigo, para confessar os seus crimes, ou seja, aquilo que o atormenta. A narração em off é um recurso transversal a uma miríade de filmes noir. “Double Indemnity" não é excepção, com o enredo a ser apresentado a partir do ponto de vista do vendedor de seguros. No caso do livro, o ponto de vista é o mesmo, tal como a narração ao bom estilo hard boiled, ainda que James M. Cain opte por colocar a personagem principal a narrar os episódios desde o momento em que chegou a casa de Mr. Nirdlinger. Não obstante, o autor deixa claro que o protagonista e narrador já sabe o desfecho dos acontecimentos que está a relatar, algo notório desde a primeira página, quando Walter salienta “Decidi correr até lá. Foi assim que cheguei a esta Casa de Morte, de que têm estado a ler nos jornais. Não parecia uma Casa de Morte quando a vi. Era apenas uma casa espanhola, como todas as outras na Califórnia (…)”, qual depoimento que nos torna cúmplices de tudo aquilo que está a ser exposto e aguça a nossa curiosidade em relação ao modo como esse espaço adquiriu uma designação pouco lisonjeira.

A localização da habitação é a mesma no livro e no filme, tal como as motivações do vendedor para se deslocar à “casa de morte” e a utilização precisa do protagonista como narrador de serviço. No entanto, importa realçar algumas das diferenças entre o exemplar da autoria de James M. Cain e a película de Billy Wilder. Dividida em catorze capítulos, a obra literária foi inicialmente publicada em oito partes na revista Liberty, tendo sido parcialmente inspirada num homicídio que ocorreu em 1927, em particular, o assassinato do esposo de Ruth Snyder. O homicídio foi perpetrado por esta e o amante, com ambos a terem como objectivo receberem a indemnização do seguro de vida de Albert. Cain traz um vendedor de seguros para o interior da trama e coloca-o num berbicacho que tem tudo para correr mal. Existem algumas diferenças a pontuarem os actos de Walter no livro e no filme. Por exemplo, o plano do protagonista para eliminar Phyllis. No filme, ele desloca-se até à casa desta. No livro, o vendedor de seguros efectua um plano bem mais elaborado, que visa a obtenção de álibis sólidos, a utilização de um carro que não lhe pertence e atirar a femme fatale para a morte. Por sua vez, na fita, Neff salienta que conta com uma empregada de cor, enquanto na obra literária é mencionado um filipino, com as diferenças entre os dois trabalhos a irem desde pequenos pormenores a elementos de maior relevo.

O que também conta com algumas mudanças, seja por razões criativas ou restrições inerentes ao Código Hays, é a ligação que se forma entre Lola (a filha de Mr. Dietrichson ou Mr. Nirdlinger) e o protagonista. Se na película o sentimento de culpa e a preocupação do vendedor de seguros marcam a relação da dupla, já na obra de James M. Cain é bem saliente que este ama a jovem, embora não seja totalmente correspondido pela mesma. Uma personagem que é mais desenvolvida no livro é Nino Zachetti, o jovem com quem Lola se encontra envolvida. Note-se a ligação do passado deste ao de Phyllis e uma descrição mais gráfica do envolvimento destes dois — algo que não consta na fita —, ou o destaque atribuído a este estar a concluir a tese e ter contraído um empréstimo junto de uma empresa de Walter. No filme, este pauta-se sobretudo pelo comportamento arisco, inclusive junto do protagonista. A unir as duas obras encontra-se o facto de Lola formar inicialmente algumas suspeitas no que diz respeito à possibilidade do amado ter participado no assassinato do progenitor.

Outro elemento que conhece algumas alterações é Keyes, com o analista de seguros, responsável por avaliar as queixas, a ganhar um relevo mais acentuado na película, onde é praticamente o mentor do protagonista e amigo pessoal do mesmo. No livro, este começa a desconfiar de algo, é igualmente perspicaz e confia em Walter, embora as dinâmicas entre ambos não sejam tão desenvolvidas. Apesar disso, na obra de James M. Cain encontramos uma animosidade de Keyes para com o dono da seguradora, o filho do anterior proprietário, que não constava de modo tão acentuado na fita e permite expor outras “camadas” da personagem. Também o desenlace das duas obras difere. Diga-se que seria praticamente impossível manter o final do livro, sobretudo à luz das imposições do Código Hays, com Billy Wilder a optar por um desfecho igualmente impactante e típico dos noir, ou seja, eivado de desesperança. Billy Wilder e Raymond Chandler contaram com uma relação conturbada durante a elaboração do argumento (algo que serviu de material para a peça Billy Ray), ainda que a colaboração tenha sido extremamente proveitosa. Chandler nem era a primeira escolha do cineasta.

Charles Brackett saiu do projecto — voltaria a colaborar com Wilder em “Farrapo Humano” (“The Lost Weekend”, 1945) —, após ter participado no primeiro tratamento do argumento, enquanto Cain, o autor do livro, parecia reunir a preferência do realizador. A escolha acabou por recair em Chandler, um autor com uma larga experiência nos noir, com a dupla a contribuir para um dos mais emblemáticos filmes do subgénero. Alguns diálogos foram mantidos, ou praticamente não conheceram alterações (como a fala citada no início do texto), outros passaram por algumas modificações, mas é notório que existiu toda uma capacidade de transportar o ambiente da obra literária para o filme. O talento de Chandler e Wilder para as palavras assemelha-se à capacidade de James M. Cain para criar um noir envolvente, com livro e filme a contarem com diversos elementos associados ao subgénero e a contribuírem para a marca deixada pelo mesmo.

 

* Texto da autoria de Aníbal Santiago, escritor do blog Rick's Cinema, hoje, infelizmente, desativado.