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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Provocar, no cinema, é condição para que permaneça vivo e interventivo": ENCONTROS, Festival de Cinema de Viana do Castelo avança para a sua 25ª edição

Hugo Gomes, 03.05.25

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Descrito, e orgulhosamente apresentado, como o festival de cinema mais antigo do país, no âmbito da pedagogia e formação, o ENCONTROS chega à sua 25ª edição com Viana do Castelo, novamente, o território dessa caminhada. Consolidando como um espaço vivo onde escola e cinema se cruzam com prática artística, investigação e comunidade, a cidade volta a acolher um programa extenso (de 5 a 14 de Maio), que vai do pré-escolar ao ensino universitário, e que aposta numa verdadeira imersão audiovisual: ciclos de curtas, oficinas, exposições, masterclasses, fóruns e conferências, tudo pensado para reforçar a literacia fílmica e promover o cinema enquanto ferramenta de pensamento.

Num ano em que Viana do Castelo é Capital da Cultura do Eixo Atlântico, os ENCONTROS reforçam também os seus laços com a Galiza e com dezenas de escolas internacionais, abrindo espaço ao diálogo entre culturas, métodos e visões do cinema. Com o tema “Tempos Cruzados, Inteligência Artificial em reflexão”, esta edição aposta numa abordagem crítica e atual, propondo pensar o cinema como um lugar de criação, como também de consciência.

O Cinematograficamente Falando... desafiou Carlos Eduardo Viana, da direção do festival e um dos fundadores da associação AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual, não apenas para comentar sobre a programação que este festival nos brinda, mas para nos envolver no espírito dos ENCONTROS, dessa pedagogia, desse cinema e sobretudo, dessa "arte da provocação".

Depois de 25 anos a convocar olhares e inquietações em Viana, sente que o festival encontrou o seu lugar ou continua em busca, como um filme inacabado?

Um festival é sempre uma encruzilhada de onde partem múltiplos caminhos e propostas. O seu objetivo central permanece o mesmo, os caminhos vão-se ajustando, por vezes abrem-se novos.  Muito mais do que uma simples exibição de filmes, os ENCONTROS/Festival de Cinema de Viana são um espaço de encontros, descobertas e transformações. Como uma encruzilhada simbólica, oferecem múltiplos sentidos para quem os percorre. Cada edição traz novas propostas, debates e formas de ver e pensar o cinema. 

Com a secção “Olhares Frontais” a apostarem na dúvida como princípio e na experimentação como linguagem, segundo a nota de intenção do realizador Pedro Sena Nunes, que riscos corre um programador quando escolhe provocar em vez de confortar?

Provocar, no cinema, é condição para que permaneça vivo e interventivo. É abrir portas para diálogos urgentes e formas inéditas de ver o mundo. Como disse Jean-Luc Godard"O cinema não é uma arte que filma a vida, é uma arte entre a vida e a morte." Programar sob esse princípio exige risco e é uma ferramenta poderosa para reflexão, mudança e evolução. Conforto gera passividade; provocação gera diálogo, um dos pontos fortes dos “Olhares”.

A Norwegian Film School vem partilhar curtas e metodologias, há algo na pedagogia deles que considera que falta nas nossas escolas de cinema? Ou será mais uma questão de olhar do que de ensinar?

Não sentimos que falte algo nas nossas escolas de cinema. A Norwegian Film School está integrada noutra cultura com abordagens e práticas diferentes, que podem levar a outras metodologias, mas não há melhor ou pior, ou a constatação de que, por cá, falte algo. São diferentes perspetivas. O cinema, pela sua própria natureza, é plural – não existe uma única maneira certa de aprendê-lo ou ensiná-lo. O que alguns podem entender como "carência" pode ser, na verdade, uma diferença moldada por contextos culturais, recursos disponíveis e objetivos pedagógicos distintos.

- “O Manuscrito Perdido” (José Barahona, 2010), dia 10 de maio, pelas 21h00.

- “Cartas Telepáticas“  (Edgar Pêra, 2024), dia 9 de maio, pelas 21h15, com presença do realizador

 

Com a cidade contaminada de cinema por 10 dias, sente que o festival é um espelho da realidade local ou uma lente que a distorce para revelar outras verdades possíveis?

Como disse Andrei Tarkovsky"O cinema não deve copiar a vida, mas competir com ela". O espelho, talvez contrapor com prisma. Essa abordagem permitirá que o cinema fracture a realidade, a multiplique e a reinvente. E desassossegue, para revelar outras verdades possíveis. Nos “Encontros de Cinema” isso é visível, por exemplo, na seleção de filmes para visionamento e debate em sala de cinema, ou nas múltiplas oficinas e masterclasses que abrem caminhos e apontam direções.

A secção “PrimeirOlhar” nasceu para dar palco aos filmes que ainda estão a aprender a falar. O que é que mais o surpreende no cinema feito por estudantes: é a ousadia, a ingenuidade ou a forma como nos dizem o óbvio de outra maneira?

