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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

António-Pedro Vasconcelos (1939 - 2024): o senhor do grande público em Portugal

Hugo Gomes, 06.03.24

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Sinto que será uma figura sobre a qual iremos debater nos próximos tempos com uma maior exatidão e menos reação, mas fora isso, para o bem e para o mal, António-Pedro Vasconcelos fazia parte deste círculo reduzido e conflituoso que é o Cinema Português. Muitas vezes expressei o quanto gostava de ouvi-lo falar sobre cinema, mesmo que discordasse inteiramente da sua visão e, claro, da sua maneira de fazer filmes. No entanto, é neste diálogo que a cinefilia parece ter se perdido, na passarela de egos, na falta de escuta do outro e na defesa da pluralidade de pensamentos.

Quanto aos filmes, é triste que a sua despedida tenha sido com o telenovelesco "Km 224", mas há alguns momentos na sua cinematografia que guardo com carinho (deixo de lado os seus trabalhos de consagração, “Oxalá” e “Um Lugar do Morto”), nem que seja pelo desempenho mais do que feliz de Nicolau Breyner em "Os Imortais", personagem que se tornou num meme vivo - "Está tudo preso, meus cabrões". Ou, como sempre defendi, pelo lado B do cinema americano que "Call Girl" proporcionou. "Deus não existe, porque se existisse era um incompetente", dizia Joaquim De Almeida à sua protegée e isco humano Soraia Chaves "disposta a tudo", ou do malconceituado "A Bela e o Paparazzo", comédia romântica que piscava o olho a um legado iconográfico hollywoodiano. Não que tenha sido a oitava maravilha do cinema português, mas entre isto e os muitos atentados que se praticam em nome do "cinema para o grande público", até ficamos bem servidos com os singelos e até humildes "contos de coração partido" narrados por Nuno Markl.

Houve um tempo em que Paulo Branco jogava poker em "Perdidos por Cem", filme de referências e brindes, ou o encanto do Porto ao som de Rui Veloso em "Jaime", e não podemos esquecer "Amor Impossível", um romance jovial autodestrutivo que chegou a (re)conquistar alguns céticos. Ficamos então sem António-Pedro Vasconcelos, despedimo-nos de um homem cuja visão do seu cinema o relegava a uma certa marginalidade.

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

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"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

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"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Perdido ao "KM 224" ...

Hugo Gomes, 20.04.22

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Ana Varela em "KM 224"

Em todas as vezes que António-Pedro Vasconcelos é convidado a discursar, tertuliar ou meramente expressar, paro e ouço com agrado, mesmo que parte daquilo que será eventualmente dito seja posteriormente contestado. Atualmente, mais que nunca, esse lugar cativo é constantemente reservado, até porque APV (carinhosamente abreviado) é um sobrevivente de um tempo que nos é cada vez mais distante. Contudo, existe uma diferença no homem cronista, cinéfilo e com vontade de “queimar as bases” de sensos-comuns cinematográficos (“‘Oito e Meio’ de Fellini marcou o início do fim do cinema de autor europeu, porque foi a primeira vez que um autor colocou o seu nome no título”, uma das suas teses), e no homem por detrás da câmara, e é sobre esse último que vos trago.  

Popularmente conhecido entre o grande público (um dos poucos que responde às “massas" com alguma “dignidade”), APV é um devoto do cinema com que nasceu e cresceu (Hollywood, Neorrealismo Italiano ou Nouvelle Vague), e nisso reflete nas suas intenções ao invés dos seus atos. Por entre ensaios mais felizes que outros (sou dos poucos que defende “Call Girl” como uma subestimada vénia à série B americana), é com “KM 224”, uma espécie de “Kramer vs Kramer” à portuguesa, que notamos esse estrangulamento de referências com uma vontade de agradar “fregueses”. É um cinema que fala e apela aos sentimentos comuns, o qual faz uso das peripécias de um irresponsável pai (José Fidalgo), uma apropriadamente do muito padronizado arquétipo “child-man” [“homem-criança”], em contraste com a assertividade de uma mãe fria (Ana Varela), como o centro do conflito de um litigioso casos de custódia. 

