Pecado capital
O cinema não me dá dinheiro, antes tem-mo levado com muito prazer.”
- António Campos para o jornal “A Capital” (29 de novembro de 1995)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
O cinema não me dá dinheiro, antes tem-mo levado com muito prazer.”
- António Campos para o jornal “A Capital” (29 de novembro de 1995)
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O tema pode ser "Infância e Adolescência", mas, ao contrário do que indica, o Close-Up está bem "crescido" nesta 8ª edição. A decorrer de 14 a 21 de outubro na Casa de Artes de Famalicão, o Observatório de Cinema apresenta-nos mais uma galeria cinematográfica que orbita em torno desse território familiar, expandindo-se para eventos e diálogos, novamente pontuados com convidados de honra para enriquecer as sessões, concertos, leituras e sobretudo, amor pelas imagens, digamos, e à boa maneira, um amor bem "adolescente". Sobre a programação, ninguém melhor do que o programador, Vítor Ribeiro, para nos falar dela. Através deste convite do Cinematograficamente Falando ... chega-nos um teaser para este tão esperado "coming-of-age".
Gosto de pensar no Close-Up como algo animado, com vida própria, aproveitando os seus temas, títulos digamos assim, que fortalecem essa imaginada existência. Depois da viagem, o Observatório de Cinema assentou, constituiu família e agora recomeça sob o mote da Infância e Adolescência. Gostaria que me falasse do tema e de que forma enquadra-se na mostra deste anos, e já agora, sem querer revelar os ‘segredos’, como funciona a escolha destes temas, se esta narrativa é só da minha parte ou existe mesmo intenção de dar vida própria ao Close-Up?
Sim, a tua abordagem é correcta: há uma tendência dos motes se entrelaçarem com os anteriores, como se fossem sequelas de um filme que começamos a rodar em Outubro de 2016. O tema Infância e Juventude esteve no Close-up desde a primeira edição, inicialmente como secção. O cinema ao longo da sua história sempre integrou esta temática e permitiu apresentar olhares complexos sobre um dos períodos mais desafiantes da nossa existência, em que em simultâneo nos desafiamos na conquista da autonomia, enquanto assistimos à transformação do nosso corpo e das tensões que isso provoca com o contexto familiar e social. Curiosamente, nos últimos anos estrearam vários filmes de autores que trabalham esta temática, em que destacamos Jonas Carpignano, do qual exibiremos “A Chiara”, o que permite uma boa mescla com filmes de autores importantes da história do cinema que revelaram habilidades particulares a lidar com a infância e juventude, como Abbas Kiarostami ou Maurice Pialat.
É difícil falar de Infância no Cinema sem sequer mencionar o trabalho de Abbas Kiarostami, evidentemente o santo padroeiro do “Close-Up”, na programação o escolhido para representar essa filmografia é “Onde Fica a Casa do Meu Amigo” (“Where Is the Friend’s House?”, 1987). Sabendo que Kiarostami tem vasta obra sobre infância, crescimentos e até mesmo escolaridades, como recaiu a escolha deste determinado filme?
“Onde Fica a Casa do Meu Amigo” é um filme muito importante dentro deste tema e também quando se olha para a obra de Kiarostami. Por um lado, não é possível fazer uma genealogia de um cinema sobre a infância sem incluir este filme, sem pensarmos nesta criança, em Ahmed, e na sua jornada para cumprir a missão de devolver o caderno do amigo. Uma criança que conquista a autonomia a pulso, que percorre uma larga distância num território difícil, analogia também de um regime político opressivo, o do Irão. É também o filme que abre a Trilogia do Terramoto, que permitiu a Kiarostami começar a desenhar a estrada da sua filmografia com a descoberta do seu cinema na Europa, premiado com o Leopardo de Ouro em Locarno.
História Trágica com Final Feliz (Regina Pessoa, 2005)
Reparei que esta edição seja provavelmente das que menos acompanha a “espuma dos dias” em relação aos filmes, temos este ano uma programação que reúne, não só Kiarostami de ‘87, mas como também John Cassavetes, Glauber Rocha, Maurice Pialat e a obra-prima de Vittorio de Sica [“Ladri di Biciclette”].