Por não estar totalmente domesticado pela indústria ou pelo mercado, o cinema feito por estudantes é um território de descobertas. E é nesse território cheio de energia, atravessado por tentativas e acidentes de percurso que, por vezes, surgem novos caminhos. Enquanto laboratório de possibilidades, é um espaço onde as regras ainda não são rígidas e os erros podem levar a novas experimentações. Longe das pressões da economia, esse cinema é um território de liberdade, o que o torna por vezes surpreendente.

Com um público tão diverso - de miúdos do pré-escolar a cineclubistas veteranos – como se programa um festival que fale várias “línguas” sem perder a sua voz?

Programar um festival que fale para diferentes públicos é um desafio complexo, mas desafiante, desde que a curadoria seja pensada como uma rede de estradas, onde cada via tem o seu objetivo, mas todas levam ao mesmo lugar. O nome escolhido para o festival é revelador: ENCONTROS, no plural. Encontro com a investigação e a academia (Conferência Internacional de Cinema e atividades paralelas), encontro com a literacia fílmica (formação de docentes e jovens, Fórum Cinema e Escola), encontro dos jovens com o cinema em sala (Escola no Cinema), encontro e cruzamento de estudantes de cinema e público em geral com realizadores consagrados (Olhares Frontais), encontro e debate sobre o cinema (Encontro Luso-Galaico de Cineclubes)

A imagem ainda tem poder para representar o que nos rodeia, como dizem no manifesto do festival, ou o que nos rodeia está cada vez mais fora do alcance da câmara?

O mundo contemporâneo desafia diariamente a capacidade da imagem representar a realidade, mas como o seu poder não reside na fidelidade, mas na capacidade de traduzir, distorcer e reinventar o real, e sabendo que o cinema nunca foi um espelho passivo da realidade, apetece dizer como Chris Marker"O verdadeiro filme está na mente do espectador".

No cruzamento entre cinema e educação, onde acaba a pedagogia e começa a arte? Ou será que, neste festival, são a mesma coisa com nomes diferentes?

O festival procura valorizar o cinema enquanto arte, junto das escolas e respectivas comunidades educativas. Diríamos que o objetivo final dos Encontros estará alcançado quando pedagogia e arte se confundirem. 

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A programação poderá ser consultada aqui.

ChatGPT, faz-me um filme!

Hugo Gomes, 20.03.25

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Impossível! Talvez nesta atualidade em que hoje respiramos, analisar um filme como "Cartas Telepáticas" sob a comum luz da crítica mercantilista — dessas que integram os consensos do Rotten Tomatoes e que muita escola crítica americana propaga, sobretudo entre os mais jovens (argumento + realização + elenco + banda sonora). Essa equação torna-se praticamente inviável com Edgar Pêra a proclamar a tecnologia IA para montar esta sua maneirista e hipnótica mistela compulsivo-obsessiva. Como uma brincadeira de crianças, pega em dois autores queridos da sua área, Fernando Pessoa e H. P. Lovecraft, e traça-lhes um ponto em comum: os heterónimos, os pseudónimos, as mil e uma faces e personalidades com que se espelham na escrita. Entrelaça, por estilos ou narrativas, uma estética que, por outro lado, vislumbra uma certeza — imagina uma correspondência, uma ligação contestadora da realidade, do socialmente aceite, fazendo da estranheza um temor ou um abrigo no conforto.

Pêra transforma essa alternativa numa iniciativa IA (daí questionamos filosoficamente se este produto é da sua real autoria, ou contaremos com um novo realizador, a inexistência), e a partir daí cria um falso documentário, uma experimentação que, mesmo sem sair da sua órbita artística, remete-nos à ética da tecnologia — será de facto um motor para o Cinema? O tão esperado passo em frente, fugindo das referências carregadas enquanto legados sem inovação. O que fazer com este cinema? Colocá-lo à borda do prato ou abraçá-lo passivamente? Ou, como os autores em fuga deste hipnótico brilharete, fingir como poeta e devanear pelos nossos medos como escritores?

Indiscutivelmente, um dos filmes mais pertinentes da nossa contemporaneidade. O que fazer desta espada? Fica a questão...  enquanto o realizador, mais uma vez, desmonta o espectador e da sua contentada natureza passiva. Vale a pena rebelar?

Um palhaço enforcou-se!

Hugo Gomes, 09.09.24

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Sem Deus posso viver. Sem crédito não posso nesta vida”

Rodrigo Areias, por mais ziguezagues que faça, é na música que sempre se conforta, é dela que restaura a sua vertente cinematográfica, compondo filmes como quem compõe operetas, fazendo dos seus atores deslumbrados performistas que bailam ao som da sua sinfonia. Em “A Pedra Sonha Dar Flor”, um espectáculo visual-sonoro que recorre a textos e a um constante olhar metalinguístico sobre a obra de Raul Brandão, nomeadamente o seu “A Morte do Palhaço”, onde a comédia é vista como uma ilusão do trágico inevitavelmente reservado na vida. Assim, a música, a cargo de Dada Garbeck, reforçada pela fotografia de Jorge Quintela, funciona como anfitriã de um circense caldo de niilismo existencial. 

