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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, Our Madness, de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

Estar além da criatividade para revelar António ao Mundo

Hugo Gomes, 18.08.19

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E quem é que te disse que quero adaptar-me a Lisboa? Lisboa é que tem que se adaptar a mim”. Longe de ser uma figura do seu tempo, António Ribeiro, ou como é conhecido entre nós, António Variações, provocou um país ainda desconfortável com as próprias mudanças e fê-lo através da música, com a união entre um certo tradicionalismo (Amália era a sua principal influência) e uma vontade nova de cantar. Assim nasceu o artista, ainda hoje relembrado como uma das principais inspirações para as gerações que se seguiram, cantautor de temas de êxito como “Estou Além”, É P'ra Amanhã”, “O Corpo é que Paga” e obviamente “A Canção de Engate” (música que já integrou alguns dos momentos mais belo do nosso cinema), que “vê” por fim nos cinemas a sua primeira cinebiografia, 35 anos depois da sua morte.

Mas para chegar até aqui muito foi batalhado, e que o diga João Maia, realizador e argumentista, que em 2009 viu o seu guião ser alterado sem o seu conhecimento, o que gerou um confronto pelos direitos com a então produtora Utopia Filmes (responsável por “coisas” como “Second Life” e “Corrupção”). O projeto manteve-se no limbo desde então, até que, graças à persuasão de Maia, “Variações” sai do seu coma induzido com a bênção do produtor Fernando Vendrell e da sua David & Golias, e transforma-se finalmente… num filme concretizado. “Variações” tem essa luz de irreverência no nosso panorama cinematográfico, muito mais pela espera em ver este projeto realizado e por preencher um corpo que faz jus à figura transposta. O ator Sérgio Praia, que já havia interpretado o cantor numa peça de teatro de Vicente Alves do Ó, é o motor desta obra que visa a busca do homem por detrás do artista e não o inverso.

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A sua incorporação arrasta o filme para patamares acima de anteriores protótipos de cinebiografias já produzidas entre nós (a relembrar dois vergonhosos casos como “Salazar – A Vida Privada” e “Amália - O Filme”), que são de puro mimetismo primário e que em certos casos reduzem as personalidades a caricaturas de si próprias. Em “Variações”, Praia estabelece um vínculo emocional com a figura, resgata-a do “papel de cartão”, do objeto da memória coletiva, e transporta-a para o holofote como um ser inteiro nas suas dúvidas existenciais, artísticas, térreas e amorosas.

Por força do ator, o filme de João Maia encontra um propósito para a sua concepção, ainda para mais alicerçado na construção do seu ecossistema por um trabalho afincado de direção artística e guarda-roupa que exalta a extravagância da figura titular. Infelizmente, apenas isso resta dos desígnios fílmicos do cantor. O resto, mesmo não jogando inteiramente no conceito televisivo como as duas cinebiografias acima mencionadas, é de um academismo rigoroso quanto à sua estética, planificação e até mesmo narrativa, guiada por modelos “americanizados” ou simplesmente de fácil reconhecimento por via dos protótipos "mainstream".

Variações” não se presta a romper fronteiras como o seu homenageado o fizera no final da década de 70 e inícios de 80, ficando, ao invés disso, pela sombra do modelo e do retalho biográfico como “fact check”. Vale pelo seu ator, mas o resto é como diz a canção: “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”. E se paga!

Delírios na Terra do Nunca

Hugo Gomes, 28.11.17

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«Tu estás livre e eu estou livre, e há uma noite para passar». 

Francisco e Maria conheceram-se naquela mesma noite. Agora, dançam ao som de cantigas de outros tempos num terraço em Lisboa

«Porque não vamos unidos. Porque não vamos ficar na aventura dos sentidos.». 

Foi há poucas horas que discutiam sobre a posse de um isqueiro. Um isqueiro encontrado no meio da rua, sem dono, passando directamente das possessões de “meu”, “teu” e por “nosso”. 

