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The Great Dictator (Charlie Chaplin, 1940)
Ao receber o convite do Hugo (um exemplo de resistência e perseverança na blogosfera portuguesa), dois sentimentos me tomaram. Inicialmente senti-me honrado pelo convite. De seguida... com medo!
Medo? Sim, medo da página em branco, medo de não ter o que dizer. Medo da inconsequência da escrita sobre cinema. Ou seja, estava no caminho certo. Afinal, a "Olhar o Medo" ando eu há mais de dois anos, com as voltas que a edição de um livro me tem feito dar e os filmes que me tem feito ver. Livro feito de amor ao cinema e carolice sem medo.
Ao pensar em medo e cinema, a primeira ideia que me ocorre é a reação de Massimo Gorki. Assistindo a uma projecção de filmes dos irmãos Lumière, em 1896, o escritor russo descreveu-a como assustadora, pelo novo poder das luzes e sombras. Foi, certamente, um medo mais intelectual que o sentido no ano anterior pelos espectadores que temeram o comboio de "L'arrivée du train en gare de la Ciotat". O denominador comum é que um e outros trouxeram o medo para o léxico do cinema logo à nascença. Não sabiam era o que esse medo ainda tinha para dar.
E se o cinema pode ser uma indústria do medo, com os filmes de terror a serem aposta segura para manter as salas abertas e os projectores a funcionar, e vampiros, zombies e lobisomens a tornarem-se nossos companheiros de insónias, esta espécie de contos modernos da carochinha empalidece perante outro medo.
Refiro-me, não ao medo de um filme, mas ao medo do cinema pelas vezes em que antecipou causas e lutas forçando a humanidade a olhar em frente, ou pior, a olhar para si mesma. Méliès não teve medo de brincar com o Diabo, Louise Brooks foi temerária ao dar nova expressão à feminilidade, Milestone ensinou-nos a ter medo do patriotismo, Chaplin não teve medo de desafiar o nazismo enquanto os EUA assobiavam para o lado, Sidney Poitier olhou o racismo norte-americano nos olhos, James Dean reformulou os desesperos e medos da juventude, Bergman atirou-nos à cara o silêncio de Deus, Antonioni assustou-nos com a nossa incapacidade de tocarmos os outros, Pakula, Zinnemann, Pollack ou Coppola ensinaram-nos a temer os nossos governos e até Scorsese enfrentou o terror de fanatismos religiosos. Hoje o cinema não tem medo de desafiar os nossos conceitos de género, os desafios virtuais e o papel do Homem no universo.
O cinema nunca teve medo de fazer as suas revoluções, nem de anunciar revoluções ou de documentar revoluções. A mais importante das artes, para Lenine, deu voz aos que não a tinham, deu novos horizontes aos que deles precisavam. O cinema transgrediu, ofendeu e amedrontou poderes instituídos, foi vítima de censura, foi manietado em grilhões por mentes medrosas e usado como propaganda para manipular opiniões. Mas sempre se superou e, como uma janela encantada, permitiu quebrar fronteiras, dando a ver mundos que alguns tentavam esconder do outro lado de muros e linhas artificiais.
E se o medo no cinema de hoje é o da sua irrelevância perante a mudança de paradigma no modo como as imagens em movimento nos chegam, é das mentes, vozes e rostos sem medo que ele triunfará, enquanto estas se lembrarem que o cinema veio para meter medo, não com monstros e assombrações, mas como um espelho indomável daquilo que nós somos.
Quanto a nós que aqui escrevemos, resta-nos não ter medo de o fazer nem de nos darmos um pouco também dessa forma, e de ainda conseguirmos a coragem de nos maravilharmos com o que nos chega do grande ecrã.
*Texto da autoria de José Carlos Maltez, cinéfilo desde que se conhece, iniciou-se em 2012 na escrita sobre cinema no seu blogue pessoal "A Janela Encantada", com mais de um milhar de análises de filmes, agrupando-as em temas e estéticas, numa viagem pela história do cinema. Seguiram-se a participação na revista online "Take Cinema Magazine" e, desde 2018, a co-autoria do podcast "Universos Paralelos". Em 2023 publicou o livro "Olhar o Medo - Visões sobre o Cinema de Terror" em parceria com António Araújo.