Trata-se de uma obra que apela insistentemente ao valor da sala de cinema, recusando o espaço doméstico e desejando, como o mineral que sonha brotar vida, transformar o cinema no seu palco. O palco do mundo, talvez! Por isso, não há como negar: “A Pedra Sonha Dar Flor” é a obra mais bela alguma vez feita pelas mãos de Areias (O Pior Homem de Londres, “Surdina”) ou, como ele próprio afirma convictamente, a produção vinda do seu coletivo Bando à Parte, casa de amigos e cooperativismo, até porque é desses conhecidos que formam a trupe encarregada de içar este filme com quem retira o corpo do palhaço enforcado, o símbolo dessa comédia de vida traída. 

É bonito, sim senhor, mas fugaz, efémero; infelizmente, prevalece apenas como a sensação do momento da projeção e nunca responde à exatidão de quem sonha vencer para lá da sua exibição. A narrativa, isso, é uma dor de cabeça para quem se apoia numa dependência lógica. O filme saltita entre filosofias, ora deprimentes, ora simplistas, de tentações ou purezas insufladas, de clandestinidades sentimentais, políticas ou outras quaisquer, ou até de pura heresia — que o diabo me leve! —, garantindo momentos ácidos e hilários sem gerar riso algum (o humor não é mais que a conscientização da nossa mortalidade). 

Talvez haja algo de pedante no seu carácter de ensaio que não agrade ao comum dos mortais ou ao espectador escapista pronto para comédias de teor televisivo ou de drones às carradas, ao invés disso subjuga-se à experiência, à deambulação, porque a vida pede esse “piloto automático”. Se assim for, temos uma sessão para o que der e vier, mas infelizmente a beleza das suas ramas não dão flor, o filme sonha em ser mais do que é; o resultado é traiçoeiro. 

Um filme belo — já o disseste? — eu sei, mas sem pretensões de ir além do momento.

Música no coração ...

Hugo Gomes, 05.09.24

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O “doppelgangerismo” gravita por órbitas obsessivas, alucinogénicas e um pouco autodestrutivas, um efeito nascido do nosso desejo de sermos um outro do que nós próprios e o mesmo o medo de perder as nossas feições nesse processo (o de nunca largamos totalmente o que havíamos estabelecido). Isso também retira-nos a ideia de individualidade, enchendo-nos de histórias de sósias sem relacionamento algum com laços sanguíneos ou árvores genealógicas, esse temor constante de sermos únicos, especiais, cuja “quase cópia” conduz-nos a um embuste aludido. Na literatura muitas dessas intrigas resultaram em tratados formidáveis sobre a alma humana, desde Saramago a Dostoievski, que curiosamente geraram as suas adaptações cinematográficas, com Denis Villeneuve e Richard Ayoade enquanto conductors dessas histórias. 

Agora, com João Tordo no papel, Artur Serra Araújo, realizador discreto por estas bandas (“A Moral Conjugal”) assume essa intenção de simbolizar a síndrome do impostor, mal de cada artista ou de quem anseia criar arte. O livro no seu original formato intitula-se “O Ano Sabático”, em tela é “Dulcineia”, a homenagem da homenagem, a melodia que Hugo (António Parra), através de um ano de ausência da sua predestinação, sabático como gosta de considerar, compôs secretamente no seu refúgio em Marrocos. É a sua obsessão, como fora a de D. Quixote pela restauração da cavalaria nesse clássico magnus opus da literatura, o nome estava no pensamento do velho como uma donzela em apuros, um amor inatingível, o seu objetivo na sua demanda contra monstros-moinhos ou homens-marionetas. 

Para Hugo, Dulcineia era a sua nova e única razão de viver, portanto, a batizou-a em consideração à homónima jovem empregada da sua irmã (uma Alba Baptista como erro de casting), mas até isso foi-lhe retirado no preciso momento em que, após o seu regresso a Portugal, esbarra-se com essa mesma melodia, produzida por via de um pianista na berra, Stockmann. O choque em o descobrir, o atira para um abismo existencial, fazendo duvidar da originalidade e a criatividade, meros acasos ou coincidências que podem se originar da convergência, segundo começa a acreditar. Mas o mais insólito de que essa música momentânea, é o facto de Stockmann ser cópia de Hugo, e que por sua vez é a vida que ambicionava ter, vivida por um outro alguém. 

