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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Todos a bordo! O comboio do leste prossegue para a 8ª edição do BEAST IFF!

Hugo Gomes, 05.06.25

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Cestovatel (Veronika Jelšíková, 2024) / East Wave Competição Oficial

Depois da Estónia, o “comboio” BEAST IFF chega à sua oitava paragem – e nesta estação, não há um país de honra, mas a bússola continua virada para dentro, para a própria essência do festival. BEAST vira-se todo para ciclos: de mudança, de memória, de descoberta, de resistência, a renovação como mote e destino a atingir. Em formato cápsula, entre os dias 6 e 8 de junho, o cinema do Novo Leste regressa ao Porto com programação no Batalha, Trindade, Passos Manuel, OKNA, Reitoria da Universidade do Porto e outros pontos de encontro e partilha.

A sessão de abertura traz ao grande ecrã “When the Phone Rang”, de Iva Radivojević, onde uma importante chamada telefónica leva o seu protagonista a questionar a sua identidade e história. Mas este é só o primeiro aceno. O programa segue com secções como In (E)Motion, Anima East, experimentalEAST ou East Doc, num verdadeiro carrossel de linguagens e formas, que vão desde a animação à performance, do ensaio político ao gesto íntimo, cinema com C grande sem se render a convenções e normatividades.

Este ano, mais do que um país, há múltiplos territórios a ocupar: os da infância, os da resistência, os do desejo, os da perda. O queer, o feminino, o arquivo, a memória e a paisagem voltam a ser palavras-chave. E entre sessões, também há escutas, exposições, conversas e DJ sets para continuar a dançar no intervalo entre filmes.

Como sempre, o Cinematograficamente Falando … convida Teresa Vieira, directora artística, programadora e crítica para revelar o que se move por trás desta edição que é, acima de tudo, um gesto contínuo de reinvenção. O comboio BEAST não parou. Nem vai parar.

Ao chegar à oitava edição, que desafios e responsabilidades tem (ou adquiriu) enquanto festival?

A responsabilidade de um festival está - ou deverá estar - sempre presente, desde o primeiro momento. Os olhares,  pensamentos e acções de agentes representativos do  - e pertencentes ao - ecossistema artístico, inevitavelmente inseridos no contexto social, político e cultural, assumem isso mesmo: o BEAST não é excepção. As inquietações, os medos e os desafios de um mundo em crise têm impacto, de diferentes formas, em cada elemento da equipa que permite a criação e manutenção do festival, a cada passo que dá: a atenção e consciência para com o espectro de potenciais - do negativo ao positivo - é algo que carregamos em nós, individualmente, e que procuramos expressar através da curadoria de cada edição, através de diferentes propostas fílmicas e artísticas. 

Na caminhada de oito anos de festival, o futuro é sempre algo que não se procura adivinhar, mas para o qual se procura trabalhar. Não nos limitando a uma mostra acrítica de cinematografias distantes, mas com uma preocupação de criar um diálogo com o público que seja de ordem permanente e frutuosa, e que aproxime culturas e realidades. 

“Esta mudança não promete nada”, é este o mote do festival. Estaremos perante um gesto de resignação política ou uma crítica afiada ao próprio conceito de promessa cultural?

O mote da 8ª edição é inspirado numa fala do filme “Endless”, da secção queer do festival. Num ano em que o festival atravessa uma fase de transição de posicionamento no calendário de actividades culturais da cidade do Porto, a mudança que isso implica é assumida como um facto - com as suas vantagens e desafios inerentes - , mas acima de tudo serviu de inspiração para a criação da edição: estando o conceito de “transição” (nas suas mais diversas formas) presente - e servindo como grande inspiração - na linha curatorial deste ano. E o resultado desta mudança está ainda por se verificar: a experimentação a que este ano o festival se permitiu terá impacto em futuras edições. A identidade do festival mantém-se e afirma-se ao longo de toda a sua trajectória, numa linearidade que assume e representa as restantes transformações pelas quais o BEAST tem atravessado: e tal acrescenta força aos ideias e valores de base, que, ano após ano, transparecem.

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When the Phone Rang (Iva Radivojević, 2024) / Filme de Abertura

Na secção IN(E)MOTION, a efemeridade da vida é o ponto de partida. Estará o festival a propor que o verdadeiro “coming of age” é, afinal, um processo contínuo e nunca consumado?

A secção IN (E)MOTION apresenta um double-bill de filmes com retratos de diferentes pólos de um possível contexto cinematográfico coming-of-age: do urbano ao rural, do infantil ao juvenil, entre outros aspectos. A ligação, com esta base na diferenciação, recai sobre o confronto com a efemeridade da vida, em ambas as narrativas. A morte de um ente-querido é aquilo que impulsiona cada uma destas vidas e histórias. A ideia de um aproximar da idade adulta é algo que pode acontecer de diferentes formas, em diferentes alturas. Mas, mesmo na construção diária e constante do “eu”, que se espera sempre em evolução, atinge-se um certo “estado de adulto” a certo ponto, ao qual não se pode escapar. Aqui não procuramos ressignificar esse processo, há anos reflectido pelas várias artes - com direito a categorização específico -, mas sim um foco nesse movimento - e numa possível emocionalidade - que tal implica.

Com "Endless" e a secção How to Care for Cosmos, temos um cinema queer que se quer gesto curatorial. Mas até que ponto o cuidado e a visibilidade não são, também eles, estratégias de resistência institucional?

O gesto curatorial é algo que se pretende atento e cuidado em qualquer circunstância. Enquanto uma equipa composta por diversos indivíduos queer, de Portugal e da Europa Central de Leste, confrontados com realidades cada vez mais distópicas, de um acentuar de discurso de ódio e de tentativa de apagamento da existência e realidade queer, a representação queer na linha curatorial do festival é algo que o BEAST considera de ordem (sempre - e cada vez mais) urgente. A resistência, através de uma associação e de um espaço de criação de diálogo através - e com e pelo - cinema e artes, com diferentes públicos, é algo que está de forma inerente presente.

Em Re-Focus, a cineasta ucraniana Kateryna Gornostai regressa sete anos depois ao festival. No press release é mencionado que o seu regresso é um lembrete de como os artistas mudam, evoluem até, talvez influenciados pelo mundo ao seu redor. O que implica estas tais mudanças na curadoria de um festival como ao BEAST e se estarão abertos a todo o tipo de transições artísticas?

A secção RE/FOCUS foi criada na edição de 2023 de forma a não perder a ligação com cinematografias, autores, vozes e visões anteriormente em destaque no festival. Um espaço dedicado à possibilidade de revisitação (que não implique somente programas de retrospectiva), num festival que procura a cada ano expandir o aprofundar de diferentes realidades - nomeadamente com a secção de Focus Country

Este ano, o festival decidiu dar mais uma vez destaque à realizadora em foco na edição de 2018: Kateryna Gornostai. É na verdade a terceira vez que o festival apresenta os trabalhos de Kateryna Gornostai: depois de uma mostra das suas curtas-metragens, em 2018, e da exibição da sua primeira longa-metragem, “Stop-Zemlia”, em 2022, o BEAST apresenta em 2025 a sua mais recente longa-metragem, “Timestamp”. Um retrato documental sobre a realidade escolar neste período de guerra na Ucrânia. Um filme que encaixa inevitavelmente na visão curatorial do festival, com um impacto tremendo, de uma sensibilidade única e distinta, que permite um aproximar para com a realidade da vivência ucraniana.

O programa Portuguese Abroad foca-se na animação portuguesa em co-produção com países do leste. Que importância tem este tipo de colaboração no nosso panorama, tendo em conta que a animação portuguesa é um traço forte e mundialmente reconhecido da nossa cinematografia?

