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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Os Melhores Filmes de 2022, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 28.12.22

Em 2022 pude constatar a queda anunciada do cinema norte-americano, por mais que se tente rechear as nossas salas comerciais com produções à lá Hollywood, pouco ou nada saem deles para além de fórmulas, refilmagens sob selos de novidades, produtos direcionados ao streaming e super-heróis com fartura (demonstrando a sua regra equacional a servirem para universos partilhados).

Num ano em que “Avatar” chega com a soberba atitude de experiência de sala, um “Top Gun”, outra aguardada sequela, abre caminho por via do físico a possibilidade sensorial em sala, isto num ano em que a Academia decidiu promover um filme de streaming (“CODA”, que num estalar de dedos caiu no esquecimento). Se existe filme de Hollywood a merecer destaque neste ano, então Maverick e Tom Cruise (de difícil desassociação) levam a medalha. Porém, também foi o ano em que Michelle Yeoh pode finalmente brilhar nas terra-yankee graças ao frenesim entre o parvo e de genial que fora “Everything Everywhere All at Once” de Dan Kwan e Daniel Scheinert, ou das memórias cinéfilas de Spielberg em “The Fabelmans”, ou do terror de mãos dadas para com o seu legado cinematográfico - “Nope”, de Jordan Peele e “X” de Ti West

Mas este 2022 a congregação de 10 filmes foram para mim difíceis, o que automaticamente me deixa agradado com o turbilhão de novas vozes e novos movimentos que florescem por este Mundo fora, do Japão ao Irão, da França à Suíça, da Noruega ao México, da Coreia do Sul a Portugal. E falando em território nacional, destaco 12 meses recheadas em variadas e diversificadas produções; o rural novamente motor de inspiração ("Alma Viva”, “Restos do Vento), um João Botelho livre e fluido (“Um Filme em Forma de Assim”) e uma surpresa na realização (“Revolta”), já em temática de festivais [ainda sem estreia comercial], as questões identitárias e geracionais com deslumbre encanto ("Périphérique Nord”, “Super Natural”, "Frágil", “A Visita e um Jardim Secreto”, “O Que Podem as Palavras"), mas apesar desse leque de possibilidades, a minha escolha nacional cedeu à melancolia, à incerteza, ao fim da juventude retratado no misterioso “28 ½” de Adriano Mendes

Segue os dez filmes do ano, segundo o Cinematograficamente Falando e respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) 28 ½

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“Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo.” Ler crítica

 

#09) La Civil

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“Por entre guerras de cartéis, Mihai espelha uma descida infernal de uma “inocente”, um mero dano colateral, que cuja contaminação com este ambiente a transforma numa espécie de impiedoso anjo da vingança. Tudo isto lido entrelinhas, de câmara à mão, orbitando de volta à ação e sugerindo mais do que expondo. “La Civil” escapa dos lugares-comuns pela sua imposição de poder, descortinando as vozes silenciadas de uma disputa moral.” Ler crítica

 

#08) A Hero

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“Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.” Ler crítica

 

#07) In Front of your Face

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“E aí está o trunfo deste enésimo filme, um Hong Sang-soo amadurecido, elegante e delicado na sua estética (sem com isso ceder a “makeovers” radicais), que nos fala sobre vida, morte e promessas vencidas e embebidas em álcool, por sua vez de “pinga envelhecida", sem nunca descrer da sensibilidade desses mesmos temas, com quem encara o encerramento já visível do outro lado da esquina. Deste lado o cético que testemunhou um milagre, pequeno mas que basta, num cinema que sempre fora mais preocupado em alimentar o seu culto do que verdadeiramente interrogar as suas próprias emoções.” Ler crítica

 

#06) Onoda, 10 000 nuits dans la jungle

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O Cinema é também memória, não em jeito memorialista e intimista, mas antes de uma lembrança do que esta arte foi e do percurso percorrido até à sua presente forma. Embora “Onoda” seja uma produção atual, é um filme hoje impraticável pelas mais diferentes razões. Não se trata de resumir ou mencionar gestos de outros e de distantes tempos, Arthur Harari persiste numa vinheta histórica para aludir ao “coração das trevas”, abraçando a selva como a mais eterna inimiga dos Homens. Tropicalismo? Exotismo? Nada disso, esta floresta que albergará os últimos resíduo de uma Guerra desvanecida assume-se como uma armadilha, um labiríntico cativeiro, onde o tempo estagnou num cruel sigilo e a carne está predestinada à sua regressão natural. Harari cumpriu, onde muitos falharam, o de trazer de volta um Cinema físico, protetor da sua herança e com ela a possibilidade de avançar “mato a dentro”. 