Em texto, e sabendo das inúmeras alterações tidas na conversão para cinema, “Dulcineia” se apresenta como um fascinante exercício dessas questões entrelaçadas. Em prática não é bem assim. Rodado antes e após a pandemia, condicionante e muito as suas ideias base, Artur Serra Araújo construiu uma história estática, de planos trabalhados e nunca, por bem dele e de todos nós enquanto espectadores, cedidos ao alarve televisivo de que as nossas produções, sobretudo as mais narrativas, fraquejam-se em render. Nesse campo visual, estético e logístico, “Dulcineia” opera nos seus conformes, nada a apontar, só que em comparação com o que deseja contar, desequilibra-se no seu agravado passivismo para com o material. As interpretações como o conflito ou as sugestões de profundidade, quer com a intriga ou com os protagonistas, são deformes, murchas e sem um pingo emocional. 

É um trago amargo. O caminho está lá, no vislumbre de todos, o porquê de nunca ter prosseguido em sua direção, é um mistério. Por fim, é um filme que ambiciona ser outro filme, caindo na sua mais trapaceira armadilha, a de se deixar vender pela “síndrome do impostor”. 

O poeta, assim como o thriller, é um fingidor.

Hugo Gomes, 10.06.23

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The Nothingness Club: Não Sou Nada” presta-se a ficcionalizar a própria ficção envolto de Fernando Pessoa, o escritor e poeta, que tal como é lido, no intertítulo inicial, poderia ter “abocanhado” o Nobel da Literatura, se não fosse a Guerra a dominar a sua contemporaneidade. Assim, o mito que borboleteia a figura pessoana está nos seus "e se", nas suas hipotéticas e nas suas probabilidades. Embora seja verdade que Fernando Pessoa é mais o que teria sido, a genialidade irreconhecida e desdobrável a personas por si criadas, a que se dá pelo nome de heterónimos, terra fértil para as mais variadas instrumentações da sua obra e da sua presença. Pessoa é personagem e tanto para iguais cenários. 

No novo filme de Edgar Pêra, os heterónimos desfilam em corredores fantasiados ou em salas de reuniões obscuras como identidades repartidas e “coladas” a um whodunit clássico a cheirar a Agatha Christie, só que ao invés da induzida excitação em tentar deduzir “quem será o assassino?”, até porque ele encontra-se perfeitamente declarado entre nós, se não fosse o facto de todas as consequências desse thriller fabricado operem como um devaneio, um pensamento ilustrado e personificado. Humanamente característico, Pessoa adquire forma (ou formas), retrai-se da historicidade e da eventual biopic, é um exercício, que bem poderia estar ao jeito do autor, porém “The Nothingness Club: Não Sou Nada” é uma recorrente citação e recitação de Edgar Pêra e da sua estética, os visuais que acompanham uma narrativa rodopiante e hipnótica, mesmo que mais contido do que o normal, de maneira a não contrapor a versatilidade da figura-mestra. O realizador situa a sua corrente artística como auxílio fabulista do primor da sua intriga. 

Para o bem e para o mal, eis um filme que fascina e igualmente cansa, sobretudo quem anseia por um lado terreno, ao invés de sentir-se acorrentado às alternativas históricas, nesse aspeto Saramago o faria mais dignificante em papel [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”], ou a dupla André F. Morgado e Alexandre Leoni [“A Vida Secreta de Fernando Pessoa”] em quadradinhos. No cinema, João Botelho e Eugène Green fizeram-se convidados neste universo denso, lotado mas igualmente sós. Pêra apenas se junta ao seu clube do nada. 

"Objetos de Luz": da luz nascemos, da luz morremos

Hugo Gomes, 28.08.22

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Da última vez que Acácio de Almeida assumiu a realização, foi há 47 anos num acontecimento cinematográfico denominado de “As Armas e o Povo”, a colheita de emoções e a transição de um país novo vivendo as orgásticas comemorações do 25 de Abril e do primeiro 1º de Maio. Mesmo “não creditado" ele esteve lá, porém, apesar do longo hiato, de Almeida não esteve longe do cinema, pelo contrário, bem perto, presente e criativo. Não é por menos que se tenha vangloriado o estatuto de lendário diretor de fotografia da cinematografia portuguesa, o seu percurso é também uma recolha de experiências, impressões e dedadas digitais. 

Em Acácio de Almeida existe um cinema seu, tão seu como dos que assinaram os créditos de realização. Portanto, é com 47 anos em “segundo plano” (as aspas importa para desfazer o literal sentido, como se no cinema existisse hierárquicas artísticas, apesar de encontrarmos nela uma pirâmide composta por capitães e sargentos, assim como praças, já dizia Joaquim Pinto em “E Agora? Lembra-me”), entre Macedo a Oliveira, Cunha Telles a Azevedo Gomes, Villaverde a Costa, ou Silva Melo a César Monteiro, que regressa com uma direção da sua (co)autoria. Só que não é um filme. Quer dizer, é um filme, uma metragem, uma expressão traduzida em imagens anexadas a palavras, é um trabalho como manda a bitola cinematográfica, não vamos destroçar o Cinema como algo padronizado. O que realmente quero dizer é que Acácio de Almeida elabora ao longo de 60 minutos uma reunião, quer de amigos, colaboradores, rostos e mãos que lhe teceram o cinema tão dele como nosso, e através desse círculo de “conhecidos”, começou a falar. Ou talvez seja a deambular, pelos seus pensamentos, as reflexões de cinema que “pintou” e mais do que isso, na combustão desse seu universo - a Luz. 