Num ano em que uma longa-metragem de animação da Letónia venceu um Óscar, dois anos depois da primeira nomeação de um filme português aos Óscares (com uma curta-metragem de animação), o festival sentiu um apelo em explorar os cruzamentos tão frequentes entre estes dois universos: a animação em Portugal e a animação na Europa Central e de Leste. Não são só eventos recentes, nem reconhecimentos do agora: a tradição de décadas da produção cinematográfica de animação da Europa Central e de Leste foi desde sempre reconhecida naquela que constitui a história do cinema; o caminho do cinema de animação em Portugal é traçada por um grande impacto, força e reconhecimento a nível internacional. Existindo um vasto espólio de colaborações, e sendo o BEAST um espaço dedicado precisamente ao contacto entre estes dois pólos da Europa, a proposta de Ema Lavrador (parte do core da equipa de organização do festival) de apresentar uma selecção de curtas-metragens que reflectem sobre essas dinâmicas de diferentes formas, foi inevitavelmente acolhida. É uma proposta curatorial que o festival pretende estimar e cultivar para o futuro e algo que procura igualmente ter a possibilidade de levar a mais públicos, em diferentes países.

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Timestamp (Kateryna Gornostai, 2025) / Re-Focus

O que poderá dizer-nos sobre os convidados do festival?

O festival conta com a presença de cineastas e produtores do programa dedicado às co-produções de filmes de animação Europa de Leste-Portugal (“Portuguese Abroad”), tendo uma conversa no final da sessão, moderada pela curadora Ema Lavrador. Ala Nunu, Alexandre Sousa, Alina Didenko, André Cunha, Cristina Neto, Cynthia Levitan, Gábor Mariai e Natália Azevedo Andrade falarão então sobre a sua experiência de co-produção e cooperação entre diferentes países.

O BEAST conta também com a presença da directora artística do BIEFF, Oana Ghera, curadora do programa “Lost in Transition”, tal como de Andrei Rui, professor de História do Cinema e Estudos Cinematográficos na UNATC. Será uma oportunidade para aprofundar as propostas deste programa: que oferece um retrato da produção cinematográfica no período de transição que se seguiu à queda do regime ditatorial de Nicolae Ceaușescu (em particular no contexto de produção da UNATC). Teremos também a presença de cineastas da competição oficial do festival. 

Em mais colaborações curatoriais, o BEAST apresenta “Local Time Only”, com curadoria de Simona Constantin. A realizadora estará presente para apresentar a sessão de filmes, tal como realizar um workshop. A exposição “It Slips Between My Fingertips” e as performances “Bits Of You” e “Volcanic Sand” são de curadoria do colectivo queer ucraniano MOFO.GALLERY, sediado no Porto, que estarão então também no festival. A curadora da Listening Session, Pavla Rouskova, estará presente na abertura dessa experiência patente na Reitoria da Universidade do Porto

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Os (Re)Encontros de Cinema do Fundão: uma força de atrito na cinéfila do nosso tempo

Hugo Gomes, 25.05.25

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Keoma (Enzo G. Castellari, 1976)

O Fundão quer-se cinéfilo!! Anotem nas vossas agendas: os 15º Encontros de Cinema do Fundão arrancam já no próximo dia 28 de maio, deixando para trás Agosto (o “querido mês” que acolheu as edições anteriores) e olhando para o verão de 2025 nos seus primeiros passos, para nos transmitir uma mensagem clara. À medida que o mundo muda a olhos vistos, e se pressentem períodos sombrios, o Cinema manter-se-á uma certeza.

Até 1 de Junho, A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes (com apoio do Cineclube da Gardunha) estenderá a sua passadeira vermelha, recebendo convidados ilustres como Enzo G. Castellari e o madrileno Pablo García Canga, não apenas cabeças de cartaz, mas orientadores para a temática destes Encontros. Porque do grindhouse ao western, da poesia rural ao cinema a conservar e assimilar, da crítica à cinefilia das paixões — algo velado, pessoal — refletido fora das grandes cidades e dos centros culturais habituais.

Como já vem sendo tradição neste espaço, o Cinematograficamente Falando… desafiou José Oliveira, realizador e crítico, cinéfilo irrequieto, mas sobretudo programador, para desvendar o que se poderá antever desta nova jornada … deste Encontro ou (Re)Encontro.

Prosseguindo nas perguntas da anterior edição e tendo foco essa mesma, que desafios encontraram para os Encontros de Cinema do Fundão de 2025, em comparação com os de 2024?

Os desafios da programação são para nós iguais aos desafios da vida: tem de ser uma aventura. E tem de ser divertido, mesmo que seja bem duro. Não nos deixarmos ofuscar pelos brilhos do contemporâneo, mas sim escavar na história, tentar fazer um pouco de justiça, resgatar preciosas constelações há muito soterradas pelo imediatismo do espetáculo e do jornalismo (anti-jornalismo!) básico que nada tem a ver com a crítica nobre nem com qualquer tipo de paixão. O resto, como arranjar financiamentos e quem acredite, aparecerá. O que tem de ser (porque está certo) continua a ter muita força.

Enzo G. Castellari é um dos três realizadores convidados e à mercê de uma retrospectiva-homenagem. Pegando na estética do realizador: como é que o seu universo punk e barroco ressoa num espaço como o Fundão, onde a ruralidade e a memória histórica se entrelaçam? Há aqui uma espécie de fusão entre o grindhouse italiano e a melancolia beirã?

Obras-primas como o “Keoma” (1976) ou o “Johnny Hamlet” [“Quella sporca storia nel west”, 1968] poderiam ter sido feitas neste território, claro. Meios naturais gigantescos e omnívoros combinados com estruturas poeirentas e obsoletas existem a rodos. Talvez haja acordes, harmonias, sensações secretas e correspondências subterrâneas entre territórios e memórias. Talvez os montes e vales de Almeria ou de Abruzzo falem com estes, estejam ligados internamente ou espiritualmente. E sem dúvida que muitas das contendas políticas e puramente humanas são as mesmas… Mas a razão é que descobrimos, de repente, e como uma revelação óbvia e epifánica, que um dos maiores cineastas que alguma vez mexeu a câmara, uniu planos e deu significado às histórias e à História através dos puros e exclusivos meios cinematográficos, está aí para as curvas e gostou da nossa abordagem. 

Também é o grande representante vivo e a síntese de um cinema italiano inesquecível, operático, cheio de ação, risco, carregado de dramaturgia e de tragédia, de vitalidade e constante surpresa, onde pontificaram Sergio Leone, Sergio Sollima, Sergio Corbucci ou Lucio Fulci.  E como esquecer o seu trabalho com Franco Nero, Woody Strode, Fabio Testi, Henry Silva, Fred Williamson… os amadores e os duplos… Stefania Girolami, Ennio Girolami…

A retrospectiva de Pedro Ruivo levanta uma questão rara no cinema português: por que é que a ficção científica continua a ser tratada como um corpo estranho? “A Força do Atrito” (1993) será uma anomalia ou um prenúncio ignorado? Terá lugar nesta atual vertente de reavaliação do nosso património cinematográfico?

“A Força do Atrito” é tanto uma anomalia - no sentido dos grandes filmes portugueses únicos, desalinhados, protótipos e acabados em si mesmos - como um risco sem cálculo, visto que o realizador quis fazer tanto um comentário sobre os tempos da altura como um conto romântico da juventude eternamente à deriva. Um filme tão frágil como belo no sentido do cinema do Nicholas Ray – tem de ser frágil porque tudo dentro dele o é, desde o ambiente até à dimensão temporal, passando pelos seres planantes, e assim é belo pela sua verdade despida de subterfúgios. Na altura foi tratado como lixo por toda a gente, mas isto continua a ser o pão nosso de cada dia – quem não faz os contactos certos nem fala (e como deve ser) com as pessoas certas, quem não vai às festas nem pratica os lobbys oficiais, não vai aos “grandes” festivais nem tem a papinha da crítica toda feita. O que descobrimos na entrevista ao Pedro Ruivo é que é um homem e um cineasta honesto.

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A Força do Atrito (Pedro M. Ruivo, 1993)

Pablo García Canga propõe uma poética do silêncio e da palavra contida. Como é que o seu olhar dialoga com o legado de Ozu, especialmente num tempo em que o ruído parece ser o novo realismo dominante?

