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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"I've just met a girl named Maria"

Hugo Gomes, 15.01.25

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É notável como Pablo Larraín diferencia o tratamento dado às figuras que explora: entre o culto à persona (Jacqueline Kennedy, Princesa Diana, Pablo Neruda) e o desprezo por algumas (Pinochet, evidentemente sob o traços da caricaturas trocista), Maria Callas (1923 - 1975), a La Divina para sermos respeitosos a títulos, insere-se no primeiro grupo, amplamente maioritário. “Maria”, assim nomeado como metragem, desliza pelos corredores palacianos do refúgio doméstico da soprano, interpretada por Angelina Jolie, cuja presença brilha com uma luz capaz de suscitar inveja nas outras divindades mortais, mas é nos passeios que o filme distingue da sua anunciada finitude, uma biopic que anseia pelo alternativo, pelo onírico de fellinismos tímidos ou do realismo mágico um tanto extraído do costume artístico chileno, como espectáculo orquestrado na tendência de um último e grandioso ato. La grande finale!

É ali que encontramos Maria, cantando como Maria - ainda que o seu instrutor vocal exige pacientemente a voz de La Callas - , concedendo entrevistas a repórteres imaginários, e no oscilar entre os efeitos de uma medicina alucinante [Mandrax] e uma loucura sem igual (todo o mundo, segundo a sua perspetiva, é um palco, uma opereta ali performada na esperança de um regresso de uma soprana titular), sustentada pela lealdade inabalável dos seus servos: Ferruccio (Pierfrancesco Favino), mordomo e motorista que se torna cada vez mais corcunda (não é por falta de aviso da nossa Maria), e Bruna (Alba Rohrwacher), criada obediente, com olhos marejados a antecipar a tragédia iminente. Uma ídolo de barro que se deteriora com a crueldade do tempo, um tempo que não sara, um tempo ingrato e perverso, e essas figuras secundárias sustentam uma viagem imaginária, errática, repleta de “salta-pocinhas” temporais que levam espectador, como a sua Maria, de volta às suas raízes, marcadamente nos medos e paixões, estas por vezes desnutridas, além de romances pomposos e castradores, como a do magnata grego Aristóteles Sócrates Onassis (aqui encarnado pelo ator turco Haluk Bilginer) e a sua comunidade da fealdade.

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Mas no apartamento luxuoso, reflexo de uma fantasia onde o som ganha dimensão, ecoa e amplifica o desejo de Maria ser ouvida uma última vez, ou melhor, La Callas exige o holofote perdido, aquele que o temperamento de vedeta e as más opções desde então a levaram a cometer. Para isso, procura a voz que lhe escapou, um canto do cisne de uma diva confrontada pela fragilidade da mortalidade, a vida como a morte, são deveras pequenezas e mesquinhezes à sua aura. Afinado filme que só demonstra que amores dados por Larraín resulta em virtuosos enquadramentos, e Jolie, possivelmente relegada a estrela cada vez mais rarefeita numa indústria gradualmente infantilizada, renasce nas pisadas de um outro astro maior. O show é dela, o encenador Larraín o seu mais tenro cúmplice. 

Maria”, biografia da constelação larrainiana, o culto da pessoa e do artista, não apenas de Callas, mas da sua essência artística, o artista propriamente dito, lutando contra uma modernidade que vê estes devaneios e egos autodestrutivos num cinismo atroz. Um guia turístico até, mas com as emoções lá no sítio. 

Music is born of misery. Of suffering. Happiness never produced a beautiful melody.”

Só a estética fica ...

Hugo Gomes, 04.11.21

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Após a experiência de ver "Eternals", conseguimos perceber a marca deixada por Chloé Zhao neste novo “épico por entre tempos” da Marvel e do seu Universo Cinematográfico sob a custódia da Disney: os cenários falam por si e está aqui aquela desolação imensa que reduz as personagens e os seus problemas a nada (e, ao mesmo tempo, a tanto) perante a dimensão do Mundo.

Mas a realizadora aqui é exatamente isso - estética - porque a identidade transparente de vários filmes que culminou no oscarizado “Nomadland” é traída pela força da máquina de produção Marvel. O espectro fica e engana-nos com a sensação de autoralidade inexistente. E nem se pode dizer que a culpa seja dela, mas antes do sistema de Hollywood em que surge inserida e a coloca como refém de uma empresa gigantesca e do seu projeto megalómano de fecundar e continuar um universo povoado de herois e vilões. Fora das lamentações autorais e artísticas, "Eternals" poderá ser aos olhos dos fãs um rebaixamento completo do Universo Marvel pois é um pastelão de duas horas e meia de personagens atiradas ao pontapé para conquistar um espaço que não lhes pertence.

