"First Date", a curta de Luís Filipe Borges
É no ponto mais alto do território português que se dará lugar o Montanha Pico Festival (3 a 30 de janeiro), uma iniciativa da MiratecArts que visa transgredir a ideia convencional de festival como simples mostra de filmes, entendendo que, a partir deste lugar singular, há espaço para debater o futuro e explorar soluções para o universo audiovisual. Sob a vigilância do “gigante adormecido”, o Pico que empresta o nome à ilha, ao cinema e aos filmes, a tela será novamente palco para histórias que vão além do visual, incentivando tanto o público fiel quanto os recém-convertidos ao simples e poderoso ato de “ir ao cinema”. Um gesto cada vez mais desprezado no continente, onde o cinema se tornou um mero “despacha-tempo” momentâneo, e na ilha, onde a escassez de propostas de projeção transforma esse mesmo ato numa forma de resistência.
Nesta edição, temos a evocação de Natália Correia e o regresso da realizadora, muitas vezes esquecida, Rosa Coutinho Cabral, que abrirá as "honras da casa" [toda a programação aqui]. A grande atração será a estreia da curta-metragem “First Date”, de Luís Filipe Borges, com Cristóvão Campos e Ana Lopes (que não é estranha a este ambiente), e que será apresentada pela primeira vez ao grande público. Mas antes disso, de Correia por Cabral, de romances no Pico, teremos um encontro entre críticos e jornalistas de cinema (o Cinematograficamente Falando … estará presente) para debater o papel fundamental da crítica na divulgação e no percurso das suas obras, dos primeiros passos até os “altos voos”. Quem sabe o que surgirá dessa conversa?
O anfitrião Terry Costa, diretor artístico do Montanha Pico Festival, aceitou o convite do evento para partilhar as suas reflexões e revelar o que podemos esperar desta edição, que, embora tenha como epicentro a ilha cinematográfica do Pico, visa unificar os Açores no panorama audiovisual.
Terry, como director artístico do Festival Montanha, qual foi o maior desafio em criar e manter um festival tão singular como este, focado na montanha mais alta de Portugal e nas questões culturais e ambientais ligadas às montanhas?
O Montanha Pico Festival, ou simplesmente Festival Montanha, realiza-se desde 2015. Anualmente, no mês de janeiro, os ecrãs da ilha acolhem uma seleção diversificada de obras, desde curtas e longas-metragens a documentários, ficção e vídeos experimentais, todos com um tema em comum - a cultura das montanhas ou cenários montanhosos.
Desde 2022, o festival conta com um programa adicional intitulado “Made in Azores”, que celebra produções locais. Contudo, o maior desafio tem sido o financiamento, sobretudo no que toca a apoiar a presença de equipas de outras ilhas ou cineastas estrangeiros interessados em participar, algo que gostaríamos de fazer de forma mais consistente.
O festival é aberto ao público e com entrada gratuita, numa tentativa de atrair as audiências para descobrirem algo novo e inesperado. Sem grande apoio promocional, como anúncios televisivos, convencer as pessoas a saírem de casa e dirigirem-se aos auditórios da ilha para assistirem a obras desconhecidas é sempre um desafio, mas um que encaramos com entusiasmo e dedicação.
"Os Caçadores", de David Pinheiro Vicente, será uma das muitas curtas exibidas no festival
O Montanha Pico Festival tem recebido atenção internacional, incluindo a nomeação para os Iberian Festival Awards. Que impacto tem esta visibilidade para o festival e, mais importante, para a ilha do Pico?
Sempre que somos mencionados fora do arquipélago, surge inevitavelmente a pergunta: Onde fica isso? Não importa quantos milhões sejam investidos na promoção das ilhas, haverá sempre quem ainda não as conheça. Os projetos culturais e artísticos, como os festivais, desempenham um papel crucial, não apenas em dar visibilidade às ilhas, mas também ao abrir portas para o mercado cultural, que cada vez mais valoriza e investe nos destinos que descobre. Quando um festival é destacado em listas de prémios internacionais, atrai a atenção de profissionais do setor, que pesquisam e, no processo, aprendem mais sobre os Açores.
Sendo o turismo de montanha um tema central nas discussões do festival, que papel acredita que o Montanha Pico Festival desempenha no incentivo ao turismo sustentável e no diálogo entre cultura e natureza?
Quando temos este tipo de conversa no festival, que alternamos ao longo dos anos, os pontos finais acabam sempre por convergir no mesmo resultado. Sim, queremos turismo. Sim, queremos preservar estes cantinhos do mundo que ainda se consideram paraísos. Mas como receber mais visitantes sem comprometer a natureza?
Nas conversas anteriores, discutiu-se bastante a ideia de implementar taxas para visitantes, algo que ainda não é generalizado nos Açores. Na ilha do Pico, por exemplo, já existe uma taxa significativa para quem pretende subir a montanha mais alta de Portugal, precisamente porque há limitações quanto ao número de pessoas que podem usufruir desse espaço. Será esse o caminho para todo o turismo? Cobrar mais e mais? Ou, talvez, devemos incentivar um turismo mais consciente, que valorize e invista em locais frágeis como ilhas, e especialmente numa montanha isolada no meio do Oceano Atlântico?
O festival levanta essas questões e apresenta filmes que provocam reflexão e estimulam conclusões sobre como garantir um futuro melhor. Se conseguirmos aprender com locais que já enfrentaram esta fase de aumento exponencial de turismo, talvez possamos adotar um caminho diferente, mais sustentável. Assim, será possível alcançar um sucesso duradouro sem comprometer irremediavelmente a natureza.