O programa do Close-up procura sempre o cruzamento entre cinema do presente e história do cinema, na concepção de que o desenho de uma programação pode acrescentar importância e singularidade a cada um desses filmes, que assim conversam uns com os outros. Se há algo que define o cinema é a sua capacidade de incutir memórias, de as transmitir entre gerações. Procuramos aproveitar um crescente e positivo movimento na distribuição, na disponibilidade de títulos da história do cinema com obras restauradas digitalizadas. E procuramos retirar peso à ideia de história do cinema, e fazê-la chegar aos vários públicos, incluindo a população escolar, na exibição de “Ladrões de Bicicletas”, que para além de se constituir como um objeto incontornável do neorrealismo, é também uma narrativa sem tempo, uma história universal, a relação entre um pai e um filho. Quando juntamos Cassavetes a Glauber Rocha, procuramos um diálogo possível, estabelecido numa barra temporal, mas também num discurso e num conjunto de ascendências comuns a estes dois cineastas.
O que me pode dizer sobre os convidados deste ano, e do foco da animação portuguesa (especialmente a retrospectiva a Regina Pessoa) neste Close-Up.
Na secção Fantasia Lusitana procuramos distinguir um cineasta ou uma corrente singular do cinema português. Num ano em que se assinala o centenário da animação portuguesa, Regina Pessoa foi a escolha imediata para esta edição. O percurso premiadíssimo dos seus filmes não é suficiente para definir a importância de uma obra dentro do cinema de animação, que estabelecerá por certo uma influência nas próximas gerações. Regina Pessoa convoca para o seu trabalho um conjunto de temas, arriscaria obsessões, que a tornam uma artista única e que deve ser vista também fora dos festivais de animação e por vários públicos, incluindo o escolar e quem está a aprender a trabalhar com imagens, animadas ou outras.
Este ano temos Paul Schrader e terror à portuguesa, mas em leitura. Pergunto desta forma, cinicamente ingênuo, o Cinema também se lê?
Os livros começaram a aparecer naturalmente no programa do Close-up, quando criamos a rubrica Café Kiarostami, que permite desenhar tangentes com a sala de cinema, através de outras disciplinas. Os livros sobre cinema são um contributo indispensável para uma relação privilegiada com o cinema, no âmbito da crítica ou da estética. Os exemplos desta edição ajudam a esclarecer as nossas motivações. O livro do Paul Schrader – “O Estilo Transcendental no Cinema”– auxilia a relação com um dos autores importantes do cinema americano, primeiro como guionista e cronistas dos anos setenta, para depois se impor como realizador, um autor que mantém a sua relevância no presente. O caso da edição de “O Quarto Perdido do Motelx", ajuda a descobrir filmes e autores do cinema português, com várias vozes que nos orientam nesse labirinto.
Where Is the Friend’s House? (Abbas Kiarostami, 1987)
40 Anos de Sétima Legião … Comemoração, ou urgência de reavivar a banda de sucesso, hoje, digamos, muito discreta?
Um dos destaques de cada edição do Close-up são os cruzamentos artísticos, principalmente entre cinema e música, que conduziu em anos anteriores a respostas a encomendas da Casa das Artes que resultaram em filmes-concerto em estreia por Sensible Soccers, Dead Combo, The Legendary Tigerman, Mão Morta ou Orquestra Jazz de Matosinhos. É uma forma, também, de dialogar com a história do cinema, que foi o que proporcionou esta relação com a Sétima Legião, com quem queríamos há muito colaborar. Esta apresentação da Sétima Legião abrirá com a música em diálogo com “Um Tesoiro” (1958), uma curta-metragem de António Campos, um autor com quem a Sétima Legião encontrou fortes afinidades temáticas neste trabalho conjunto. O concerto que se seguirá, celebrará de forma viva quarenta anos de canções, de uma das bandas que melhor preenche o património das nossas memórias.
Tendo em conta o percurso do Close-Up, para o ano estará a viver os primeiros romances?
Daria um bom mote. Mas para o episódio 9 ainda não o definimos, até porque ainda estamos a pensar nas réplicas do episódio 8, três momentos de programação (Janeiro, Março e Maio) onde voltaremos ao tema Infância e Juventude, e às obras de John Cassavetes e Glauber Rocha. O mote de cada edição, além dessa preocupação de se relacionar com as edições anteriores, depende em grande medida dos filmes e dos autores que queremos mostrar e associar. Como um bom treinador, que define a sua equipa não tanto através da obsessão de cumprir uma táctica ou um sistema, mas antes na preocupação de colocar em campo os melhores jogadores.