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Trabalhar a luz, é como trabalhar os signos da vida. É ser Deus por um dia, ou melhor, por uma rodagem. É questionar a nossa existência. É ceder ao reduzido da nossa insignificância. Para Acácio de Almeida, não somos mais que “Objetos de Luz” (o título revela mais do que a designação), filhos da escuridão apenas contornados pela sua antítese: “O que somos nós em relação à luz? Qual o elo que nos liga a ela?” Perguntas lançadas ao abismo, posteriormente respondidas com a confirmação do óbvio - “somos feitos de luz”. Mas a jornada até essa resposta indefinida é um questionamento da Ordem do Cinema, a dita e simbiótica corrente de todas as partes, não é mais que uma ilusão. A Luz é o centro de tudo, como do fim dos mesmos, e Acácio de Almeida pensa em luz. 

O filme (aí está a minha contradição) é inicialmente o arranque desse filosofar, presentes em encenações (Manuel Mozos, o nosso “zeitgeist” era cameo mais que esperado) ou de constatações (Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra a constatar que o tempo avança, a juventude morre e só a luz que projeta essas “memórias” imagéticas de um passado “lucidamente” imortalizado). Acácio de Almeida brinca por momentos com a sua filmoteca, mas cede ao bucolismo como via de criar um filme seu concretamente enquanto interroga o seu espaço (“O cinema é uma prisão, a prisão da memória. Aprisiona para libertar (...) fusão de tempo e de espaço. Actos de transfiguração”). 

Objetos de Luz” (não esquecer o outro “lado da laranja” - Marie Carré, a atriz, que certa vez banhou-se na luminosidade de “Agosto”, quer de Acácio’, quer de Jorge Silva Melo - também assumida como realizadora aqui) soa-nos como um espólio de ideias, e poderia ser um legado deixado, um livro que encontra sentido em filme, pronto a ser projetado através, disso mesmo, da luz. Talvez seja por isso que faça sentido nesse formato, ao contrário de uma página de papel, o filme revela-se na casa de Acácio de Almeida. A sua luz, a sua escuridão, o seu contraste e a sua criação.

Amemos até ao fim dos Mundos ...

Hugo Gomes, 26.05.22

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As ideias estão lá! “Mar Infinito”, um atestado à Humanidade na sua decadência, não vive o suficiente para se assumir como longa-metragem. O exercício parece arrastar-se para além da sua longevidade. Enquanto isso, é de salientar a persistência de Carlos Amaral em tecer cenários pós-apocalípticos e futuristas no limite das suas possibilidades, afirmando-se na inventividade da criação, o “know-how” que refiro constantemente como manobra de génio num cinema, como o nosso, pobre em recursos. 

Depois da curta “Longe do Éden" (2013), Amaral parte nesta nova etapa com um relato existencialista, quase malickiano (ou “maliquices” conforme a conotação), explorando os seus cenários para o desejo da sua projetável reconstituição. As ruínas de uma civilização outrora moderna, contemporaneamente ultrapassadas, ou os lamaçais sem fim que dão lugar a Oceanos sem aviso prévio, ambos inabitáveis, a Terra e o fora dela como possibilidades de um “faz-de-conta” esgalhado. Sim, de “Mar Infinito”, a concepção é tudo, o intuito do conceito e da prática convertem a produção de Rodrigo Areias [Bando à Parte] num "caso de estudo" dentro do cinema português, nem que mostra da experiência do realizador na área designada de “efeitos visuais”, o qual operou em modo zeitgeist na plenitude da “indústria” (menciono alguns exemplos mais impressionáveis nesse campo como “Soldado Milhões”, “A Herdade” ou “Caminhos Magnétykos”). 

Porém, até que ponto essa mestria justifica uma longa? Ou será a imperatividade desse mesmo formato automaticamente sinónimo de autor emancipado que obriga realizadores a avançar num passo maior do que a sua própria perna? O resultado está à vista da linha terrestre, a filosofia inerente amontoa e orbita perante a contemplação do mesmo cenário (o romance vivido pela dupla Nuno Nolasco e Maria Leite não como estado, mas antes como uma consolidação de inquietações, medos e dúvidas) ou seja, em “bom português”, o filme esgota a sua proposta. Ele bem tenta remexer-se em reviravoltas, mas até aí o espectador já encaixou todas as peças do puzzle. 

No seu último fôlego, o que resta neste “Solaris” lusitano é o deslumbramento da sua própria estética. Exercício terminado! Passemos para o próximo. 