Creio que essa será uma boa questão para colocar ao Pablo García Canga no Fundão. Mas julgo que parte da resposta, pelo menos, está no seu magnífico livro "Ozu, Multitudes", que será apresentado no dia 1 de junho, na livraria Livros Tintos. É um dos mais belos e apaixonantes livros dedicados a um cineasta, onde os fotogramas dos filmes de Ozu são como cartas de tarot, permitindo efabulações, tergiversações, histórias, sobre a ilusão, a felicidade, as contradições, os segredos, a amizade, o cómico, a espera, o tempo que passa sem fazer ruído, etc., como se estivéssemos a ler (ou a ver através das palavras) um autêntico vade-mécum para a vida de todos nós. E às vezes o drama contido nos pequenos gestos e movimentos, como a lata que cai da escadaria em “Uma Galinha no Vento” (“A Hen in the Wind”, 1948) e que conta toda uma história. Como disse o Mário Fernandes, “se imaginarmos um Montaigne cinéfilo estaremos próximos deste maravilhoso e original livro de Pablo García Canga”. 

Estes encontros celebram também a cinefilia enquanto gesto coletivo. Que papel ainda pode ter um cineclube, como o Gardunha, num país onde a política cultural parece esquecer o interior?

Não temos pensamentos de inferioridade, programamos com toda a lógica e coração: como não temos cinema comercial no Fundão, tanto tentamos dar uma imagem do panorama actual, como estar atentos às injustiças, para que filmes como “A Força do Atrito” ou “O Movimento das Coisas” não precisem de esperar trinta anos para serem vistos como devem ser. Nos últimos anos tanto tivemos no Fundão o Víctor Erice como o Raul Domingues, o Pedro Costa como o Diogo Costa, tratando-os como iguais. Claro que as políticas desta cidade foram cruciais, mas temos de tentar fazer o melhor trabalho possível na recepção de cada cineasta e de cada obra, de cada músico ou convidado de outra área: desde a produção de textos, entrevistas, diálogos, espetáculos; sentindo que o tempo e o ar do interior propícia a delicadeza e a pulsão necessária para tudo isto. Mostrar o filme certo da maneira certa é uma questão grave.

Os concertos que evocam Castellari trazem uma performatividade sonora que ultrapassa a sala de cinema. Esta aproximação entre imagem e som pode ser vista como um novo tipo de crítica? Uma crítica que se faz com guitarras e distorção?

É uma boa imagem essa, obrigado. Será com certeza uma grande descarga sónica de emoções e de considerandos. Um novo tipo de crítica, com certeza. Tal como uma outra maneira de transmitir as sensações de algo que foi marcante. A Marta Ramos interpretará o tema-mãe de “Keoma”, que é um filme fascinante e obsessivo para ela tanto em termos dramatúrgicos como musicais, que no caso são inseparáveis. Ao longo dos anos ouvimos esse tema a reverberar na sua voz. E outros do Dylan, que obcecaram também o Castellari na montagem dos seus filmes. E assim, tal como o grande historiador Tag Gallagher disse recentemente na Cinemateca que deixou de escrever quando descobriu que conseguia mostrar com um plano o que muitas vezes necessitava de dizer em dez páginas, produzindo agora vídeos críticos e poéticos ao invés de textos, também a música parece um tipo de crítica muito mais forte do que a que lemos diariamente nos jornais ou na net.

Com “Há uma Sombra”, do realizador e poeta radicado no Fundão, Alejandro Pereyra, continua-se a explora a cinematografia que despoleta na região. Existe esforços, e se há frutos colhidos, sobre esse constante sublinhar do cinema fundanense?

Não creio que haja um "cinema fundanense". O que tem acontecido no Fundão nos últimos anos, felizmente, é uma concentração de cineastas muitos diversos e de diferentes gerações, que aqui residem ou que aqui têm produzido algumas das suas obras, muitas delas marcantes. Cineastas tão diferentes como Nelson Fernandes, João Dias, Rodolfo Pimenta, Joana Torgal, Manuel Mozos, Mário Fernandes, Marta Ramos, Alejandro Pereyra (poeta, músico e também realizador do agora programado “Há uma Sombra”), Aurélie Pernet, Raul Domingues, Manuel Melo, Leonor Noivo, Margaux Dauby, Gonçalo Mota, Mariana Neves, Hugo Pereira, Ana Pio, Fernando Carrolo, entre muitos outros. Creio que os Encontros de Cinema do Fundão também têm desempenhado um papel de relevo na atracção e descoberta da região por vários destes cineastas, uns mais conhecidos, outros mais invisíveis que importa revelar. É realmente uma sorte, ou talvez não seja uma questão de sorte, se olharmos para a história cinematográfica do concelho do Fundão

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La nuit d’avant (Pablo García Canga, 2019)

Recordemos, a título de exemplo, que há registos de projecções de filmes no Fundão desde 1903; que o cartoonista, escritor e pintor José Vilhena realizou aqui o seu único filme, “O 5º Pecado” (1959), antecipando nalguns aspectos o que viria a ser o cinema novo; que o Jornal do Fundão teve quase desde o início crítica de cinema (um dos primeiros jornais portugueses a defender realizadores tão diferentes como Manoel de Oliveira ou Sam Peckinpah, quando estavam longe de ser consensuais); que o “Jaime” do António Reis teve a sua primeira exibição pública no Cineteatro Gardunha do Fundão, em Janeiro de 1974, com a presença do próprio António Reis, mas também de Fernando Lopes, Margarida Cordeiro, Carlos Paredes, Eugénio de Andrade, José Cardoso Pires, Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Alice Vieira, etc; que à época, por iniciativa da equipa do IMAGO - Festival Internacional de Cinema, o Fundão teve um dos primeiros festivais do país dedicados exclusivamente ao cinema documental - o Festival Dok. Portanto, diria que o filme do Alejandro Pereyra é um dos frutos colhidos de uma árvore imensa com diversas ramificações. 

Voltando a uma questão recorrente, mas quem sabe: há planos de expansão, de alguma forma, do Encontros de Cinema do Fundão em edições futuras?

Existe todos os anos uma extensão na Cinemateca Portuguesa, e este ano não fugirá à regra. De resto, não há planos para aumentar ou diminuir os Encontros, mas apenas, reforço, embarcar sempre numa aventura, rio ou montanha acima ou abaixo, para que depois o público possa participar em eventuais perigos ou maravilhas.

Toda a programação poderá ser consultada aqui

"Quorum" em Junho!!

Hugo Gomes, 22.05.25

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Menção no jornal da Cinemateca Portuguesa! Contudo, há que frisar que "Quorum", a curta-metragem de Rafael Fonseca, vai estrear no Museu do Cinema no dia 27 de junho.

Poderia estar aqui a escrever uma ou duas frases 'bonitas' sobre o filme para vos aguçar a curiosidade, mas basta ler o cujo texto [ler aqui]. Está lá tudo, e o que falta podem encontrá-lo no "Quorum".

Eduardo Geada apresenta-se ao Desejo ...

Hugo Gomes, 12.05.25

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O desejo do olhar, ou melhor, O Olhar do Desejo. Novo ciclo na Cinemateca, mais um lembrete de que realizadores como Eduardo Geada caminharam entre nós. Porquê esquecê-los? "Sofia e a Educação Sexual", a depravação como jogo de aparências, e a emancipação encontrada na devida sexualidade. Crónicas de um país amordaçado, desesperadamente gritando por novos tempo, novos ventos, outras carnes.

O filme encontra-se igualmente disponível em DVD, numa edição de luxo, graças à parceira com a Academia de Cinema. Ver programação toda aqui.

Maia IFF 2025 promete cinema para tudo e todos para não se ficar "à mercê de blockbusters semelhantes"

Hugo Gomes, 29.04.25

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"Moon" (Kurdwin Ayub, 2024): exibido no dia 1 de Maio, pelas 18h30

A cidade da Maia acolhe, pelo segundo ano consecutivo, o seu festival de cinema internacional, provando que a sétima arte pode chegar aos mais diversos cantos, fora da tradicional centralização Lisboa-Porto. É com esta segunda edição que a resistência se faz sentir com mais força, não apenas no formato, mas também na própria presença do evento. Perante uma programação selectiva e diversificada, sem medos de exibir cinema português, com masterclasses, tertúlias e debates, o Maia IFF promete “fincar pé" nesse lugar cultural ainda por explorar.