Era uma aposta arriscada, mas não inglória, a de trazer à vida do cinema estas figuras secundárias e desconhecidas para muitos comuns dos mortais espectadores, apenas devidamente reconhecidas pelos fãs mais entranhados em tudo o que é Marvel. Para compensar, juntou-se um elenco estrelar, diversificado e aclamativo (Angelina Jolie a desafiar o seu “star power”) e a seguir segue o resto: os valores de produção, o CGI sem falhas aparentes, as sequências de ação movidas pela tecnologia que confirmam que tudo é agora possível, acrescidos da exaltação do romantismo e moralismo em vésperas do Armagedão. Portanto, "Eternals" é e não é um filme de Chloé Zhao. Eis um objeto convencional e convencido da sua complexidade (e vencido por ela), mas que constatamos com o tempo que é mais presunção no meio dos clichés de uma narrativa que praticamente se resume a "flashbacks" atrás de "flashbacks", tendo como brinde... mais "flashbacks".

Tudo isto é visualmente bonito? Sim, mas insuflado, automatizado e, pior de tudo, sem alma e sem personagens. Apenas uma "prova dos nove" para quem está habituado e se queixa do “mais do mesmo” da Marvel, aqui a testar a profunda devoção dos seus fãs.

Aqueles que me desejam a morte, a minha como a do “star system”!

Hugo Gomes, 19.05.21

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Num período, como este que experienciamos, onde grande parte do cinema americano é dependente de específicos polos “criativos” como o cada vez mais vincado subgénero de super-heróis ou o orientado e tido “cinema independente norte-americano”, uma recente produção encabeçada por Angelina Jolie faz-nos suspirar perante os resquícios de uma extinta “star system”.

Aquilo que era visto como a grande força de uma indústria, a sua comercialização de personalidades “fabricadas” que competiam por legiões e legiões de seguidores, atingiu o seu auge durante a época de ouro de Hollywood tornando-se esporádico e por vezes até (aparentemente) infalível até à chegada dos anos 2000. O que aconteceu não foi bem simples, mas o “salto em queda livre” obteve coordenação com as drásticas mudanças nos hábitos dos espectadores, da natureza das produções (cada vez mais focadas em personagens adaptadas dos “quadrinhos”) até à migração de passadas “grandes estrelas” para as séries televisivas, que por sua vez transportavam as audiências mais velhas deixando as grandes telas à mercê de outras faixas etárias.

Curiosamente, já Anthony Mackie durante a sua intervenção na Comic Con de Londres (em 2017), quase em modo de confissão, apontava a baixa qualidade da Hollywood contemporânea com o declínio do sistema estrelar, isto, perante um público que salivava por novidades da franquia “The Avengers”, o qual o ator participa enquanto personagem Falcon. “Já não existem mais ‘movie stars’. Anthony Mackie não é uma estrela de cinema, mas o “Falcon” é.” Hoje em dia entendemos o quanto desesperante que algumas antigas estrelas de cinema resistem à sua própria decadência, em esforços e resultados humilhantes, e nomes, outrora movedoras de multidões, como Will Smith, Tom Cruise ou Arnold Schwarzenegger, lidam com verdadeiros fracassos de bilheteiras, concorrendo com propostas mais familiarizadas ao público-alvo da indústria atual. A esta altura, o leitor desespera pela volta de 180º dada numa crítica a um filme como “Those Who Wish me Dead”, segunda longa-metragem dirigida por Taylor Sheridan (quatro anos depois de “Wind River”), mais popular enquanto argumentista de “Sicário” e do neo-western desconstruído “Hell or High Water”.

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É bem verdade que este thriller de ação ambientado no Estado da Novo México, em plena estação de fogos florestais, encontra espaço no circuito comercial e na atenção dos medias e dos espectadores menos dados a efemérides cinéfilas como o filme de Angelina Jolie, realçando a réstia de poder numa estrela moribunda, mas ainda capaz de erguer, enquanto Atlas, um produto genérico como este. Sheridan toma posse de rascunhos do western, modelo de um enredo atualizado e, por vias de algumas piscadelas, atual (sendo este um guião com colaboração de mais outras quatro mãos e baseado num livro de Michael Koryta).

A subcamada política, porém demasiado sugestiva de forma a evitar confrontos ideológicos, funcionam como fuel nesta demanda moralizante (ao estilo desse velho género norte-americano), em que a personagem de Jolie (papel considerado a Nicolas Cage), uma bombeira acompanhada pelos seus fantasmas interiores, é “apanhada” no seio de um “complot”. A já batida equação do “homem errado, no sítio errado e na hora errada”, neste caso, obviamente, a mulher equivocada numa derivação de “Intriga Internacional” (“North by Northwest”), falha em “abraçar” os seus lugares-charneiros destas produções, pela desespero/apelo à emoção lacrimejante e por fim, como mero pormenor, os antagonistas, involuntariamente “inofensivos”. É como se os dois larápios de “Sozinho em Casa” dessem de caras com a “Tomb Raider” … uma luta bem desigual.

