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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Nem tudo são rosas ...

Hugo Gomes, 19.10.19

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Na Netflix, nem tudo é originalidade e primor! Numa só semana contamos com o lançamento de dois graus de “obras falhadas”, de um lado Wounds, da suposta revelação Babak Anvari, terror sob contornos lovecraftianos que produz um clima de mistério para depois lançar-se “às urtigas” e com ele levando Armie Hammer e Dakota Johnson (possivelmente das piores atrizes da atualidade) ao abismo. Do outro canto, possivelmente a mais alarmante, The Laundromat, o prolifero Steven Soderbergh na denúncia dos Panamá Papers, num objeto sabichão ou diria antes “chico-esperto”, a replicar as tendências da economia para totós de Adam McKay e apresentar a pior das Meryl Streeps. Armado em Robin dos Bosques versão caviar.

Que venham mas é esse Marriage Story e o tão badalado The Irishman, do “verdadeiro” Scorsese, porque a Netflix precisa urgentemente de Cinema nos seus cantos próprios.

 

Dor e Glória, o mapa para a alma de Almodóvar

Hugo Gomes, 04.09.19

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Não eram maus ventos aqueles vindos de Pedro Almodóvar nos últimos anos, eram simplesmente justificações de um homem que ansiava não cair no esquecimento autoral devido a um estancamento criativo. Essa falta de transgressão do seu gesto narrativo levou-nos a duas obras de natureza caducada: “Los Amantes Pasajeros”, um retrocesso à faceta de comédia negra à prova do preconceito sexual e no seu anterior “Julieta”, o melodrama novelesco (ou melhor, como Caetano Veloso definiu, “o almodrama”) a tentar fazer jus a um legado.

Vamos por partes: se existe elemento que une a filmografia de Almodóvar é o passado, o seu peso que intromete-se como causa e efeito, assim como resolução dos seus conflitos. O cineasta espanhol apenas transgrediu essa essência de olhar para trás, retirando-a do universo dos filmes e posicionando-se ele próprio nesse efeito. Resultado: “Los Amantes Pasajeros” é de um humor decadente e arcaico que só demonstra como a sua comédia "almodovariana", dos tempos de “Kika” e “Entre tinieblas”, não consegue ser replicada na atualidade (e não há razão para tal). Já Julieta demonstra uma falta de sofisticação, um realizador a citar-se a si mesmo num intenso automatismo.

E é com isto que chegamos à contradição. “Dolor y Gloria” é um filme sobre o passado e ao mesmo tempo é um olhar para o passado, um jogo de camadas que a certo momento assume. Mas então, o porquê deste sobressair dos dois mencionados dessa jornada aos êxitos de outrora? Por uma simples razão: Pedro Almodóvar volta a preocupar-se com as personagens e isso sente-se num protagonista tão alter-ego como Salvador Mallo (nunca vimos um Antonio Banderas tão intimista como o daqui), um realizador na recusa em iniciar novos projetos devido a uma insegurança existencialista que bem poderia ser trocado pelo próprio cineasta.

O espectador segue de perto o seu quotidiano, as suas memórias, as suas eternas dores (físicas e emocionais) e ao mesmo tempo celebra a vida com ele. Almodóvar percebe assim a ligação entre a personagem e o público, elaborando-o no limiar da linguagem meta, tornando-o direto e franco nesta relação, fazendo do próprio espectador o seu cúmplice passional.

Se Mallo é o anfitrião deste retorno à infância e das etapas que o tornaram o adulto que é, incentivado por um desenho da mesma forma que a madalena incentivava Proust, “Dolor y Gloria” é também apoiado na cedência ao detalhe. Aliás, pormenores mínimos que conquistam o seu lugar no realismo comportamental, arestas limadas que na linguagem académica são frutos despachados para não “empapar” narrativas. Atos como o de Mallo, que fuma heroína pela primeira vez (demonstrando sempre um gesto de “novato”), ou toda a condução da cena entre Penélope Cruz e filho na estação, prolongam a sequência como uma réplica dos costumes geracionais.

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Depois segue a contradição número dois. Se Almodóvar está interessado em colocar as suas personagens a comportarem-se da forma mais real possível, então porquê deslocá-las para um ambiente plastificado? Este contraste de “sabores” guia-nos por entre as referidas camadas. A peça teatral de Mallo, por exemplo, é composta maioritariamente por um plano médio sob fundo vermelho berrante (um dos melhores trabalhos do diretor de fotografia, José Luis Alcaine) que cristaliza a silhueta do magnífico Asier Etxeandia em pleno monólogo. O efeito hipnótico causado por esta escolha de coloração é somente a fase um.

A segunda arranca após o vencimento do plano: uma sequência de campo/contracampo entre o ator ficcional e o público ficcional, que por sua vez, representam a ligação intimista que o nosso artesão tenta estabelecer entre Mallo e nós. Os olhares destes “figurantes”, em união com o olhar de Etxeandia, servem apenas de atalho para o reencontro de amantes (belíssimo momento que nunca cede o caminho fácil do melodrama). Isto tudo, para situar que as camadas (sempre presentes) operam como um verdadeiro tour-de-force da própria narração, alicerçado de uma edição veterana de quem conhece a semiótica dos planos e do desencadear destes.

E é aí que entramos na prova final. Conhecimento, maturidade e experiência, três elementos interligados e quase diluídos que formam uma obra culminante. Pedro Almodóvar teve que tropeçar para voltar ao carris e fá-lo sob um sabor de saudade. Um filme visualmente cativante que opera como um espelho emocional, sensível e confidente, onde encontramos mais que somente personagens, mas marcos que mapeiam a alma de um realizador que nos convida a percorrer o seu continente.

Tínhamos tantas saudades tuas!