Caldo entornado
Neste “conto” de “cinderelo” acidental (e mais que acidental), entre um cozinheiro a poucos passos de virar sem-abrigo e que da vida, tal como os limões, extrai os ingredientes para as suas iguarias (nada) exóticas, e uma candidata presidencial, populista ferrenha mas sem ala ideológica … não vá o filme ser demasiado, como diríamos, crítico / satírico … há um relacionamento de perversidade e de ingenuidade, a criação de uma fábula sociopolítica cozinhada com os ovos que se tem à mão. São poucos, constata-se, visto que o resultado é uma entrada indigesta que nunca avança para o prato principal.
Em geometrias yankees, é um “Peeping Tom” encavalitado no “Estômago” de Marcos Jorge, ou melhor, aproveitando o estômago de São José Correia (a atriz força em seduzir-nos num papel altamente reconhecível da nossa esfera política), uma pitadinha de cozinhados do excêntrico, com janelas indiscretas. Portanto, caldeirada a mais, caldeirada a menos, “A Bela América” parte como um joguete contemporâneo, refugando os temas sociais do momento, até espreitar criminosamente na ala romântica, ora comédia negra, que incomoda digamos, pela ausência ou inabilidade de gags, e pelo forjamento a frio de empatia (ou tentativa de) ao protagonista (Estevão Antunes), o tal chef do povo, miserabilista, “desenrascado” na gíria unicamente portuguesa, só que nem por isso “santinho”. A sua perversão tem tanto de malfeitoria que o oportunismo político da expressada América, um comício de duas “criaturas” interagidas numa realidade pornograficamente competida, e por isso mesmo entendidas como uma frankensteiniana e amoral história de amor.
Entre os grandes incómodos causados por este rancho azedo está a vontade com que o realizador António Ferreira (“Embargo”, “Pedro e a Inês”, “Esquece Tudo o que Disse”) capta o voyeurismo gastronómico deste casal de miseráveis, contrastando com o disfarçado e embaraçosamente amadorismo em criar conflitos, pertinências e sobretudo coerência (não basta apresentar situações, o circo deve ser montado com afinco). Não acreditamos nem um pouco em todo este cenário, enfim, apenas os seus momentos psicóticos parecem atingir um certo grau de credibilidade (grau relativo é verdade!). E nisso, “Bela América”, é estranho … e digamos, no pior sentido da estranheza.