O programa "Made in Azores" tornou-se um pilar do Montanha Pico Festival. O que o motivou a incluir esta secção, e como tem percebido a recepção do público em relação às produções açorianas?
Com o programa “Made in Azores”, criamos uma oportunidade para que os trabalhos produzidos nas ilhas conseguissem chegar aos grandes ecrãs na ilha. Ano após ano, mais produtoras participaram, e em 2023 produzimos o primeiro Encontro Audiovisual Açoriano devido à necessidade de as equipas conhecerem-se e desta forma aprenderem mais sobre o que se faz nos Açores.
O II Encontro Audiovisual Açoriano traz à ribalta talentos regionais e as suas narrativas. Na sua opinião, quais os maiores desafios e oportunidades enfrentados pelo audiovisual açoriano atualmente?
Nas ilhas, há poucas infraestruturas e equipamentos dedicados ao cinema e ao audiovisual. Estamos melhores hoje do que há 10 anos, mas ainda assim, é sempre um desafio para produções maiores conseguirem realizar os seus projetos nos Açores. E, claro, temos o clima instável, que, por um lado, pode ser uma vantagem para a produção, mas também pode facilmente arruinar bons dias de trabalho. Na edição de 2025, apresentamos a segunda edição do Encontro Audiovisual, um evento no qual vamos tentar responder a algumas das questões mais prementes do setor, como, por exemplo, como levar trabalhos produzidos nos Açores, por açorianos, até o continente português. No Encontro, vamos explorar e debater muitos outros desafios. Tenho a certeza de que será um evento muito enriquecedor.
Com Rosa Coutinho Cabral a abrir a edição de 2025, como é feita a curadoria para garantir que filmes como “A Mulher que Morreu de Pé” dialoguem tanto com o público local como com as temáticas globais abordadas pelo festival?
Os projetos apresentados no programa “Made in Azores” podem não ter a temática diretamente ligada à montanha. No entanto, em termos artísticos e poéticos, todos são, de certa forma, “projetos montanhosos”, pois são criados por equipas da região.
Ao promover obras como “First Date”, de Luís Filipe Borges, como avalia a importância de contar histórias contemporâneas e diversificadas sobre o Pico, e gostaria que falasse da ilha enquanto cenário cinematográfico?
As ilhas são cenários fantásticos para todo o tipo de histórias, com ou sem sol, com ou sem bruma (chuviscos). Fundámos o Prémio Curta Pico especificamente para incentivar a criação de histórias que tenham a ilha-montanha como ponto central. O projeto de Luís Filipe Borges, “First Date”, venceu a primeira edição do prémio, pois a história só poderia ser realizada na ilha do Pico. Assim, a sua qualificação com nota alta foi essencial para garantir o apoio, e esperamos que o público abrace a sua antestreia, permitindo que o realizador receba um feedback valioso antes de lançar a obra para o mundo.
Terry Costa (à direita) com o realizador Luís Filipe Borges (segunda pessoa à esquerda) na entrega do Prémio Curta Pico.
O festival celebra também o cinema como forma de diálogo entre crítica, jornalismo e público. Como é que este formato, com paineis e debates, enriquece a experiência dos participantes e cria impacto duradouro? Já agora, como vê a relação da crítica de cinema com a cinematografia açoriana?
As questões colocadas pelos colaboradores são o que incentivam os painéis. Este ano, conseguimos reunir um painel com representantes de órgãos de comunicação social, o que nos dará a oportunidade de conversar sobre esses temas e como eles se relacionam com as produtoras locais. Por que é que um filme recebe mais atenção do que outro? Como chegar aos críticos? Como pode uma obra independente, produzida numa ilha, chegar à capital? Estamos a falar de um setor ainda muito jovem nas ilhas. Como podemos ajudar a elevar e incentivar o desenvolvimento de um futuro mais próspero para esta indústria – essa é a questão.
Por fim, qual é a sua visão para o futuro do Montanha Pico Festival? Existem planos para expandir a programação, incluir novos formatos ou aprofundar ainda mais as questões ambientais e culturais globais?
Existem festivais deste género em todo o mundo. Ainda não fazemos parte da rede de festivais de montanha, mas esse é um dos nossos objetivos. Para alcançá-lo, precisamos de aumentar o orçamento dedicado ao projeto, de forma a expandir a nossa presença internacional. Já conseguimos garantir os filmes, mas ainda há muito trabalho a ser feito para atrair cineastas e documentaristas. Em termos locais, quando as produtoras começarem a produzir com o objetivo de fazer parte do programa principal do festival, com a temática montanha, então alcançaremos um patamar de sucesso similar ao que invejo no Festival de Trento, onde todos os italianos querem participar e produzem para o festival. Trento é o festival mais antigo de temática montanha, enquanto o nosso, na ilha do Pico, é o mais jovem, mas já estamos na décima primeira edição.
Do festival nasceu o Cineclube Montanha, e o nosso desejo é incentivar mais municípios a juntarem-se a nós, para apresentarmos cinema além de Hollywood. Passo a passo, estamos criando audiências. Lembro que grande parte dos jovens e crianças da ilha ainda não teve a oportunidade de ver um filme num grande ecrã, muito menos um documentário - estamos a trabalhar para mudar isso.