O Cinematograficamente Falando... desafiou Gustavo dos Santos, director do festival e também realizador ("Zulmiro de Carvalho", "Percepção Delicada de um Raio de Luz"), a desvendar o evento, as novidades e os statements que marcam a sua razão de ser.

Maia International Film Festival arranca amanhã (30/04), no Forum da Maia. A programação poderá ser consultada aqui.

A segunda edição do Maia International Film Festival apresenta uma curadoria ambiciosa e cosmopolita. Num mundo saturado de festivais, o que é que distingue, para si, este festival da Maia enquanto espaço de resistência ou celebração artística?

O cinema (ou a sala de cinema) trava uma luta muito grande com os serviços de streaming. Nunca como dantes as pessoas preferiram tanto o conforto de sua casa ao (des)conforto do cinema. Os festivais devem-se distinguir exactamente como eventos sociais e espaços de visualização de filmes que não poderão ser vistos em casa.

O nosso festival não se pretende diferenciar de outros festivais de nenhuma maneira específica. O nosso objectivo é apenas oferecer uma programação de qualidade e exclusiva (a maioria dos nossos filmes são estreia nacional), e que faça com que o público se reaproxime da sala de cinema. Toda a gente que trabalha com cinema menos comercial depara-se sempre com dificuldades de público, mas se toda a gente desistir, ficaremos exclusivamente à mercê de blockbusters semelhantes!

A presença de realizadores como Margarida Cardoso [Portugal - Moçambique] e Algimantas Puipa [Lituânia] acena a uma ponte entre geografias e memórias distintas. Que tipo de diálogo espera que surja entre o público português e estas cinematografias menos "globalizadas"?

O cinema como arte deve ou deverá sempre despertar curiosidade. Uma pessoa que esteja menos habituada a este tipo de cinema poderá ter mais questões ou questões diferentes em relação a alguém cuja bagagem cinematográfica seja bastante maior. Na minha opinião, isso deverá dar azo a discussões interessantes entre realizadores e o público.

Com uma programação ecléctica e de múltiplo-públicos, como se equilibra o festival da sua vertente formativa com a curadoria para um público já cinéfilo?

Imagino que existam sempre pessoas mais elitistas, cujo conteúdo de alguns filmes não interesse. Mas como elitista eu próprio, acho que de vez em quando também faz bem uma comédia descontraída ou um filme mais "light". De qualquer maneira, mesmo este tipo de filmes, foram escolhidos com critério, são filmes que também têm a sua profundidade.

A escolha do júri é quase um manifesto estético e político: de João Nuno Pinto a Manuela Pimentel. Há aqui uma intenção deliberada em misturar sensibilidades e disciplinas artísticas? Como se cruzam essas vozes na hora de avaliar cinema?

Foi nosso objetivo desde o início ter um júri multidisciplinar. Nunca poderá haver 1 júri sem alguém do cinema, mas há muitas pessoas de outras disciplinas que adoram e entendem de cinema. Essa diferença de sensibilidade é o que nos interessa. Queremos olhos diferentes com visões diferentes. Desta maneira, penso que conseguiremos determinar vencedores de uma maneira mais equilibrada.

- "A Woman and Her Four Men" (Algimantas Puipa, 1983): 1 de Maio, 21h30, seguido por uma masterclasse com o realizador

- "The Hyperboreans" (Cristóbal León & Joaquín Cociña, 2024): 2 de Maio, 18h30

- "Banzo" (Margarida Cardoso, 2024): 3 de Maio, 21h30

Tendo no seu percurso uma forte ligação ao documentário e à videoarte, sente que essas linguagens encontraram já o seu lugar natural nos festivais portugueses, ou continuam, de certa forma, relegadas para as “secções alternativas”?

A minha área de formação é cinema. Sempre estive muito ligado à ficção e ao documentário, a Videoarte é uma paixão recente! A pergunta é pertinente e real e a resposta curta é (e penso que será sempre) afirmativa. Há festivais dedicados exclusivamente a cinema documental onde o documentário é o principal, mas em termos gerais o documentário é "empurrado" para uma secção própria por ser difícil de comparar e julgar em relação à ficção. São dois formatos com características muito diferentes, tempos diferentes, orçamentos diferentes. Numa competição, será difícil um documentário ganhar se estiver a competir contra uma ficção. Em relação a videoarte é pior ainda. Muitas vezes a videoarte não tem uma narrativa, e se tiver, não deverá ser uma narrativa literal ou de palavra. Eu vejo a videoarte como algo muito mais sensorial. Outra coisa são os tempos. A videoarte pode ter 5 minutos ou 24 horas, como comparar isso a um filme tradicional?

O seu próximo documentário aborda o artista Flávio Rodrigues. Como é que a experiência pessoal enquanto criador e programador interfere (ou ilumina) a construção de um festival como este, que parece querer desafiar tanto quanto acolher?

A minha visão como criador é diferente do que como programador. Cada um tende sempre a "puxar a sua sardinha para a sua brasa", e como programador, o objectivo não é agradar apenas a mim, mas a um conjunto de pessoas. Neste momento o júri de pré selecção são quatro pessoas, sendo a programação a visão de quatro pessoas e não apenas minha. Em conjunto, tentamos sempre ter critérios que nos levem a agradar o público, e obviamente que há um público alvo que é o público cinéfilo. Mas queremos que o festival seja para todos. Como criador, a minha visão de artista ajuda sempre a elevar o nível dos filmes que apresentamos no festival. Aquilo que exijo a mim, o critério, irei exigir o mesmo dos outros!

Como poderemos definir o MaiaIFF no futuro? Ambição para as próximas edições?

O nosso objectivo para o futuro é poder alargar o festival em termos de dias e poder termos mais convidados com filmes e mais masterclasses. Como já referi antes, o festival deve criar interacções humanas. Se tivermos mais realizadores, mais actores, mais equipas técnicas, poderemos ter muito mais conversas e muito mais aprendizagem.

Pretendemos também o alargamento de parcerias estratégicas, como instituições culturais locais e internacionais, universidades e colectivos.

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KULTURfest 2025: o 'K' que une cultura e cinema. Começa a segunda edição!

Hugo Gomes, 26.04.25

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"Solo Sunny" ( Konrad Wolf, 1980): exibido no dia 29 de abril, pelas 21h00, na Casa Comum | Universidade do Porto

Contemos cultura com “K”, à boa moda alemã, conectando também com a palavra “Kino”, cinema no linguajar germânico. A KULTURfest chega à sua segunda edição, partindo da cidade Invicta até à capital, com a missão de difundir essa cultura, atravessando as mais diversas artes. O cinema é apenas um dos ramos … e até um dos mais políticos.

O KULTURfest – Festival de Culturas de Expressão Alemã arranca já amanhã (27/04) no Porto, no dia 21 em Lisboa, e prossegue depois para outras cidades portuguesas. Toda a programação poderá ser consultada aqui. Entretanto, Teresa Althen e Jana Binder, programadoras do evento, responderam ao desafio do Cinematograficamente Falando…

Depois da primeira edição em 2024, que desafios encontrou na programação desta segunda edição do KULTURfest? Houve necessidade de limar algumas arestas ou repensar direções? 

O KULTURfest 2024 foi um projeto piloto para descobrir se um festival interdisciplinar, direcionado a diferentes públicos, poderia ter sucesso. No final da primeira edição fizemos uma avaliação do projeto e ficámos surpreendidos com o quão bem funcionou em Lisboa, o que nos encorajou não só a planear uma segunda edição, mas também a expandir o programa para outros locais, tentando sempre ir ao encontro das necessidades do público e das questões pertinentes da atualidade que ampliem o intercâmbio cultural. Este ano, o Porto dá início ao festival com um programa desenvolvido em colaboração com a Universidade do Porto – Casa Comum, onde terão lugar a maioria dos eventos. Já em Lisboa, o festival volta a dinamizar as instalações do Goethe-Institut em Lisboa. Mantêm-se, é claro, as parcerias, e os eventos fora de portas, quando as necessidades técnicas dos espetáculos assim o ditem.  