 

#05) Azor 

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““Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital.” Ler entrevista ao realizador

 

#04) Un Monde

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“Não olhemos para as crianças como um poço de inocência, mas antes como “peregrinos” que desbravam “novos mundo”, claramente “novos” diante dos seus respectivos olhos, e é esse “mundo, a palavra transportada do título original (“Un Monde”) que Laura Wandel concretiza um tratado experiencial num biótopo a nós familiar, e igualmente distante.” Ler entrevista com a realizadora

 

#03) Vortex

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O tempo destrói tudo”. Gaspar Noé "pavoneou" esse lema ao longo da sua filmografia, todas elas indiciadas no ato de provocar. Enfim, o tempo ameaçou destruir, até porque Noé, perante uma  hemorragia cerebral que o quase levou às “portas da morte”, desliga-se dos aspectos xamânicos e místicos, ou da crueldade exaltante em ira, que testemunhamos nos seus filme para se partir numa claustrofobia formal e existencial. Protagonizado por Dario Argento, demonstrando-se decadência física (ontem, um “maestro” do terror, hoje, uma vítima do terror pendular da sua expirável “carcaça”), “Vortex” veste-se de negrume desumano, discreto, e acutilante a um quotidiano vencido, corpos arrastam-se e mentes dilaceram perante o voraz apetite do tempo. Em jeito de “split-screen”, amantes que depois do seu coro distanciam, mais e mais, até que os vestígios do seu último sopro temporariamente instalam-se nos lençóis usados. Morte, fim, nada de digno, nada de romântico, Gaspar Noé parece saber do que fala.

 

#02) The Worst Person in the World

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The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. Ler crítica

 

#01) Drive My Car

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“Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.” Ler Texto

 

Outras menções: Everything Everywhere All at Once, Nope, Top Gun: Maverick, Memory Box, Flee, The Girl and the Spider

Para Farhadi, heróico é questionar a moral

Hugo Gomes, 05.03.22

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Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspeto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito. Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas. Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.” [Ler a minha entrevista aqui].

Asghar Farhadi deseja e demonstra separar-se do rótulo de "cineasta iraniano”, o tipo de cineasta que a curiosidade ocidental vê com “bons olhos”, aquele que se comporta como ativista anti-sistema e de denúncia político-social, diversas vezes sofrendo com as consequências desses seus atos fílmicos (ver os casos de Mohammad Rasoulof e Jafar Panahi). Não com isto afirmando que o Ocidente não olhe com “carinho” para Farhadi, aliás, a moralidade é também política e acima de tudo um desafio à nossa consciência ditada pelos costumes do Velho Mundo ou da cultura judaico-cristã. Essa mesma declaração de um cinema moral e que provoca as convenções da mesma, estabeleceu-se como bandeira produtiva do realizador, que ocasionalmente “sai da sua toca” para elaborar exercícios europeus (“Todos lo Saben”, “Le Passé”) com enfoque nas veias teatrais que o próprio refere como sua génese.

Mas é no Irão que os labirínticos dilemas tomam posição, chocando culturas (a Oeste ou a Este) e em certa forma colocando-as à luz da mesma lente. Ora, “A Separation” (2011), um divórcio à moda iraniana que alberga um joguete de consciências, conquistando Berlim e posteriormente o Òscar, atribuiu ao cineasta o seu passaporte de “world cinema” (designação de cinema internacional que chega e popularidade nos EUA). Passados cinco anos, a estatueta volta a “escorregar-lhe” para as mãos com “The Salesman”, uma combinação necessária do universo dramatúrgico de Farhadi (com base na peça “Death of a Salesman” de Arthur Miller) com o tal “território-moral” a diluir as duas dimensões numa concebível ao espectador-testemunha-júri. Depois da pausa em terras espanholas com “Todos lo Saben” (com resultados não tão satisfatórios assim), “A Hero” traça ainda mais a fundo essa referida veia de repto, elaborando o trilho de um recluso que orquestra um plano para atingir automaticamente a liberdade por mérito próprio. Asghar Farhadi não esconde o jogo, a personagem é imoral e o seu ato é de má índole, mas é o percurso trazido pelo mesmo, por vezes embatendo em conflitos “kafkianos”, que o espectador é incentivado à mais custosa das questões: “podemos ter empatia para quem empatia não possui?

Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.

Cannes 2021: recomecemos fresquinhos para mais uma temporada

Hugo Gomes, 18.07.21

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Dou por terminada mais uma edição do festival, desta marcado pelas imensas saudades que tinha deste ritmo e da quantidade de sexo que a Competição ostentou nesta edição. Normalidade, não foi bem o que tivemos, mas o gosto de proximidade foi deveras revitalizador.

Com 36 filmes vistos e somente 12 entrevistas executadas com realizadores e atores como Ryusuke Hamaguchi, Nanni Moretti, Ari Folman, Tim Roth, Viky Krieps, Louis Garrel e Adèle Exarchopoulos (mais uma vez) e uma Palma de Ouro concretizada a “Titane”, o OVNI da Competição que confirmou a visão de Spike Lee em apostar num cinema arrojado, moderno e de género, fora dos conformismo que muita cinefilia apresenta, a 74ª edição de Cannes mostrou que a Sétima Arte permanece viva e vista em grande tela, em contradição às declarações precoces da sua morte, agravadas pela pandemia e pela expansão dominante do streaming.

Assim, deixo a minha lista de 10 filmes (marcantes diria eu) nesta Seleção, quer Oficial, quer secções paralelas (sem ordem de preferência):
 

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A Hero (Asghar Farhadi) – Competição
 

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Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi) – Competição
 

218600966_10219717303819979_2221912876172221315_n. Julie (en 12 chapitres) / The Worst Person in the World (Joachim Trier) – Competição

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La Civil (Teodora Mihai) – Un Certain Regard
 

218772960_10219717303339967_1525778472785753653_n. Onoda, 10 000 nuits dans la jungle (Arthur Harari) – Un Certain Regard 

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Mi Iubita, Mon Amour (Noémie Merlant) – Sessão Especial

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Rien à foutre (Julie Lecoustre e Emmanuel Marre) – Semana da Crítica
 

219407939_10219717304219989_4367070920732744759_n. Stillwater (Tom McCarthy) – Fora de Competição

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Titane (Julia Ducournau) – Competição
 

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Tre Piani (Nanni Moretti) – Competição

"O Cinema é sobre a Humanidade." Uma conversa com Asghar Farhadi

Hugo Gomes, 27.06.18

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A esta altura todos sabem quem é Asghar Farhadi, o cineasta iraniano mais celebrado da atualidade, que encontrou em Espanha o lugar perfeito para recitar o seu cinema de relações e moralidades. Com Javier Bardem e Penélope Cruz como cabeças de cartaz, “Todos lo Saben” corresponde a um segredo que vai abalar toda uma família que ao mesmo tempo tenta lidar com uma situação de rapto.

O cruzamento de drama e thriller, ao jeito do realizador, teve as honras de abrir a última edição do Festival de Cannes, apesar da crítica ter sido em geral fria. A receção imprevista não impede o otimismo de Farhadi, que após uma passagem no FEST, na cidade de Espinho, falou sobre alguns dos temas quentes do seu cinema: política, censura, manifestos e Netflix, ingredientes para mais uma trama farhadiana.

Filmou “Todos Lo Saben” na Espanha, porém, o que deparamos é que é uma história que poderia se passar no Irão.

Se eu quisesse filmar esta história no Irão, seria ligeiramente diferente. Mas sim, poderia acontecer aí. Contudo, este filme foi um desafio no sentido em que tive que entender e consciencializar uma cultura que não era a minha, de forma ao enredo ser o mais culturalmente coerente possível.

Mas foi difícil conceber um filme num país que não é o seu? Como lidou com a divergência cultural?

No início foi difícil, porque toda esta etapa fazia lembrar uma piscina, para a qual saltava e tentava atingir o fundo. Quando comecei, foi bastante árduo, porque obviamente não é a tua língua, nem sequer a tua cultura ou quotidiano que se encontravam à tua frente. Tive que encarar isso, por isso trabalhava constantemente com a minha equipa e todas as vezes  lembro-me de exclamar: “é um desafio, mas não é impossível”. A língua e a cultura não são problemas, são desafios.