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José Fidalgo e as crianças [Gonçalo Menino e Sebastião Matias] em "KM 224"

Bebendo do modelo americanizado no tratamento destas personagens, mas nunca restringindo a drama de tribunal, em alternativa assume-se como uma dramédia com sede zeitgeist (APV sempre demonstrou essa ‘tentação’ de ser atual, custe que custar), “KM 224” perde o registo da possibilidade do seu cinema, ou por outras palavras não invoca o suficiente para que aquelas imagens mereçam o privilégio do grande ecrã (em oposição, os drones já se normalizam em demasia no audiovisual que as telenovelas utilizando-as exaustivamente). Com excepção do plano-zenit ao som de Leonard Cohen e o seu “Dance Me to the End of Love”, uma sequência que imprime os sentimentos daquelas personagens e do seu condutor fio narrativo como se a intriga não tivesse essa capacidade de expressão, ou um ou outro travelling, o restante resume-se a uma pobreza técnica, agravado por personagens pouco apetecíveis na sua construção e desenvolvimento (até pouco interessadas nesse aspeto), e uma guarda - essa suposta guerra infernal - que automaticamente escolhe a sua trincheira.

Por um lado é isto: “façam apenas o que eu digo, e não o que faço”. Apesar de tudo, continuarei a ouvir António-Pedro Vasconcelos. Por vezes tal acontece, vermos realizadores mais interessantes que os seus filmes.

Na noite de Lisboa, nem todos os filmes são pardos

Hugo Gomes, 28.02.22

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The State of Things / O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)

Lisboa, menina e moça, ou será antes, Lisboa, madura e experiente? Quem me conhece, sabe bem do meu fascínio para com a capital. No entanto, não vou fazer disto uma ode à cidade que me viu nascer ou dos pontos “altos” e umbilicalmente turísticos que levam, e muitos, a encontrar deleite nas paisagens banhada do rio Tejo (ouve-se em "língua estrangeira" a denominação Tagus, um ser corrente e mítico, ou lá o que seja). A cidade com que me apaixonei e que cada vez mais me leva a procurar nela uma razão para permanecer nesse estado de encantamento, contrariando o “destino” que parece relembrar das impossibilidades do mesmo, é a mesma cidade “pintada” em muito do cinema mais crítico sobre da região, aquela sem medo de demonstrar a sua decadência mergulhada em noites soturnas, uma reunião de criaturas errantes e mal-amparadas prontas para aquele “copo” duradouro no balcão contínuo e estendido em cantos do Galeto, ou do sempre resistente (ou será “resiliente”, essa palavra em voga?) Cais Sodré, a agora ruela rosada situada a poucos metros das margens “ribeirinhas”. 

Uma noite de bons vivants, ou assim pensam ser, de perversos ou simplesmente incompreendidos que penetram nos peepshows de becos, “vejam, mas não tocam”, ou dos esquecidos, amargurados, os solitários vencidos pela derrota que olham com tamanho pessimismos à bebida servida à sua frente. A noite de Lisboa não é mágica, mas é saudosista por tempos áureos, o qual nunca existiram, apenas perpetuam como lendas inconformistas entre os “trovadores de tasca”. O cenário em desenvolvimento e de expansão em “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963), com Rui Gomes e Isabel Ruth perdendo no seu interior - por entre labirintos de árvores em jardins de refúgio a salões de dança (num travelling único que desde a sua prova nunca mais o esqueci) - e cuja incompatibilidade de ambos leva o protagonista a procurar companhia numa cidade noturna cuja sua divulgação era impedida pelos altos-órgãos (“uma afronta à boa moral lisboeta”, imagino que pensaram desta forma). 

Mais tarde, nos últimos sopros do Estado Novo, essa Lisboa é capturada por personagens sem eira, nem beira, pontuadas pelas sardas de Maria Cabral como distrações para a sua crise existencial na “modernidade” levada da breca em “O Cerco” (António da Cunha Telles, 1970) ou do jovem curioso que resiste ao sedentarismo extraindo desse quotidiano falsos-profetas e Dulcinéias sem brilho em “Perdido Por Cem” (António-Pedro Vasconcelo, 1973), essa primeira longa-metragem contagiada pelos tiques da fervorosidade da Nouvelle Vague conservava uma noite sem dormidas, de encontros imediatos e espontâneos entre teatros à beira da ruína, residenciais de urgência para noctívagos sob o cuidado de um João César Monteiro de cerveja na mão e de jogos de póquer ilegais na companhia de Paulo Branco, aquelas apostas anteriormente acordadas em salões de bilhar. 