O KULTURfest propõe um cruzamento ambicioso entre cinema, performance, gastronomia e música. A intenção é construir um retrato abrangente da cultura germânica ou criar antes uma experiência sensorial que ultrapassa o plano meramente didático? 

A diversidade da cultura é mostrada através da junção de vários tipos de artes e ofertas culturais, abrangendo um público mais lato. Acreditamos que as duas coisas não se excluem mutuamente: o intuito não é a didatização, mas sim fazer parte da experiência de imersão cultural que propomos.  

Ao criar a programação do KULTURfest 2025, tivemos em mente diversos aspetos, dando prioridade à representatividade e ao diálogo intercultural. Em primeiro lugar, procurámos o que se destacou na produção artística na Alemanha no último ano e meio nas áreas da música, do cinema, da performance, das exposições. Depois, identificámos aniversários marcantes que nos permitem olhar mais de perto para uma determinada personalidade ou acontecimento histórico e que pudessem ser relevantes nos dias atuais. Também procurámos propostas que pudessem interessar não só a um público que já teve contacto com a cultura de língua alemã, mas aos públicos que o fazem agora pela primeira vez. E, finalmente, tentámos integrar propostas não só da Alemanha, mas também de outros países de expressão alemã: Áustria, Luxemburgo e Suíça

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias propostas culturais que incluímos tanto na programação do Porto, como na de Lisboa, sempre tendo em conta o que os diversos espaços onde o festival vai ter lugar têm para oferecer.  

Com tantas entidades envolvidas e um programa que se estende por várias cidades, como é que se assegura uma identidade coesa ao festival? O que impede o KULTURfest de se tornar apenas um mosaico de eventos isolados?

Um projeto feito a várias mãos é sempre um desafio, e a colaboração com muitos parceiros torna o processo mais complicado de gerir, porque é necessário dar resposta a necessidades e públicos muito diferentes. Mas sabemos que um bom trabalho cultural consiste em misturar o invulgar e pôr em contacto diferentes públicos. Isto pode levar a experiências emocionantes. As temáticas abordadas no KULTURfest 2025 - reunificação/divisão da Alemanha e da sua sociedade; migração; papel das mulheres - mantêm-se. Já a forma como abordamos os temas nas diferentes cidades varia. Em cada cidade por onde o KULTURfest 2025 vai passar, a oferta é diferente e adaptada aos parceiros locais, aos espaços que nos acolhem, que têm as suas especificidades e constrangimentos. O programa do KULTURfest não é, por isso, só um. É um programa adaptado a cada cidade e a cada realidade, e onde os elementos funcionam tanto em conjunto, como também de forma isolada.

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“Zwei zu Eins” (Natja Brunckhorst, 2024): exibido no 28 de abril, pelas 21h30, na Casa Comum | Universidade do Porto

Num momento em que a Europa volta a confrontar-se com temas como fronteiras, migração e identidade, de que forma o KULTURfest aborda estas questões, nomeadamente a (e)migração, sem cair em leituras simplistas ou mensagens unidimensionais? 

Estes são temas que nunca deixam de ser atuais e que são recorrentes no trabalho do Goethe-Institut por todo o mundo. Acreditamos que o intuito do festival é trazer à tona discussões aprofundadas sobre este e outros temas de interesse contemporâneo, construindo senso crítico e dando voz a diferentes experiências e concepções.   

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias ofertas do festival. Um programa de filmes e debates tenta abordar por que razão as duas Alemanhas ainda não se uniram completamente, mesmo 35 anos após a reunificação, o que levou a que uma parte da Alemanha hoje apoie um partido com fortes tendências antidemocráticas. O programa de exposições e debates foca-se no tema da migração, tanto no passado quanto no presente. Também temos propostas que convidam o público a discutir temas que há 100 anos também eram muito presentes, como é o caso da conversa sobre o autor Thomas Mann, onde se reflete sobre a resistência artística no passado e no presente. Isto, no entanto, sem esquecer que o KULTURfest continua a ser um festival cultural na sua essência. 

Na seleção cinematográfica nota-se uma forte presença de comédias e sátiras. Esta escolha reflete uma tendência no cinema germânico contemporâneo de lidar com a realidade através do humor, ou é também uma forma deliberada de provocar reflexão sem recorrer ao dramatismo? 

O cinema de expressão alemã não é conhecido por lidar com a realidade de forma humorística e leve. Durante o KULTURfest, foi importante podermos mostrar que existe uma maior variedade no cinema de expressão alemã, provar que existem ofertas para todos os gostos, o que contraria um pouco o estigma mais “pesado”. Os filmes que escolhemos para esta edição apresentam diversas formas de abordar a realidade (e a história), como é o caso do filme de abertura no Porto e em Lisboa, “Dois por um” (“Zwei zu Eins”), uma comédia mais “feel good”, mas ao mesmo tempo honesta sobre a reunificação alemã, e que junta um elenco de luxo, onde se destaca Sandra Hüller (“Anatomie d'une chute”). Já o filme de encerramento no Porto, “Veni vidi vici” (Daniel Hoesl e Julia Niemann, 2024) é uma sátira política austríaca bastante forte. Pode-se observar de facto um “talento especial” para este género no cinema austríaco, com realizadores como Ulrich Seidl (que produziu o filme em questão), e um humor bastante sarcástico e ácido, que é usado para refletir sobre questões pesadas da nossa sociedade.

O KULTURfest surge no rescaldo do desaparecimento do KINO – Festival de Cinema de Expressão Alemã. Este novo festival procura ocupar esse espaço ou representa uma evolução com um escopo mais alargado e interdisciplinar? 

O KULTURfest tem origem não só na mostra de cinema KINO, mas também no festival de jazz europeu JIGG – Jazz im Goethe-Garten. Devido aos graves cortes orçamentais no setor cultural alemão, ambos os festivais deixaram, infelizmente, de existir. A dimensão de ambos os festivais também significava que dificilmente conseguíamos não só explorar outros géneros, mas também levar estes festivais a outras cidades, dado que ambos os festivais se realizavam principalmente em Lisboa. O KULTURfest é, por isso, uma oportunidade de explorar algo novo – tanto em termos de formato e de temas, como de locais.  

Ambições para a terceira edição ou futuras? 

As nossas ambições são sempre muito elevadas, claro. Temos muitas ideias, muitos artistas e projetos que gostaríamos de trazer até Portugal, colaborações e conversas que gostaríamos de incentivar. Mas vamos primeiro avaliar como corre esta edição, e depois refletir sobre o mesmo. Também caberá aos nossos parceiros e patrocinadores fazerem a mesma avaliação e decidir se estão interessados em apoiar-nos no futuro. 

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8º Porto Femme : Seis dias para confirmar que o Cinema e as Mulheres não são antípodas.

Hugo Gomes, 06.04.25

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Ladies (Mykaela Plotkin, 2024)

Falemos de mulheres, com “M” grande, se faz favor — não apenas como um elemento no nosso discurso, mas celebrando-as como parte intrínseca do Cinema. Aliás, faremos dois festejos num só gesto: Mulheres e Cinema. O Porto Femme International Festival prova essa capacidade, mantendo um perpétuo memorando de que não existe Cinema sem Mulheres, nem Mulheres sem Cinema, e como tudo o que o Cinema dispõe na nossa “mesa”, as mulheres fazem parte da sua natureza. Mas convém fazer o disclaimer: não se trata apenas de mulheres - trata-se de Cinema de, com e na maestria das Mulheres - filmes, workshops, homenagens, ciclos e outras atividades encherão o Porto com toda a sua feminilidade, feminismo, performance, experimentalidade, perspectivas e olhares — vários e multiplicados.