Na noite de Lisboa, nem todos os filmes são pardos

Hugo Gomes, 28.02.22

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The State of Things / O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)

Lisboa, menina e moça, ou será antes, Lisboa, madura e experiente? Quem me conhece, sabe bem do meu fascínio para com a capital. No entanto, não vou fazer disto uma ode à cidade que me viu nascer ou dos pontos “altos” e umbilicalmente turísticos que levam, e muitos, a encontrar deleite nas paisagens banhada do rio Tejo (ouve-se em "língua estrangeira" a denominação Tagus, um ser corrente e mítico, ou lá o que seja). A cidade com que me apaixonei e que cada vez mais me leva a procurar nela uma razão para permanecer nesse estado de encantamento, contrariando o “destino” que parece relembrar das impossibilidades do mesmo, é a mesma cidade “pintada” em muito do cinema mais crítico sobre da região, aquela sem medo de demonstrar a sua decadência mergulhada em noites soturnas, uma reunião de criaturas errantes e mal-amparadas prontas para aquele “copo” duradouro no balcão contínuo e estendido em cantos do Galeto, ou do sempre resistente (ou será “resiliente”, essa palavra em voga?) Cais Sodré, a agora ruela rosada situada a poucos metros das margens “ribeirinhas”. 

Uma noite de bons vivants, ou assim pensam ser, de perversos ou simplesmente incompreendidos que penetram nos peepshows de becos, “vejam, mas não tocam”, ou dos esquecidos, amargurados, os solitários vencidos pela derrota que olham com tamanho pessimismos à bebida servida à sua frente. A noite de Lisboa não é mágica, mas é saudosista por tempos áureos, o qual nunca existiram, apenas perpetuam como lendas inconformistas entre os “trovadores de tasca”. O cenário em desenvolvimento e de expansão em “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963), com Rui Gomes e Isabel Ruth perdendo no seu interior - por entre labirintos de árvores em jardins de refúgio a salões de dança (num travelling único que desde a sua prova nunca mais o esqueci) - e cuja incompatibilidade de ambos leva o protagonista a procurar companhia numa cidade noturna cuja sua divulgação era impedida pelos altos-órgãos (“uma afronta à boa moral lisboeta”, imagino que pensaram desta forma). 

Mais tarde, nos últimos sopros do Estado Novo, essa Lisboa é capturada por personagens sem eira, nem beira, pontuadas pelas sardas de Maria Cabral como distrações para a sua crise existencial na “modernidade” levada da breca em “O Cerco” (António da Cunha Telles, 1970) ou do jovem curioso que resiste ao sedentarismo extraindo desse quotidiano falsos-profetas e Dulcinéias sem brilho em “Perdido Por Cem” (António-Pedro Vasconcelo, 1973), essa primeira longa-metragem contagiada pelos tiques da fervorosidade da Nouvelle Vague conservava uma noite sem dormidas, de encontros imediatos e espontâneos entre teatros à beira da ruína, residenciais de urgência para noctívagos sob o cuidado de um João César Monteiro de cerveja na mão e de jogos de póquer ilegais na companhia de Paulo Branco, aquelas apostas anteriormente acordadas em salões de bilhar. 

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Perdido por Cem (António-Pedro Vasconcelo, 1973)

Já na década de 80’, nos seus primeiros passos, Lisboa cedente à sua autodestruição, ilustrava-nos uma noite de atrasos culturais perfeita para “quem parou no tempo”, ou que devaneia com o inatingível. “Kilas, o Mau da Fita”, obra de sucesso de José Fonseca e Costa, título escorraçado pelo crítico da altura [Augusto Seabra], cercava ainda mais essa cidade cinzenta, de sex appeal pacóvio e de brandos costumes fingidos por uma libertinagem de moda. Os fura-vidas ou o típico alfacinha absorvido pela tentações de uma "metrópole" de bairrismo evidente e dos locais vincados não como passagem, mas de “segundas casas”. De braços abertos para receber os “fugitivos do dia” e aprisioná-los nos seus vícios. Esta capital caberia num dos êxitos da banda "Táxi" - “Sozinho” - onde a noite é mais que uma noite, uma cidade na camada de outra cidade, com os habitantes alternativos, hábitos alternativos e habitações alternativas, e a manhã indesejada porque nela pronuncia-se o fim de uma Lisboa oculta para o renascimento da Lisboa de postal.

Os “estrangeiros”, de certa forma, captaram esse “fado” proeminente, seja o escape de Wim Wenders ou de Christine Laurent, por entre rodagens e ensaios (“The State of Things”, “Vertiges”) respetivamente, os bares de cheiro a mofo soam abrigos para almas perturbadas, ou da transformação da cidade-portuária num porto imaginário onde marinheiros anseiam conhecer a sua derradeira sereia, em “A Cidade Branca” (Alain Tanner, 1983). Lisboa, o resgate de todos os pecados do mundo entranhados numa só arquitetura, com o Café Império, orgulhoso do seu vazio e ao mesmo tempo dos ocasionais clientes que aguardam sem vez, uma imagem imortalizada numa outra primeira metragem, “O Sangue” (Pedro Costa, 1989). "Sabes qual é a maior invenção do Homem?", a pergunta é feita repetidamente, do meu lado respondo Lisboa, sem sucesso. A década de 90 instalou-se, o encantado desencanto não vinga mais, a marginalidade revelou um outro tipo de “criaturas”, “leprosos” que servem como avisos por parte dos nossos pais para que as noites tivéssemos. Lisboa mudaria nestes anos e no fim dos mesmos, abrindo para a multiculturalidade e para o capital de outras coordenadas, o turismo em máximo expoente da ação. Paulo Abreu elaborou no seu ensaio docuficcional - “Alis Ubbo” - uma cronologia a essas metamorfoses, realçando a anterior “menina e moça” como uma resistente entre épocas. 