O que estava mais hesitante era acerca do resultado disto. Como um iraniano a fazer um filme ocidental é um afastamento completo de tudo aquilo que me era próprio. Durante a estreia de Cannes muitos me disseram que o filme estava perfeitamente ciente do panorama espanhol. O grande senão para estas pessoas era mesmo o meu nome. Eles acreditam que para fazer filmes espanhóis é preciso sê-lo na realidade. Porém, uma coisa é certa, quando se vai para outro país e se concebe um filme lá, essa “realidade” não será 100% fiel, porque esta não me é próxima. O que invocamos são as similaridades destas mesmas realidades e exprimimos isso na ficção.

Ou seja, existem semelhanças entre a cultura espanhola e a iraniana?

Quando imaginamos outras culturas sem ser a nossa, essa idealização é realmente muito diferente do que realmente acontece. Só quando estamos em contacto com estas culturas é que percebemos as diferenças, sobretudo a nível emocional.

Porém, o amor tem sempre a mesma face, conforme seja a cultura a que pertence, assim como o ódio. Mas voltando ao amor, e tendo em conta as diferentes vertentes que estão presentes na relação de um casal ou entre uma mãe e um filho, mesmo diferentes eles têm a mesma correspondência em lugares diferentes. Mas é na expressão e na exposição desses sentimentos que encontramos as diferenças culturais.

No meu país, por exemplo, pais e filhos constantemente debatem-se antes de mostrar qualquer sentimento. Possivelmente, no Japão nem sequer tocam-se.

A maneira de se expressarem é diferente, por isso tentei focar na maneira de como se relacionam ao invés do por que se relacionam.

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"Todos lo Saben" (2018)

Afirmou na masterclass do FEST de que o Cinema iraniano é muito vasto, mas nós [ocidentais] conhecemos uma pequena porção. O que chega a nós é sobretudo um cinema político, porém, o seu cinema está fora desse território, até porque você é um cineasta ligado à moralidade ao invés da política.

Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspecto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito.

Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas.

Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.

Mas o Cinema pode ser político?

Sim, no bom e no mau sentido. Por exemplo, existem muitos filmes vindos dos EUA que servem como armas. Eles destroem culturas e outras sociedades. Isso não são verdadeiros filmes, são armas de destruição. Não chamo a isso Cinema, mas sim de negócio.

O Cinema povoa imensos territórios; culturais, morais e psicológicos. No caso do espectador se interessar pela política, então é verdade que verá todos esses filmes nesse prisma.

Quando fazia o "Todos lo Saben" em Espanha, um dos produtores questionou-me se pesquisei a situação política do país e eu respondi que li alguns livros sobre Franco e afins. Ele referiu que o filme que fiz seria considerado um filme político sob a perspetiva espanhola. Respondi que não, apenas descrevi o quotidiano daquelas personagens. Ele, como pensou politicamente, encontrou isso naquela história.

É por isso que se recusa a fazer manifestos com os seus filmes?

Sim, é uma das razões. Se eu fizesse um filme e produzisse um manifesto para o acompanhar, dentro de 15, 20 anos, essa mensagem perder-se-ia por outras gerações e  os países não obteriam esse mesmo manifesto. Os filmes são sobretudo obras do foro emocional, eles fazem-nos felizes ou fazem-nos tristes, e por vezes encontram o seu lugar no meio. Se um filme não causar felicidade ou tristeza, pouco tempo depois morre. Mas se esse sentimento, feliz ou não, nos leva a pensar na temática da obra, então o filme viverá para toda a eternidade, e sobretudo o espectador encontrará a mensagem do filme. Nunca o encontraremos através dos manifestos. O Cinema é sobre a Humanidade.

Como afirma, a política é sobretudo perspetiva. Relembro que na altura de “A Separation”, vários grupos afirmavam que era um filme que incitava a imigração no Irão.

Nem todas as pessoas do meu país, mas aquelas que têm relações com os órgãos governamentais ou que se identificam com tais doutrinas é que encontram e procuram os filmes algum tipo de mensagem.