«Tu estás só e eu mais só estou. Tu que tens o meu olhar». 

Francisco e Maria sob o ritmo daquela canção, não se tocando fisicamente, mas criando um elo através do olhar, uma cumplicidade que os levará ao fim da noite. 

«Tens a minha mão aberta, à espera de se fechar nessa tua mão deserta». 

A festa, a saída, aquele encontro entre muitos que termina a dois. Por fim, estas duas figuras são guiadas para os aposentos, sob as promessas do consumo daquela atração que “cresceu” numa pista de dança.

O dia fez-se, Maria acorda primeiro que Francisco, mas não o abandona, ao invés confronta-o a sair da sua cama, da sua casa, por fim, da sua vida. Francisco passou uma noite, uma “aventura dos sentidos” como cantarolava aquela música de António Variações naquele discreto arraial. A partir dali, a nossa personagem nunca mais viu Maria. Nunca a procurou, nem nunca precisou, o que aconteceu foi uma experiência, não um romance. Romance? Que importa tal coisa neste “Verão Danado”?

Pedro Cabeleira concentra nesta sua primeira longa-metragem, um filme instintivo que resulta numa jovialidade embelezada de teor hedonista. A festa que nunca termina, e as ressacas intermédias que transformam o espectador no vivente desta alegoria jubilante. O jovem realizador não pretendeu um retrato geracional, tal como declarou em entrevista [ler aqui], as suas pretensões são simples, possivelmente fúteis ao olhar, e nelas recolhe uma complexidade “danada”. Um estado de espírito que há muito não perseguíamos, a mais notável sensação do início de uma experiência, qualquer que seja a sua natureza. O erotismo trazido por esses caminhos extra-sensoriais, a “gula” de conhecer as personalidades “passageiras”, o de se focar nas “criaturas da noite”, essa fauna que se alimenta, de forma vampírica, das sequências festas.

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O geracional é involuntário, “Verão Danado'' é a marca da sua equipa, do “sangue” e dos “verdes anos” depositados por esta. Sei, as aspas não foram coincidências, dois filmes tão queridos da nossa cinematografia, de Pedro Costa a Paulo Rocha, ambos que entraram em Lisboa como estranhos pedintes, maravilhando uma prisão de concreto e um quotidiano que se afasta das suas anteriores idealizações. Aqui, Cabeleira remete o conto do rural para a cidade, mas as consequências são todas menos saudosas, há uma prisão sim, mas o nosso protagonista (Pedro Marujo) não anseia evadi-la. Pelo contrário, quer imergir no psicadélico desta jornada em estado de passividade.

Mas para os que não acreditam na folia, “Verão Danado” não é um filme refém dessas fantasias draculeanas, do desejo interminável de permanecer jovem para todo o sempre. Entre ressacas que prestam serviço a elipses narrativas, Cabeleira forma um circulo de uma geração à deriva, recém-licenciados em busca do seu primeiro trabalho ou dos sonhos que teimam em não coexistir com as suas realidades. Mas ao invés da pedagogia de um “Morangos com Açúcar” e da ideia de formação encetada, “Verão Danado” abrange a experiência-simulacro. O espectador é um mero festeiro pronto a esquecer do Mundo que o abandonou, ou que simplesmente não o compreende. Pela noite adentro, sob a estética (existem traços do cuidado visual de um Gaspar Noé) que sobrepõe a câmara em plena demanda, como alguém que procura o foco de interesse num convívio fora do controlo.  

A verdade é que o cinema tem ido cada vez mais ao encontro dos mais jovens e, com isso, rejuvenescido. E esse rejuvenescimento não é um factor que deva ser ignorado, nem sequer desprezado. Verão Danado exibe os dotes dessa tremenda juventude… até Nuno Melo, quando surge, cobiça esse tão inexistente elixir. Ó tempo, porque não voltas atrás?