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Perdido por Cem (António-Pedro Vasconcelo, 1973)

Já na década de 80’, nos seus primeiros passos, Lisboa cedente à sua autodestruição, ilustrava-nos uma noite de atrasos culturais perfeita para “quem parou no tempo”, ou que devaneia com o inatingível. “Kilas, o Mau da Fita”, obra de sucesso de José Fonseca e Costa, título escorraçado pelo crítico da altura [Augusto Seabra], cercava ainda mais essa cidade cinzenta, de sex appeal pacóvio e de brandos costumes fingidos por uma libertinagem de moda. Os fura-vidas ou o típico alfacinha absorvido pela tentações de uma "metrópole" de bairrismo evidente e dos locais vincados não como passagem, mas de “segundas casas”. De braços abertos para receber os “fugitivos do dia” e aprisioná-los nos seus vícios. Esta capital caberia num dos êxitos da banda "Táxi" - “Sozinho” - onde a noite é mais que uma noite, uma cidade na camada de outra cidade, com os habitantes alternativos, hábitos alternativos e habitações alternativas, e a manhã indesejada porque nela pronuncia-se o fim de uma Lisboa oculta para o renascimento da Lisboa de postal.

Os “estrangeiros”, de certa forma, captaram esse “fado” proeminente, seja o escape de Wim Wenders ou de Christine Laurent, por entre rodagens e ensaios (“The State of Things”, “Vertiges”) respetivamente, os bares de cheiro a mofo soam abrigos para almas perturbadas, ou da transformação da cidade-portuária num porto imaginário onde marinheiros anseiam conhecer a sua derradeira sereia, em “A Cidade Branca” (Alain Tanner, 1983). Lisboa, o resgate de todos os pecados do mundo entranhados numa só arquitetura, com o Café Império, orgulhoso do seu vazio e ao mesmo tempo dos ocasionais clientes que aguardam sem vez, uma imagem imortalizada numa outra primeira metragem, “O Sangue” (Pedro Costa, 1989). "Sabes qual é a maior invenção do Homem?", a pergunta é feita repetidamente, do meu lado respondo Lisboa, sem sucesso. A década de 90 instalou-se, o encantado desencanto não vinga mais, a marginalidade revelou um outro tipo de “criaturas”, “leprosos” que servem como avisos por parte dos nossos pais para que as noites tivéssemos. Lisboa mudaria nestes anos e no fim dos mesmos, abrindo para a multiculturalidade e para o capital de outras coordenadas, o turismo em máximo expoente da ação. Paulo Abreu elaborou no seu ensaio docuficcional - “Alis Ubbo” - uma cronologia a essas metamorfoses, realçando a anterior “menina e moça” como uma resistente entre épocas. 

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Ramiro (Manuel Mozos, 2017)

Mas a noite, essa mesmo, regressou ao seu estado de desencanto, obviamente orbitando nos arredores dos eventos promovidos de uma cidade-modelo Time Out. Um público “fiel” aos “comícios improvisados” no interior do Galeto,dois dedos de conversas” que se alargam para imperiais e snack-bar de horas “ordinárias”. Um público fiel aos últimos redutos do Cais’, observando a sua juventude a fugir por entre os seus dedos, ao mesmo tempo que mentaliza o término dessa longa noite, de lábios aquecidos enquanto saboreiam um pão com chouriço. Um público fiel à última sessão do Nimas, após a projeção percorrem a Avenida do 5 de Outubro procurando o “cantinho aberto” para prosseguir a tertúlia cinematográfica, até porque são nessas mesmas noites que nascem as melhores dissertações sobre o Cinema, aquelas histórias ocultas ou as revelações sinceras, tudo isso acompanhado por aquele hambúrguer pós-meia-noite e da imperial tirada ao sabor da praxe. 