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Ramiro (Manuel Mozos, 2017)

Mas a noite, essa mesmo, regressou ao seu estado de desencanto, obviamente orbitando nos arredores dos eventos promovidos de uma cidade-modelo Time Out. Um público “fiel” aos “comícios improvisados” no interior do Galeto,dois dedos de conversas” que se alargam para imperiais e snack-bar de horas “ordinárias”. Um público fiel aos últimos redutos do Cais’, observando a sua juventude a fugir por entre os seus dedos, ao mesmo tempo que mentaliza o término dessa longa noite, de lábios aquecidos enquanto saboreiam um pão com chouriço. Um público fiel à última sessão do Nimas, após a projeção percorrem a Avenida do 5 de Outubro procurando o “cantinho aberto” para prosseguir a tertúlia cinematográfica, até porque são nessas mesmas noites que nascem as melhores dissertações sobre o Cinema, aquelas histórias ocultas ou as revelações sinceras, tudo isso acompanhado por aquele hambúrguer pós-meia-noite e da imperial tirada ao sabor da praxe. 

Esta é a Lisboa que muitos preservam, que dialogam em segredo e em código, e que lamentam pelas drásticas mudanças, aquele fecho ou figura sucumbida, a noite de outrora cada vez para lá da miragem. Essa mesmo, convertida em não-lugar nas mãos de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”, 2018), ou na passividade rústica a mercê do seu desaparecimento em Ramiro de Manuel Mozos, aliás, o homem, que talvez por outra via, pensa em Lisboa como um território cinematográfico [“Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista”, 1994], e através dele recita os seus mais requintados contos. Ou será antes, pontos de vista?

Takes Roterdão 2022 (2): formas, o que fazer com elas?

Hugo Gomes, 13.02.22

Excess Will Save Us

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Não é incomum acompanharmos a extensão de uma curta para o formato de longa-metragem. Prática diversas vezes recorrente, sobretudo nos mais “verdinhos”, como um aprofundamento das suas capacidades e de uma identidade fílmica ainda por definir. “Excess Will Save Us” não foge desse modus operandis, é uma curta convertida a filme de 100 minutos, mas existe nesse processo uma consciência do mesmo que exalta as aptidões da jovem francesa Morgane Dziurla-Petit, principalmente quanto às suas manobras narrativas.

Híbrido entre documentário e ficção, claramente vincado na sua estrutura, a obra remete-nos ao percurso da jovem em aventurar-se num projeto cinematográfico, como tal filma a sua família proveniente duma pequena localização rural, uma lente detentora de um humor por vezes condescendente em cedência a um tom tragicómico e bucólico. Costurado maioritariamente por vias de planos estáticos, “Excess Will Save Us” supera a sua curta-génese através da sua inclusão no enredo - com o objeto a ser aclamado no festival Clermont-Ferrand - o filme percorre esse “aftermath” tentando refletir o seu mesmo percurso e as repercussões destas nas personagens anteriormente convertidas em “caricaturas” meio pacóvias. Esse sintoma espelha uma maturação e igualmente um distanciamento da realizadora ao seu inicial fascínio. Sentimos assim uma clara emancipação, uma reconversão das nuances anteriormente oferecidas e um olhar desencantado à sua forma.

É um coming-to-age disfarçado, um filme que regista a sua própria criação nas mais diferentes fases, seja de esfera política até à incontornável passagem pela pandemia. Dentro disso, é um objeto eclético, esteticamente desenvencilhado (sem nunca parecer desleixado) e em constante metamorfose, possivelmente o vislumbre de uma revelada realizadora. “Excess will Save Us” é sobre excessos (está visto!), mas também é sobre a perda destes para afunilarmos no indispensável.  

Secção Tiger Competition (Prémio Especial de Júri)

 

Kafka For Kids

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Eis “Metamorfose”, a obra de Franz Kafka, contada num prisma infantil em jeito de um colorido programa pedagógico e matinal, entre animações grotescas, explicações de "cacaracá", músicas interpretadas por uma “banda invisível" intitulada de “Hello Shitty”, objetos antropomórficos e uma criança que não é mais que uma travestida jovem de 17 anos.