Este ano, na sua 8.ª edição, o Porto Femme (de 7 a 13 de Abril) providenciará vénias, e muitas, a Rita Azevedo Gomes, ou uma narrativa fora dos cânones com o ciclo “A História do Mundo Segundo uma Lésbica”. Da Batalha Centro de Cinema aos Maus Hábitos, Passos Manuel à Casa Comum, da Universidade Lusófona com trajeto às MIRA Galerias, todos espaços de braços abertos a uma programação rica e envolvente com animação, documentário, ficção, experimentação, classicismo a até ao disruptivo.

Rita Capucho, produtora, curadora e diretora artística do festival, aceita mais uma vez o convite do Cinematograficamente Falando… para desvendar mais uma edição com Mulheres no centro, de fora e de dentro, e o Cinema como a matéria que as une.

Como é que o Porto Femme International Film Festival tem contribuído para dar visibilidade ao trabalho feminino no cinema desde a sua criação em 2018 e que novos desafios trará esta nova edição?

O Porto Femme nasce com a missão de dar visibilidade ao cinema feito por mulheres. Um festival de cinema é sempre um espaço de reconhecimento, mas um festival de género, como o Porto Femme, tem o propósito específico de destacar filmes realizados por mulheres e pessoas não binárias, assim como obras de realizadores de qualquer género que abordem temáticas relevantes ou contem com equipas com representação feminina.

A exibição dos filmes permite dar a conhecer as visões artísticas das cineastas e aproximá-las do público. A seleção e premiação em festivais conferem visibilidade e reconhecimento à qualidade artística dos trabalhos apresentados. Para além das exibições, o festival promove conversas e mostras que criam espaços de diálogo e reflexão. A cada edição, procuramos melhorar a proposta do festival, questionando sempre como podemos torná-lo mais inclusivo e representativo da diversidade. A curadoria é feita com o objetivo de exibir uma ampla variedade de narrativas e linguagens cinematográficas. Esta nova edição reflete sobre como podemos continuar a ser esse espaço de visibilidade e de que forma podemos aprimorar essa missão.

Um dos grandes destaques deste ano é a homenagem à cineasta Rita Azevedo Gomes. Que elementos distintivos marcam a sua filmografia e como é que o festival pretende celebrá-los?

Rita Azevedo Gomes é uma artista que merece todas as homenagens. Ao longo da sua carreira, explorou diversas áreas artísticas, do cinema ao teatro, passando pela ópera e pelas artes gráficas. A sua filmografia é única no panorama do cinema português, marcada por uma singularidade que nos prende e fascina. Os seus filmes dialogam com outras artes, criando um universo cinematográfico profundamente visual e sensorial.

Como refere Rita Benis no seu texto de homenagem, os filmes de Rita Azevedo Gomes distinguem-se pelo "assombro convulsivo da beleza e dos amantes". São mais de 16 obras que deixaram uma marca no cinema português. A nossa homenagem será simples, mas sentida. Exibiremos “Altar (2003), seguido de uma conversa com a cineasta, moderada por Rita Benis. Será um momento de celebração da sua obra, trazendo a beleza do seu cinema para a tela do Porto Femme.

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Sobre "Altar", o filme escolhido para ser exibido no contexto de homenagem à Rita Azevedo Gomes, com que critérios foi seleccionado a obra para representar a realizadora?

A escolha de “Altar” baseou-se na vontade de exibir um filme menos conhecido da Rita Azevedo Gomes, proporcionando ao público a oportunidade de descobrir uma obra que reflete profundamente a sua liberdade artística. “Altar” nasceu de um gesto de criação pura, feito sem apoios institucionais, onde a realizadora pôde explorar plenamente a sua visão estética e narrativa. Esse ato de independência e experimentação toca-nos especialmente, pois representa o compromisso da cineasta com a arte na sua forma mais livre.

Além disso, Altar insere-se numa linha temática recorrente na obra de Rita Azevedo Gomes, explorando o amor na juventude, tal como em “O Som da Terra a Tremer” (1990) e “Frágil Como o Mundo” (2002). Trata-se de um filme experimental de uma beleza arrebatadora, que traduz com intensidade o lirismo e a profundidade emocional que caracterizam a sua filmografia.

O programa especial "A História do Mundo Segundo uma Lésbica" propõe um olhar sobre a representação lésbica no cinema. De que forma esta selecção de filmes contribui para a expansão das fronteiras do cinema queer?

O programa "A História do Mundo Segundo uma Lésbica" representa um marco especial na visibilidade do cinema lésbico, especialmente por decorrer no mês da Visibilidade Lésbica. Esta seleção propõe um percurso cinematográfico que atravessa décadas e geografias, resgatando obras fundamentais que ajudaram a moldar e a desafiar as representações da experiência lésbica no ecrã.

A mostra que Joana de Sousa apresenta é uma constelação de gestos queer que percorre obras experimentais, narrativas e documentais, ecoando entre gerações e geografias. Será possível assistir a trabalhos pioneiros de realizadoras como Barbara Hammer e Su Friedrich, que reinventaram a linguagem do cinema lésbico, até às perspetivas contemporâneas de cineastas como Cris Lyra, Ritó Natálio, Inês Ariana Pereira, Tatiana Ramos e Chantal Partamian. Mais do que estabelecer definições, esta mostra expande as fronteiras do cinema lésbico ao dar espaço à multiplicidade de vozes, estilos e olhares, reafirmando que o cinema queer é um território em constante construção, transformação e reinvenção.

Para além das exibições de filmes, o Porto Femme oferece workshops e oficinas. Como poderão estas actividades complementar a experiência do festival e incentivar a participação do público?

Desde a primeira edição, o Porto Femme aposta na formação como parte essencial do seu projeto educativo. As oficinas, orientadas por realizadoras, distribuidoras, programadoras, argumentistas, diretoras de arte e animadoras, criam um espaço de partilha de conhecimentos e de aprendizagem. Estas atividades complementam a experiência do festival ao promoverem a troca de experiências, permitindo que participantes absorvam diferentes visões e formas de criação, ampliando horizontes. A formação oferecida não só enriquece quem deseja aprender mais sobre cinema, como também incentiva a experimentação e a colaboração, tornando o festival um espaço ainda mais inclusivo e dinâmico.

A parceria com o Goethe-Institut Portugal e a curadoria de Joana de Sousa reforçam a dimensão internacional do festival. De que modo a programação do Porto Femme tem vindo a consolidar-se como um evento de referência global para o cinema feito por mulheres?

Esta é uma edição especial para o Porto Femme, pois, pela primeira vez, conta com o apoio do ICA, um reconhecimento que fortalece a identidade do festival e valida a importância deste projeto no panorama cinematográfico nacional. Além disso, o apoio do Goethe-Institut Portugal e da Portugal Film Commission reforça a sua relevância e a sua projeção internacional.

Acreditamos que o festival tem vindo a consolidar-se como um evento de referência global ao longo dos anos, não só pela qualidade e identidade da sua programação, mas também pelo estabelecimento de parcerias estratégicas que o fortalecem. A colaboração com instituições de prestígio e a presença de profissionais reconhecidos, como Joana de Sousa na curadoria, demonstram o compromisso do Porto Femme em apostar na qualidade e ampliar o alcance do cinema feito por mulheres e pessoas não binárias.

Quebramar (Cris Lyra, 2019)

Greetings from Africa (Cheryl Dunye, 1994)

Rote Ohren Fetzen Durch Asche / Flaming Ears (Ursula Pürrer, Dietmar Schipek, Ashley Hans Scheirl) 1991

 

A exposição fotográfica "Invisibilidades" surge como um espaço para artistas mulheres e não-binárias. Qual a relevância deste tipo de iniciativa num festival que procura dar palco a vozes sub-representadas no cinema?

Desde a primeira edição, a secção expositiva do Porto Femme tem sido um espaço de diálogo entre o cinema e outras formas de expressão artística, como a pintura, a instalação, a videoarte e a fotografia. O objetivo é criar um cruzamento de linguagens que amplie as possibilidades de representação e visibilidade das artistas.

A exposição Invisibilidades reúne mais de 100 obras de diferentes geografias e perspetivas sobre o tema da invisibilidade, oferecendo um espaço de encontro entre diversas artistas e modos de expressão. Ao integrar esta iniciativa na programação do festival, o Porto Femme reforça o seu compromisso com a inclusão e a valorização de vozes sub-representadas, promovendo um olhar mais amplo e diversificado sobre a arte feita por mulheres e pessoas não-binárias.

Toda a programação aqui

O Cinema Marginal reclama o grande ecrã. Arranca o 4º Outsiders - Ciclo de Cinema Independente Americano

Hugo Gomes, 10.03.25

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"Ghostlight" (Kelly O'Sullivan & Alex Thompson, 2024): filme de encerramento

Cinema Independente ou Cinema Marginal Americano? Ambas as designações parecem fundir-se numa só vertente: o cinema americano fora do glamour, longe dos orçamentos mastodônticos e, muitas vezes, distante dos elencos estelares que garantem distribuição e divulgação. Este ano, Sean Baker, um dos protagonistas da independência americana nos últimos tempos, ergueu quatro estatuetas da Academia, incluindo as de Realizador e Filme, discursando sobre a importância deste seu cinema sempre em luta. A vitória ecoou, mas poderá ter embatido numa parede, pois, longe do brilho de “Anora”, muitas obras continuam a resistir para alcançar um resíduo de luz, e isso não mudará com palavras em palco.

Criado há quatro anos, Outsiders - Ciclo de Cinema Independente Americano surge com um propósito claro: revelar autores e filmes que, de outra forma, escapariam ao olhar da cinefilia portuguesa. De 11 a 16 de março, no Cinema São Jorge [Lisboa] serão apresentados doze filmes de produção independente, este ano centrados na relação com o “outro”. Mas qual “outro” é que falamos?

O Cinematograficamente Falando... solicitou ao programador Carlos Nogueira não apenas uma justificação, como também um guia para esta edição—uma mostra sem competição, onde o Cinema (com C grande, se faz favor) se exibe em plena liberdade. Há ‘velhotas’ em ação, caçadoras de fantasmas, Shakespeare improvisado e até bolinhos da sorte, cinema americano na margem, mas igualmente no centro do mundo.

O festival Outsiders, para além das interpretações que possam ser feitas da sua programação e seleção, sempre assumiu o propósito de ser uma resposta à ineficiência da distribuição nacional. É correto encarar o Outsiders dessa forma?

Prefiro ver o Outsiders como um complemento. Nos últimos anos assistimos a uma transformação radical da distribuição, com o surgimento em força das plataformas de streaming, e a sobrevivência difícil das salas. Os festivais e as pequenas mostras convivem, melhor ou pior, com esse rebuliço, mas também eles têm as suas prioridades ou não têm a capacidade de suprir as falhas da distribuição comercial. É aí que entra o Outsiders.

Ainda no seguimento da questão anterior, antes de falarmos da programação e dos destaques desta 3ª edição: porque é que filmes como “Thelma” (filme de abertura deste ano) ou “Ghostlight” não tiveram qualquer tipo de distribuição em Portugal (seja em sala, VOD ou streaming), apesar da boa recepção e do destaque no seu país de origem?

As razões parecem misteriosas, mas, na verdade, há explicações para isso: o cinema independente não tem a vida facilitada à nascença, tem de lutar para entrar nos circuitos de distribuição. A redução drástica do número de salas provocou um afunilamento das estreias comerciais e é inevitável que os filmes que não têm uma distribuidora major fiquem para trás. Os canais de streaming compram frequentemente por atacado, sem grande critério.

MV5BMjMzNTUyNDUzMF5BMl5BanBnXkFtZTgwMDg3NTAyNzM@._Light from Light (Paul Harrill, 2019): exibido no dia 12 de Março

Um dos pontos fortes do Outsiders é a vinda de um realizador ou autor independente que, muitas vezes, é esquecido, ignorado ou simplesmente desconhecido pelo público português, incluindo a cinefilia e a elite cultural. Como é feita a escolha do convidado? No caso de Paul Harrill, o realizador desta edição, o que nos pode dizer sobre ele e o que poderá acrescentar à cinefilia portuguesa?

A escolha do convidado é muitas vezes fruto do acaso. Depois de algumas hesitações iniciais, acabámos por optar pelo modelo de ter apenas um convidado que não só apresenta e debate com os espectadores o seu ou os seus filmes, como também dá uma masterclass. Até agora tivemos muita sorte com os convidados escolhidos (que variaram entre o "consagrado" cineasta indie Joe Swanberg, o jovem prodígio Jack Fessenden e o "segredo bem guardado" Patrick Wang), que mostraram grande disponibilidade para interagir com a audiência e participar nas actividades do festival. 

Este ano teremos mais uma revelação para o público português: Paul Harrill, cineasta de Knoxville (Tennessee), que vem construindo discretamente há mais de dez anos uma obra notável, centrada em personagens insatisfeitas e em busca de si próprias, que por vezes encontram a paz, mesmo que temporária, na religiosidade doméstica. O seu cinema não podia ser mais diferente daquilo a que estamos habituados a identificar como o cinema indie.

Este ano, com a vitória de “Anora” nos Óscares e o discurso de Sean Baker, intensificou-se a discussão sobre o cinema independente americano. Como programador de cinema desta estirpe, acredita que este reconhecimento pode “abrir portas” a mais filmes independentes, ou o triunfo da estatueta acaba por desvalorizar a sua condição marginal?

Não, infelizmente. É verdade que o cinema independente espreita às vezes pelas portas entreabertas dos Óscares (“Moonlight”, “Anora”...) e de outras festividades dos "grandes e poderosos", mas são epifenómenos de curta duração.

Na sua nota de intenção, referiu que a seleção de filmes deste ano debate a visão do “outro” – ou melhor, dos “outros” que compõem os EUA. Considerando o atual panorama político do país e o caminho que se prevê para o futuro, como é que esses filmes abordam os “outros” e as suas relações dentro dessa realidade?

Este ano, o tema do "outro" impôs-se muito cedo, no início da fase de selecção. Os primeiros títulos que me surgiram pareciam reflectir, de alguma maneira, determinadas preocupações da América actual, como o controlo da imigração, a luta das minorias, ou os inimigos no interior. Daí que me tenha parecido interessante centrar o ciclo deste ano na procura dos "outros" que estão na origem dos medos contemporâneos.

Acredita que estes filmes ganharão uma nova vida dentro da cinefilia portuguesa depois de passarem pelo Outsiders?

Acredito que haverá descobertas surpreendentes; muitos dos filmes são primeiras obras e o público mais atento ficará com curiosidade em seguir a obra futura de alguns dos realizadores. Tal como numa exposição, em que as obras são expostas pela afinidade que têm entre si, as pessoas ganharão em ver mais do que um filme, uma vez que há paralelismos que se estabelecem e muitos dialogam entre si.

"Ingrid Goes West" (Matt Spicer, 2017): dia 14 de março

"Fremont" (Babak Jalali, 2024): dia 15 de março

"Thelma" (Josh Margolin, 2014): filme de abertura

 

Quais são as ambições futuras para o Outsiders?

Gostaria que o Outsiders consolidasse o seu lugar como uma mostra que faz a diferença no panorama dos festivais nacionais. Estou satisfeito com o seu modelo presente (filmes inéditos, relativamente recentes, selecção com curadoria, presença de um convidado) e não vejo a necessidade de grandes transformações.

A principal ambição é que ele chegue a um público mais vasto. O crescimento que tivemos no ano passado faz-me acreditar que estamos no bom caminho.

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Cine Amadora chega à 2ª edição! Fazer da cidade a "grande tela do cinema lusófono".

Hugo Gomes, 05.03.25

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"Manga d'Terra", de Basil da Cunha, exibido no dia 6 março

Procurando na cidade da Amadora, a sua história, a sua língua… ou melhor, as suas línguas, e, transversalmente, o seu cinema, o Cine Amadora aposta em ser mais do que uma mera montra de filmes, e sim, a pretensão de transformar o cinema numa ferramenta de proximidade, numa ponte cultural e social, num evento que transcende estâncias e conformidades. 