Mas concorda que existe uma espécie de pressão para que cineastas do Médio Oriente façam cinema político?

Sim. Talvez isso não aconteça com o vosso país ou até mesmo Espanha, mas em França, nos países da Escandinávia, nos Estados Unidos, eles veem o realizador do Médio Oriente como alguém que está passar informação à audiência do que realmente acontece nesses países. Mas tal não é o nosso trabalho. Muitos não conseguem encarar que muitos realizadores desses locais apenas querem fazer filmes, pois realmente adoram Cinema, não para denunciar ou informar. Se querem isso, basta ir ao Google. Por vezes, isso torna-se mesmo incómodo.

Obviamente que com isto não estou a insinuar que não fazemos cinema político, o que acontece é que muitas vezes quem vê os filmes não possui o conhecimento do que se passa naquele país e espera que nós confirmemos o que os Media constantemente transmitem.

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"Le Passé" (2013)

E foi por isso que decidiu fazer este filme, para não ter relações com o Irão? Visto que o “Le Passé” mantinha essas ligações.

Sim, esse foi um dos motivos pelo qual quis fazer “Todos Lo Saben” na Espanha, foi para ver a reação do público, visto estar a fazer um filme sem ligação alguma ao Irão. É costume fazerem-me sempre imensas questões políticas sobre o Irão. É aborrecido, porque eu quero falar de cinema e tenho de abordar política. Mas felizmente as questões sobre cinema já estão a ser feitas, graças a este filme espanhol.

Mas muitos festivais têm utilizado essa "política" nos filmes iraniano de forma a promoverem-se. Relembro Jafar Panahi, cineasta que está proibido de fazer filmes mas que ao mesmo tempo os faz, e possivelmente realiza mais que muitos realizadores em liberdade. A verdade é que quando um dos seus filmes é selecionado, surge toda uma promoção ao filme – “o realizador que resiste” – e do festival.

Nem todos os festivais, mas sim, alguns fazem isso. O que importa para estes eventos nem é a questão política dos filmes, é o facto de terem em sua posse “hot news” [notícias quentes], e com isso a atenção dos espectadores e da imprensa.

Jafar é meu amigo e ele tenta fazer amigos, apesar das proibições, porque também ama o Cinema.  

E quanto à censura? Alguma vez sofreu com isso no seu país?

Referes a cortes ou impedimentos?

Sim.

Desse jeito não. E atenção, eu não os conheço [comité de censura]. Mas quem quiser fazer filmes, tem de enviar algumas páginas do guião ao comité.

A parte boa é que este comité, para além de ser integrado por pessoas do Governo, é também constituído por pessoas que trabalham na indústria de cinema, como realizadores,  os quais tentam facilitar a nossa vida. No caso do cinema comercial, eles não se preocupam, mas sim com alguns poucos filmes vindos de realizadores que querem realmente passar uma mensagem.

Quando nasceste e cresceste lá, sempre acabas por arranjar uma maneira de contornar a censura. Não digo com isto, que esta atitude nos ajuda.

Mas essa atitude alguma vez afetou um filme seu?

Sim, porque acabamos por criar dentro de nós uma autocensura, mesmo que não me aperceba disso.

Os seus filmes remetem sobretudo a mal-entendidos, tal poderá ser encarado como uma metáfora ao estado do Mundo?

Sim, é um grande problema atualmente, não só no meu país mas em todo o Mundo. Hoje, por mais tecnologia que temos a nosso dispor, e refiro obviamente o papel das redes sociais, nós não nos conseguimos entender uns aos outros. Falamos muito e até demasiado, mas não dialogamos. Não nos entendemos.

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Asghar Farhadi em plena masterclass no FEST 2018 / Foto.: Cecilia Melo

Ou seja, é um problema de comunicação?

Sim, ou porque não queremos, ou é a nossa língua que não nos permite. Por vezes queremos nos expressar emocionalmente, mas não conseguimos descrevê-lo por palavras. Hoje em dia, o nosso Mundo tem esse grande problema: não comunicamos, seja entre culturas, pessoas ou até mesmo casais.

Constantemente menciona Bergman e, deixe-me aqui fazer um reparo, de certa maneira você tem algo em comum com o cineasta sueco. Ambos oscilam entre peças de teatro e Cinema. Na masterclass, Farhadi referiu que o Teatro aproxima-se cada vez mais do Cinema e assim perde a sua identidade. A minha questão é: como faz para evitar esse contágio?

Quando trabalhava em peças, sabia que havia um problema comigo. Amo o Cinema e quando escrevia peças, escrevia como fossem guiões cinematográficos. E isso acontece com imensas peças de teatro.

No meu caso, esse problema fez com que não conseguisse mais fazer teatro. Não consigo pensar teatralmente, mas sim cinematograficamente.

E o oposto? Será que resulta? Pergunto porque no seu “The Salesman”, o Farhadi trabalhava com ambos os territórios.

Sim, funciona. Até porque o Teatro e o Cinema têm uma conexão. Em “The Salesman” abordei a peça de Arthur Miller de forma a demonstrar essa ligação entre os dois territórios. Diria que é uma ligação amigável, mas nos meus filmes há acima de tudo uma separação, porque aquilo que evidenciamos no ecrã, passando pelos movimentos dos atores, é Cinema. Tento injetar vida neles, separá-los do Teatro.

Voltando à masterclass, falou que se pelo menos dois espectadores saírem de uma peça, esta é um fracasso. O mesmo acontece num filme. Por isso, para si, o Cinema é sobretudo uma questão de consenso?

O que disse foi que o primeiro objetivo de uma peça ou de um filme é colocar o espectador sentado no seu lugar a assisti-lo até ao fim. Se o espectador se desinteressa ou sai do respectivo espetáculo, nós perdemos.

Mas existem duas maneiras diferentes. No teatro, para “agarrar” o espectador não é preciso grandes ênfases dramáticas ou acelerar o ritmo. Porquê? Porque as pessoas que vão ao teatro são pacientes, têm mais tempo nas mãos. Eles vieram ao teatro para aprender. Já no cinema, a maioria dos espectadores querem entretenimento e não aprender. São dois trabalhos distintos.

Quando era mais novo não pensava nisto, mas hoje em dia reflito o quanto posso fazer no Cinema para manter o espectador sentado. A TV e as suas séries alteraram o gosto do espectador, eles querem algo mais frenético no cinema e isso tem-se tornado num obstáculo. Reparamos isso no tipo de produção atual. Se metermos estes espectadores a assistirem a filmes do passado, de um cineasta nipónico, ou do Ford, ou Truffaut, eles questionam a cadência rítmica. Não é acelerado o suficiente, e isso tem como culpado o universo das séries e o modo de vê-las.

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"The Salesman" (2016)

E o que pensa deste boom televisivo que estamos a testemunhar?

Sei que a Netflix e a Amazon estão a produzir cada vez mais conteúdos televisivos, e por vezes gosto de ver, mas sei que isto está a matar o Cinema, pelo menos a nossa forma de ver Cinema. Porque quando vemos uma série, não temos o tempo necessário para refletir sobre ela, sobre as personagens e situações. Em Cinema, temos acesso a esse espaço e tempo. Até porque quando o filme termina, o espectador leva-o com ele.

E em relação à Netflix? Alguma vez lhe propuseram algum projeto?

Sim, fizeram em Espanha. Queriam produzir o “Todos Lo Saben”, mas eu respondi que não. Isto é Cinema, se alguma vez quiser fazer uma série ou televisão recorro a eles. A questão é que pretendia que o meu filme fosse visto em grande ecrã como é habitual no Cinema. No caso da Netflix não teria problemas de orçamento, mas confiava nos meus produtores porque tinha a visão de ver o meu trabalho numa sala de cinema e não num pequeno monitor.

Tenho conhecimento que ainda existem muitos cineastas que resistem a isto.

Devido a “Todos Lo Saben”, viveu durante algum tempo em Espanha, que é o nosso país vizinho. Alguma vez veio a Portugal?

Estive uns dias na cidade do Porto num festival, penso que foi há 10 anos, mas nós iranianos estamos familiarizados com este país até por causa de Carlos Queiroz [risos] Ele é quase um iraniano, ele é inteligente e respeitoso com todos e conhece muito bem o país … e também o Cinema. Quando recebi o prémio nos Óscares, ele enviou-me uma mensagem nas redes sociais a dar-me os parabéns. E claro, o Cristiano Ronaldo também é muito famoso. [risos]