Bizarro e excêntrico é o que se pode dizer desta mistela em todo o caso indigestível. Do israelita Roee Rosen, "Kafka for Kids” é um protótipo de uma instalação que brevemente encontrará espaço na 1646, the Hague (Países Baixos) ou Kunstmuseum Luzern (Suíça), é um objeto estranho que se pontua mesmo pela sua sensação de estranheza o qual consolida todo os signos dignos dos programas infantis, convertendo-os em algo grotesco e sinistro, até ser cortada por uma tirada de “realidade” embrulhado em ativismo político.

Uma provocação longa que reflete o estatuto da criança, e como ela é maleável perante as diferentes leis territoriais, tendo como contexto o conflito israelo-palestino. A mensagem, subtilmente implantada no choque açucarado e as anomalias fantasiosas (“trouble in the paradise”), não é de todo pertinente e perceptível, mas à medida que avançamos, a farsa é cada vez mais descoberta e o que resta é o grito de resistência num espectador cansado pelo filme-camuflado. 

Secção - Tiger Competition

 

The Plains

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Quando o interior de um automóvel assume-se como o mise-en-scene total, a limitação converte-se automaticamente num imaginário grandioso onde autores souberam, e bem, arquitetar esse mesmo espaço, essa redoma ambulante, para o seu uso dramático ou meramente performativo. Cinema e interiores automobilísticos automaticamente encaminha-nos ao iraniano Abbas Kiarostami ou até o mesmo o seu conterrâneo em jeito de homenagem, Jafar Panahi (“Taxi”). Com “The Plains” traçamos um registo documental, diarístico de um advogado australiano [o realizador David Easteal] que conduz de casa para o trabalho, do trabalho para a casa, sempre na companhia do seu rádio ou do copiloto que incentiva os mais diferentes e rotineiros diálogos.

São três horas disto, de câmara posicionada nos bancos traseiros simetricamente centrado para que o espectador obtenha a igual sensação de passageiro. Quase ininterrupto - com ocasionais, mas não dominantes, intervalos escapistas de drones e as suas captadas imagens - somos desafiados ao tempo, ao tédio como experiência social, mandamentos invioláveis de muito “slow cinema” reinam o panorama dos festivais. Ensaio espaço-temporal ou meramente desgaste criativo com o seu quê de preguiça? “The Plains” garante-nos teorias quanto às suas escolhas estéticas, filmando o mundano e apresentando como o mais sofisticado espectáculo. O que resta é então a economia, o que fazer com o tempo, com a viagem, que bem sabemos que não nos levará a lugar algum.   

Secção - Tiger Competition

 

Kim Min-Young of the Report Card

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Conjugação de duas forças criativas (duas jovens realizadoras [Jae-eun Lee e Jisun Lim] e automaticamente duas argumentistas) que resultam num filme sobre o crescimento e consequentemente a durabilidade das amizades, e como a sua desintegração incentiva a maturação. Porém, é uma obra estranha, não no sentido de bizarrias nem excentricidades, mas quanto ao seu comportamento em tela, oscilando por formas e fórmulas, entre o tédio filmado e consolidado numa narrativa retalhista, até pelas escassas críticas a uma juventude distante, tão concentrada no seu próprio umbigo e nas suas dúvidas existenciais, os quais são desprezadas por gerações anteriores.

Em certa parte, este objeto seco e secado na sua própria frustração, ostenta alguma vida dentro daquela “natureza morta”, o que não se manifesta para além do mero exercício “naive” e por vezes difuso quanto à direção a tomar. Esperamos, tal como o filme, que as realizadoras encontrem espaço de crescimento e para tal é preciso encontrar uma sintonia. Além do mais, há que saber dialogar com o próximo sem aquela sensação de estar a “conversar para as paredes”.  

Secção: Bright Future

Kinorama - Cinema Fora de Órbita

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A cosmicidade de H.P. Lovecraft torna-se no ponto de partida para Edgar Pêra persistir na sua tese / estudo sobre os limites do 3D e de como torná-lo numa arte orbital ao universo cinematográfico. Porém, o que sentimos é um filme à moda do realizador, embrulhado pelo experimentalismo visual que funciona como deleite xamânico para com a terceira dimensão, para além da reciclagem de imagens pontuadas da sua obra que nos perseguem desde então (“O Espectador Espantado”, “A Caverna”, “CineSapiens”).

Pêra conversa com especialistas, estudiosos e outros intelectuais ao serviço de uma pedra-base para com a sua contínua operação, a sua demanda em contradição aos ditos do autor Bruce Isaacs - “o 3D como sabotagem da narrativa” - e a procura do Cinema absoluto e transgressivo das velhas formas e fórmulas. O 3D é a cerne da busca, limita-o, mas simultaneamente o lança para novas fronteiras … talvez face aos paralelismos delineados, para barreiras (digamos) lovecraftianas. “Sem interesse não poderá existir arte”, Edgar Pêra exibe, acima de tudo, interesse pela sua matéria.

Secção: Harbour

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas.