"Faz assim e serás confundido com o Tyrone Power"
Martin Campbell, Anthony Hopkins e Antonio Banderas na rodagem de "The Mask of Zorro" (1998)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Martin Campbell, Anthony Hopkins e Antonio Banderas na rodagem de "The Mask of Zorro" (1998)
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Anthony [Hopkins] é o rei convicto e vaidoso que habita num castelo de cartas. Contudo, o seu magnífico palácio, a fortaleza que albergaria a sua suposta solidão, é uma arquitetura em vias do seu desabamento. Triste e cruel destino em que a queda livre de um homem glorioso acontece em movimentos lentos como se o tempo desfibrasse, decompondo-se, para se tornar num labirinto de ilusão. A anterior habitação onde esta realeza residia com tamanho fulgor converte-se num enclausuramento, e quiçá, num castigo divino.
É sabido pelo próprio Florian Zeller, dramaturgo francês que se vira para o cinema numa auto-adaptação de “The Father” (“O Pai”, recordamos que a peça passou em Portugal, em 2016, no Teatro Aberto, tendo como protagonista João Perry), que Anthony Hopkins sempre foi a chave deste projeto, pelo que o “perseguiu” até por fim, este ceder. Assim, o ator acabaria por integrar o papel do “monarca” amaldiçoado numa “praga” mundana, mas nem por isso menos desumana.
A demência toma conta deste ancião, e o filme, “encolhido” no seu interior (ou diríamos melhor, interiores) tende em providenciar ao espectador um simulacro sensorial dessa prisão de espelhos invertidos. Desta forma, por vias de uma montagem engendrada por Yorgos Lamprinos e de um incoerente jogo de aparências e enganos, onde caras familiares tornam-se perfeitos desconhecidos, eventos sucedem às suas reproduções, variações e representações, entendendo que o tempo não é bom companheiro para Hopkins, aliás, matreiro e jocoso na sua arte. O relógio que nos poderia indicar a saída redentora do nosso “glorioso homem” é também um instrumento de tortura, os episódios que se amontoam por vias do objeto requisita essa metafísica neurológica, a demência como entidade espacial e temporal ao invés de relato.
Nesse sentido, e talvez tendo em conta as comparações tidas com outras narrativas de “velhice” (o Cinema, que com tantas declarações de óbitos obtivera, possui desde então legitimidade e maturidade para abordar a derradeira fase das nossas vidas), separa-se de “Amour”, do austríaco Michael Haneke, pela sua ostentação e no cerco formado envolta do espectador, o testemunho silencioso. Enquanto um debate-se numa relação exterior e indireta com a alienação, dando asas para sugestões, silêncios inquietantes e gestos economizados que transbordam loucura, este “The Father” espaceja um palco direto para a última performance sóbria do gasto corpo e mente insana, nunca escondendo a sua ostentação, como um nobre monarca que nega a sua despromoção na hierarquia.
Não é preciso afirmar o quanto “gigantesco” está Hopkins neste infinito tormento, porém, é a abordagem de Zeller a sequenciar um terror fechado e de sintomas psicológicos que a obra atinge algo mais que a somente intenção de “filme de atores”. Sim, mais do que somente Óscar ver.
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No primeiro vislumbre do cirurgião Treves (Anthony Hopkins) sobre o deformado “Homem-Elefante”, o seu olhar congela. Não é um horror nascido do medo ou da repulsa, mas antes da consternação perante tamanha desgraça humana. Um olhar de piedade, um pedido silencioso de misericórdia. Como espectadores, sentimos essa súplica: a súplica por uma criatura que, no fundo, não tem nada de místico ou monstruoso – é apenas um homem, condenado e aprisionado no seu próprio corpo. Neste instante, Hopkins oferece-nos humanidade e esperança, mas também um dilema moral: no papel do respeitado cirurgião londrino, ele resgata John Merrick (John Hurt) de um espectáculo de aberrações, devolvendo-lhe alguma dignidade. No entanto, à medida que tenta ajudá-lo a ser aceite por uma sociedade que sempre o repudiou, Treves começa a questionar-se, se estará, de alguma forma, a perpetuar o mesmo ciclo de exploração que condena?
Baseado numa história real tão trágica quanto extraordinária, “The Elephant Man”, de David Lynch, é uma obra sobre o lado mais animalesco da humanidade – um retrato de uma sociedade preconceituosa, que valoriza a estética acima de tudo, mas que, paradoxalmente, também se revela capaz de aceitação. Apesar de ser um filme do início dos anos 80, “The Elephant Man” emula a grandiosidade dos verdadeiros clássicos de Hollywood: filmado a preto e branco, com uma mise-en-scène cuidada e pausas narrativas intensas, comporta-se como uma obra atemporal.
Lynch, hoje reconhecido como um dos mestres do surrealismo cinematográfico norte-americanos (o lynchiano que cunhou com afinco), entrega aqui o seu filme mais acessível em termos narrativos. Ainda assim, a sua marca está presente: a evocação fantasmagórica da industrialização, o desconforto existencial, a atmosfera opressiva. Mas, acima de tudo, “The Elephant Man" é um dos seus filmes mais confrontacionais, tristes e crueis. John Merrick (um irreconhecível e extraordinário John Hurt) enfrenta um mundo habitado por monstros de carne e osso – não aqueles das feiras de horrores, mas os da sociedade dita civilizada. O realizador arranca desses momentos de brutalidade uma carga emocional impressionante, amplificada pela banda sonora de John Morris e coroada por um final arrebatador ao som de Adagio for Strings, de Samuel Barber – tema que, anos depois, voltaria a ser um protagonista (“Platoon”, de Oliver Stone).
Depois de “Eraserhead”, um pesadelo industrial onde Lynch explorava a fobia à deformidade e à paternidade, “The Elephant Man" marcou a sua transição do circuito underground para a ribalta. Apenas três anos após a sua estreia nas longas-metragens, Lynch conquistou um vasto público e a atenção da Academia, garantindo ao filme oito nomeações aos Óscares, incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Ator para John Hurt. Uma obra mestra e de afirmação que, para além de consolidar a carreira de Lynch, se impõe como um conto negro, miserável, mas onde ainda persiste uma réstia de esperança. De uma beleza triste inimaginável.
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