Esta é a Lisboa que muitos preservam, que dialogam em segredo e em código, e que lamentam pelas drásticas mudanças, aquele fecho ou figura sucumbida, a noite de outrora cada vez para lá da miragem. Essa mesmo, convertida em não-lugar nas mãos de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”, 2018), ou na passividade rústica a mercê do seu desaparecimento em Ramiro de Manuel Mozos, aliás, o homem, que talvez por outra via, pensa em Lisboa como um território cinematográfico [“Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista”, 1994], e através dele recita os seus mais requintados contos. Ou será antes, pontos de vista?

"Perdido por Cem" ou perdido por mil, António-Pedro Vasconcelos e a sua juventude inquieta

Hugo Gomes, 24.01.22

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António-Pedro Vasconcelos nunca escondeu o seu fascínio pela Nouvelle Vague que "influenciava" as mais variadas frentes do cinema mundial. E em Portugal, pela alçada de António da Cunha Telles [produção] e por via do baptizado Cinema Novo, gerou-se uma ruptura temática e formal para com o “cinema do regime”. Uma mudança impulsionadora de filmes como “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963) ou Belarmino (Fernando Lopes, 1964). Passados 10 anos desde o primeiro exemplo, o anterior crítico da revista Cinéfilo, que tem atestado o seu potencial em curtas documentais, lança-se num projeto ambicioso em trazer à luz a vaga francesa com tradução lusitana. O resultado foi “Perdido por Cem”, que partilha com a incontornável obra de Rocha, a juventude parida sem futuro que migra da ruralidade para a metrópole possível, Lisboa. Aqui, Artur (José Cunha), à boleia do fala-barato e maneirista Rui (José Nuno Martins), procura por uma cidade soturna e de uma burguesia decadente, um espaço para as suas ambições desfraldadas. 

Vasconcelos anunciou com esta obra um percurso assumido em atribuir novo cinema ao cinema português, descalcificando o seu romantismo cinematográfico mas nunca abandonando o romantismo pelo cinema. É inegável não encontrar em “Perdido por Cem” um retrato contínuo dos “verdes anos” impedidos pela repreensão social e o atraso socioeconómico que o nosso país atravessava, porém, este “Pierrot Le Fou” alternativo é demasiado preso ao seu registo de mimetização, opções que desaceleram a narrativa (ao contrário dos citados de Jean-Luc Godard que cometiam uma velocidade-TGV) e a colocam diversas vezes numa deriva pouco confortável. A escolha e persuasão pelo som direto por parte de Vasconcelos (segundo o próprio, só em França conseguiu tal feito) agrava ainda mais a incompreensão dos diálogos e por sua vez do destino destas personagens sem eira, nem beira, destinadas a rodopiar num signo à “La Jetée” (as imagens “congeladas” da obra de Chris Marker em certa maneira são invocadas naquele final voluntariamente apático). 

Perdido por Cem”, recentemente resgatado para o clube dos restaurados (graças ao trabalho meticuloso da Academia de Cinema em colaboração com a Cinemateca Portuguesa), é um reencontro com um passado datado, mitigado e explosivamente reservado que “pintaram” a capital portuguesa com um desencanto pelas suas “criaturas noturnas" (a cidade que nunca dorme mas que também nunca acorda) ou pelas aspirações resguardadas pelos “brandos costumes”. Mesmo assim, ao contrário de outros contemporâneos seus (o mais adocicado “O Cerco”, de realização do próprio Cunha Telles soa-nos mais fluido na sua linguagem), a imposição de movimento já definido, tardiamente importado, auferem efeito de cópia de segunda mão. 

É uma sensação que nos impede, infelizmente, de reter-nos aquela apropriação da emblemática sequência de “Le Feu Follet” (Louis Malle, 1963), que ao invés da ressaca sufocante conspirada pelo mundo envolto é o impasse de quem não confia em previsões futuras, “limitando-se” a viver o agora com todos os golpes a que tem direito (e aqui, o na altura “não-ator” José Cunha torna-se na mais potente arma de Vasconcelos, e de alguma maneira o seu alter-ego). Ou que dizer da abertura sem cortes, de cabelo ao vento e de diálogos metralhados pela auto-estrada em direção ao incerto. Como a grande fatia dos filmes que se cola, “Perdidos por Cem” é mais interessante por partes do que no seu corpo total. 

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.