Ver toda a programação aqui
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Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)
No auditório da Moagem, em plena reta final dos Encontros Cinematográficos do Fundão, com Raul Domingues a apresentar a sua segunda longa-metragem - “Terra que Marca” (2022), um rugoso e bruto poema bucólico sobre o vínculo gradualmente perdido entre carne [Homem] e terra [Natureza] - e como é “tradição” nestes eventos, é posteriormente proposto um debate após a projeção. Nesse diálogo entre o realizador e o público, dois nomes são constantemente proclamados, citados em forma de comparação, ou simplesmente uma referência a uma herança, quer no olhar cinematográfico, quer na incessante procura neste meio. Os nomes eram Manuela Serra e António Campos, que de tudo têm e nada o possuem, excepto uma ruralidade captada e até mesmo tremeluzidas no progresso o qual muitos vincam, ou desejam vincar.
Domingues abertamente falou dos seus avós como inspirações, os "objetos" de uma resistência em transformar o espaço, a terra neste caso, das suas sujidades convertidas em purezas fabricadas. É a agricultura como domesticação do selvagem, a imprevisibilidade da Natureza, de certa forma cíclica, como uma teimosia por eles decretada. Do outro lado da "barricada", a persistência nunca comovida, com consequências na decadência das mãos ou das pernas marcadas por feridas há muito infligidas, daqueles que enfrentam o esforço contínuo como "trabalhadores de solo". A idade aqui é representada como um iminente fim, não apenas das vidas que a câmara segue em planos pormenorizados, num tremor que se disfarça na naturalidade do seu dia-a-dia, mas também na função de "trabalhar a terra", termo mencionado várias vezes por Domingues.
Na chegada a Manuela Serra, a inspiração das inspirações modernas no que se trata do regresso ao campo, às tradições e ao rural num exotismo cultivado, e como a terra aí desvendada é trabalhada. A realizadora e o seu único filme "O Movimento das Coisas" (1985) serviram de bandeira, incentivo ou a 'palmadinha' nas costas para as seguintes gerações, com câmara em punho e histórias de infância, ou a partir daqueles avós "marginalizados" nos enésimos confins do mundo, desenterrando as raízes da sua portugalidade. A relação Domingues - Serra advém dessa intenção para com a terra e as pessoas que a marcam, no entanto, é entre Serra e Campos que o elo, não aparente, surge-me. “O Movimento das Coisas”, a partida da realizadora à aldeia de Lanheses, em Viana do Castelo, resultou numa cápsula temporal; de pessoas, quotidianos, costumes, tradições ou relevos, à beira da sua extinção, ou meramente ultrapassados, ideia reforçada por aquele plano final no qual Serra lutou para que no filme integrasse. Aí “contemplamos” uma fábrica, a indústria figurada como modernidade, o epílogo de todas aquelas imagens, desde a, hoje quase impraticável, festa da desfolhada.
Terra que Marca (Raul Domingues, 2022)
Campos, por outro lado, dedicou uma parte da sua vida em etnografias estudadas por Jorge Dias (apesar de desviar-se de qualquer designação de “cine-etnógrafo”), na procura destas especificidades, não só remetentes à portugalidade, mas aventurando num país “obscuro”, ora vivacio em praias em ilhas inexistentes [“A Almadraba Atuneira”, 1961], ora em territórios quase inacessíveis do qual se formaram reinos à parte [“Falamos de Rio de Onor”, 1974], ou como é aqui o caso mais evidente, o captar da extinção de um lugar - o “não-lugar” - e consequentemente uma identidade. Realizador de poucos meios - esquecido, sendo nos últimos tempos recuperado (a descatar os esforços da iniciativa a FILMar, promovida pela Cinemateca), e elevado a autor trágico, igualmente único nestas nossas bandas (e não só …) - Campos prosseguiu ao Gerês, em direção a Vilarinho Da Furna, aldeia comunitária secular, atualmente “submersa” na barragem de Vilarinho das Furnas (o plural, por si apropriado pelo título do filme, é entendido como um carrasco a esta identidade). Após ter conhecimento do local e do seu povoado através dos estudos de Dias, o realizador permaneceu um ano na aldeia, sob constante resistência e agressividade, contou ele, por parte dos habitantes que o encaravam como um “infiltrado” do Estado. Ao longo desse período, e tentando conquistar a “boa graça” dos iminentes despejados, registou os costumes e os cantos que futuramente [um ano após a rodagem] seriam “afogados” pelas próprias águas que um dia geraram Vilarinho da Furna. Como se pôde ler na última legenda da obra - “Morreu Vilarinho da Furna sob o manto que lhe deu vida” - enquanto é “contemplado” o paredão cinza e verticalmente sem fim à vista da barragem aí sonhada, projetada e materializada. Este último plano dialoga com o dito plano final da (tal) ambição de Serra, de igual espírito com que a água une os dois documentos - com 14 de anos de diferença entre si.