Na sua segunda edição, que decorrerá entre 6 e 9 de março, com entrada livre nos Recreios da Amadora, Eron Quintiliano, diretor artístico do festival, revelou ao Cinematograficamente Falando … o que esperar deste regresso — e as suas ambições de tornar o evento um cantinho afetivo desta cidade, distanciando-a culturalmente do cognome de “subúrbio de Lisboa”. Porque há vida na Amadora, e logicamente, Cinema!

O Cine Amadora tem vindo a afirmar-se como um espaço de resistência e celebração do cinema lusófono. O que diferencia esta segunda edição da anterior?

O Cine Amadora mantém o seu compromisso com a valorização do cinema em língua portuguesa, mas, nesta segunda edição, aprofundamos ainda mais as nossas temáticas e ampliamos a programação. Um dos grandes diferenciais desta edição é o reforço da presença de realizadoras, consolidando a missão de dar visibilidade ao trabalho das mulheres na sétima arte. Além disso, expandimos as ações de formação de públicos com debates, com um olhar mais atento para o diálogo intergeracional e o acesso democrático à cultura, através de sessões direcionadas para escolas e seniores. Esta edição também se fortalece através das colaborações institucionais, como a Carta Branca à Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) e a parceria com outros festivais lusófonos, ampliando a rede de circulação de filmes.

A cidade da Amadora é frequentemente retratada através de estereótipos, maioritariamente desabonadores. De que forma o festival procura desconstruir essas narrativas e apresentar um outro olhar sobre este território?

A Amadora é um território vibrante, diverso e cheio de talento, mas muitas vezes a sua imagem é moldada por estereótipos negativos. O Cine Amadora nasce exatamente da necessidade de contrariar essas narrativas redutoras, apresentando a cidade como um pólo de criação e exibição cinematográfica. A curadoria do festival privilegia histórias que refletem essa pluralidade cultural, mostrando a Amadora como um espaço de encontros, onde diferentes trajetórias e experiências coexistem. A nossa equipa e parcerias trabalham diretamente com comunidades, escolas e coletivos artísticos, há um sentimento de pertença e envolvimento ativo com o público. 

  • "Césaria Evóra", de Ana Sofia Fonseca (dia 9 de março)
  • "Pedágio", de Carolina Markowicz (dia 7 de março)
  • "Big Bag Henda", de Fernanda Polacow (dia 8 de março)

 

O cinema é diversas vezes visto como uma ferramenta poderosa de transformação social. Que impacto espera que o Cine Amadora tenha na comunidade local e no panorama cinematográfico lusófono?

O impacto do Cine Amadora ocorre em várias frentes. No plano local, queremos criar uma relação contínua entre a cidade e o cinema, democratizando o acesso e fomentando o gosto pela sétima arte, especialmente entre os jovens. Com as sessões gratuitas e direcionadas a diferentes públicos, tornamos a experiência cinematográfica acessível a todos, promovendo um diálogo aberto sobre as narrativas que nos representam.

No contexto lusófono, o festival atua como uma plataforma de visibilidade para filmes que muitas vezes encontram dificuldades de circulação. Ao criar pontes entre cineastas, festivais e públicos de diferentes países, o Cine Amadora contribui para o fortalecimento da produção cinematográfica em língua portuguesa.

A programação deste ano reforça o protagonismo das realizadoras e a luta contra as desigualdades de género na sétima arte. Que desafios ainda persistem para que o cinema feito por mulheres deixe de ser visto como um nicho?

Apesar dos avanços na representatividade feminina no cinema, persistem desafios estruturais. As mulheres ainda encontram dificuldades de acesso a financiamento e distribuição, além de enfrentarem barreiras invisíveis na construção das suas carreiras. O Cine Amadora procura contrariar essa tendência, promovendo um espaço de visibilidade e reflexão sobre a desigualdade de género no setor. Ao colocar realizadoras em destaque, procuramos normalizar a presença feminina atrás das câmaras e incentivar a próxima geração de cineastas a ocupar estes espaços com mais força e legitimidade.

O Cine Amadora não se limita à exibição de filmes, mas aposta também na formação e no intercâmbio cultural. Como vê a importância dessa vertente educativa dentro do festival?

A dimensão educativa do Cine Amadora é essencial. Para além da exibição de filmes, oferecemos workshops e encontros com realizadores, criando um espaço onde o público pode consumir cinema, e também compreendê-lo, discuti-lo e, quem sabe, produzi-lo. Acreditamos que um festival de cinema deve ser um catalisador para a criação de uma comunidade cinéfila ativa e engajada. Nesse sentido, o intercâmbio cultural é um dos eixos centrais do festival, promovendo ligações entre criadores lusófonos e estimulando a colaboração entre diferentes geografias e perspetivas.

Com sessões dedicadas a públicos específicos, como escolas e seniores, o festival reforça a democratização do acesso à cultura. Como tem sido a resposta do público a essa abordagem?

A resposta tem sido positiva. As sessões para escolas, deverão ser momentos de envolvimento e debate, onde os alunos descobrem novas cinematografias e são incentivados a refletir criticamente sobre as histórias que consomem.

As sessões dedicadas aos seniores buscam proporcionar um espaço de encontro e memória, onde a sétima arte funciona como um elo entre diferentes gerações. Para nós, este tipo de programação amplia o público do Cine Amadora, reforçando a importância do cinema como ferramenta de inclusão e partilha intergeracional.

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"Chelas nha kau" do coletivo Bataclan 150, dia 9 de março

Gostaria que nos falasse sobre as parcerias do Cine Amadora com outras instituições [MUTIM] e festivais [Olhares do Mediterrâneo, MICAR], em particular a ligação à Escola Superior de Teatro e Cinema, que nesta edição recebe uma carta branca para apresentar uma seleção de trabalhos dos seus alunos.

A colaboração com a Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) é um dos pilares do Cine Amadora. Ao conceder-lhes uma Carta Branca, reconhecemos o papel essencial da ESTC na formação de novos talentos do cinema português.

É especialmente simbólico poder exibir uma curta-metragem de Leonor Teles, uma cineasta que deu os seus primeiros passos na ESTC e que hoje é um nome incontornável do cinema nacional. Com esta parceria, criamos um circuito de visibilidade para jovens realizadores, reforçando o compromisso do Cine Amadora em fomentar a renovação do cinema lusófono.

Depois de um ano zero experimental e uma primeira edição de consolidação, o que podemos esperar do futuro do Cine Amadora? Há planos para expandir a mostra para além dos Recreios da Amadora? Extensões ou itinerâncias?

Neste momento, não temos planos para expandir o Cine Amadora para além da cidade, mas sim reforçar a mostra e consolidar a Amadora como a grande tela do cinema lusófono. O nosso foco está em fortalecer a programação, aprofundar as parcerias e continuar a atrair novos públicos e profissionais do sector. Para o futuro, pretendemos ampliar o festival no sentido de introduzir sessões competitivas, permitindo a participação de filmes inesperados e representativos de todos os países de língua portuguesa. Acreditamos que a produção cinematográfica tem crescido significativamente, mas muitas dessas obras encontram dificuldades em alcançar o seu espaço e distribuição. Queremos descobrir e dar visibilidade a esses filmes, oferecendo um palco onde possam ser vistos e reconhecidos.

A expansão dentro da própria cidade está também nos nossos planos, assim como a possibilidade de extensões itinerantes, levando o festival a novos territórios e públicos e reforçando a nossa missão de tornar o cinema mais acessível e diversificado.

Queremos que o Cine Amadora continue a fortalecer-se como uma plataforma essencial para o cinema lusófono, promovendo novas narrativas, estimulando a reflexão crítica e, acima de tudo, fazendo da Amadora um centro vibrante da sétima arte.

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Tertúlia oscarizada!

Hugo Gomes, 24.02.25

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Óscars!! Lá vamos nós! Amanhã (25 de Fevereiro) haverá tertúlia entre os críticos da Metropolis (Jorge Pinto e eu) e da Tribuna do Cinema (Rafael Fonseca, Rita Cadima de Oliveira, David Bernadino, André Filipe Antunes e Pedro Barriga), com moderação de Rui Pedro Tendinha, na FNAC Chiado. Pelas 18h30. Entrada livre. Apareçam e levem pompons.