Em “O Movimento das Coisas” seguimos o fluxo do Rio Lima ao encontro do “paraíso perdido”, enquanto em “Vilarinho das Furnas”, sob a narração do seu trovador local [que eventualmente nos surge no mesmo nível de olhar para com a câmara, subscrevendo a intenção de Campos em nunca superiorizar-se aos demais], somos aludidos à primeira e pequena porção de água gerada pelas figurativas “pedras parideiras” (que pariram Homens e não outros minerais como o fenómeno de Arouca). Aqui estão as rochas que preencheram o cenário que anteriormente albergava a comunidade, paisagens essas, desaparecidas.
O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)
Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)
O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)
Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)
Campos voluntariou-se em conhecer o local e os respetivos habitantes, sem saber que o seu ato iria preservar para a posterioridade a sua cerimónia fúnebre (a procissão aí desfilada surge-nos como uma coincidência terrível), “acidentalmente” (aspas porque não acreditamos que fora totalmente”) persiste na negociação (invasivas e abusivas) entre o Governador civil e os “furnenses”, estes últimos conscientes do “roubo” que ali estava ser executado. Trocas de palavras em vão, mas visualmente ditadas como sentenças, recortadas pelo quotidiano filmado e emanado por Campos como um urgente testamento (era necessário “arquivar” aquilo de alguma maneira). Hoje Vilarinho da Furna “sobrevive” na memória dos “poucos” que ainda restam entre nós, e sobretudo neste trabalho cinematográfico, os seus vestígios de existência são as ruínas que numa eventualidade ou outra se revelam ao “mundo” em ares mais áridos e tórridos, os fantasmas permanecem como que acorrentados a um “não-lugar”, a uma assombração, recusando abandoná-las para um descanso, digamos eterno, pairando no definitivo esquecimento.
Furna de Campos está desaparecida, Lanheses de Serra está alterada, distorcida e irreconhecível [ver o regresso da realizadora ao local décadas depois “35 Anos Depois, O Movimento das Coisas” de Mário Fernandes e José Oliveira] e quanto a Domingues, até um dia aquele seu ambiente desintegrará com o tempo. Como o próprio indicou no contacto do público, é só uma questão dos seus avós … já sabem, não é preciso especificar.
Encontro-debate entre o realizador Raul Domingues ("Terra que Marca") e o professor e investigador Manuel Guerra, com moderação de José Oliveira, na A Moagem - Cidade do Engenho e das Artes
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Antonio Campos repesca um dos episódios mais trágicos da televisão norte-americana – o suicídio em direto da pivô e jornalista Christine Chubbuck – para apurar as causas que levaram esta mulher a cometer ato tão grotesco.
A composição desta personagem misteriosa deve-se muito a Rebecca Hall que subjuga-se a este tormento psicológico num filme que aposta desde cedo na iminência da catástrofe. Obviamente, que o espectador sabe como terminará esta aventura pessoal, assim como um certo filme de James Cameron que “flutuou” nos box-office em 1997, mas o aqui em causa não é um filme válido pelo seu desfecho, e sim, um episódio recorrido em decadência humana, uma tragédia grega que joga o meta-palco da sua criação.
Campos sempre teve um “fraquinho” por personagens torturadas, absorvidas por um ambiente em total decomposição, assim como o destino destas. Rebecca Hall cria em Christine um derradeiro duelo intrínseco entre uma réstia de esperança, uma salvação que o espectador aguarda desesperadamente, porém, sabendo à partida que tudo é em vão. Sim, este é o tipo de obra que qualquer guia televisivo expõe o aviso do “anti-feel good movie“, o cinema que reflete o quão frágeis nós somos, o quão vítimas somos dos nosso próprios objetivos profissionais, ao mesmo tempo, Antonio Campos dá-nos certas luzes sobre a condição e evolução da comunicação social, em certa parte, a forma como o jornalismo adaptou-se às audiências e não o oposto.
Existe aqui, evidente inspiração aos dotes dramáticos de “Network”, de Sidney Lumet, à hipocrisia implementada pela “caixinha mágica” e a sua interação com o exterior. Contudo, como biopic, se é que Christine anseia afirmar-se como tal, o filme tende em afastar-se desses lugares comuns de agenda award season, apostando na ênfase dramática e na criatividade desse sentido nas suas personagens. A depressão é um efeito secundário e o complexo desempenho de Rebecca Hall a principal medida.
“Yes, but …“
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