Embora não esperássemos tamanha viragem no género, “Those Who Wish me Dead” cumpre todos os requisitos necessários para entender-se como produto de ação passageira, e o fator Jolie opera aqui como um dos destaques salientes disto tudo. Não … não é a ressurreição do “star system” hollywoodesco, e sim, o espectro dessa sua (anterior) forte presença entre nós.

A rainha Angelina Jolie regressa para uma sequela que ninguém pediu

Hugo Gomes, 16.10.19

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Vindo diretamente da gaveta das "sequelas que nós não pedimos" chega-nos "Maleficent: Mistress of Evil", a continuação daquela reinvenção de 2014 com enredo centralizado na vilã do famoso conto de Charles Perrault "A Bela Adormecida".

Dirigido por Robert Stromberg, "Maleficent" tentava recriar os acontecimentos e a estética da popular animação da Disney de 1959, para depois empurrar para uma espécie de "confessionário" condescendente da antagónica feiticeira. A escolha de Angelina Jolie foi provavelmente a razão da existência desta versão, mas nada nos preparava para o revisitar daquele “mundo mágico” profundamente tecnológico e povoado por personagens ingénuas e de papelão.

Contudo, vamos por partes. Nesta sequela, sob o pretexto de liberdade criativa (só pelo nome que fica a graça), vemos Maléfica a tentar reconciliar a sua natureza com o instinto maternal gerado pela sua relação com Aurora (Elle Fanning). Com a notícia de noivado da jovem que a feiticeira é impulsionada para um dilema existencial e moral: conviver harmoniosamente com os humanos que tanto odeia ou declarar guerra sobre eles. No meio de isto tudo, surge Michelle Pfeiffer como a rainha Ingrith, pronta para o “braço de ferro” com a dita Mestre do Mal.

Colocando desta maneira, o segundo "Maléfica" parece ser uma atualização do primeiro filme, provavelmente mais rico visualmente e sonoramente, bem como emancipado da estrutura emprestada de "A Bela Adormecida". Mas o que acontece é um crónico vazio artístico: perante o frenesim digital, as criaturas computadorizadas e as paisagens sintéticas de encher olho, nada aqui se resolve.

Na realidade, "Maleficent: Mistress of Evil", com assinatura Joachim Rønning ("Kon-Tiki"), é uma produção condenada à extensão de uma suposta imagem de marca. Por vezes infantilizada no que requer a personagens e as suas ditas emoções (um romance que fraqueja em atribuir ênfase ao suposto tom trágico), transformando conflitos de metaforizada diplomacia internacional em meras e inconsequentes brincadeiras de “faz-de-conta”.

Mas o pior é mesmo um argumento traduzido numa salganhada de lugares-comuns, tópicos apressados e diálogos rudimentares e sem espessura. É um brinde descartável para motivar ainda mais a industrialização da fórmula. E apenas com Angelina Jolie, sedutora e com um certo prazer na sua travessura, é que este “parque de diversões” mira para alguma (e não suficiente) dignidade.

Quando o maléfico já não é assim tão maléfico ...

Hugo Gomes, 10.06.14

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Em “Maleficent” (“Maléfica”) podemos evidenciar duas tendências que parecem virar moda para os lados de Hollywood (e não só!). A primeira é a humanização da figura antagonista, ou seja, do vilão, cada vez mais visto como uma personagem incompreendida e cuja malvadez é sempre fruto de análise psicológica. Como vivemos numa era onde o politicamente correto domina, todos os atos de crueldade destas mesmos personagens são ecos de traumas anteriores ou razões desculpáveis. A segunda é a modernização dos contos de fadas nos dias de hoje, o que com a iliteracia das novas gerações em relação às histórias originais poderá providenciar uma ignorância ou distorção da «realidade». Neste último ponto, o argumento utilizado e aceite na indústria é que como a Disney possui os direitos de tudo e todos no que diz respeito a estes contos folclóricos, e sendo “Maléfica” uma produção diretamente vinda de “A Bela Adormecida”, não estamos perante a história dos Grimm ou de Charles Perrault, mas sim da versão de animação de 1959.

Nesse mundo animado vangloriado pelos atributos técnicos, Maléfica (a personagem) talvez tenha sido o grande foco de interesse de uma história velha e repetitiva desde os tempos dos nossos egrégios avós, e já nesses anos a Disney sempre parece ter valorizado os seus vilões como foi o caso, a força condutora de todo uma intriga regida pelo eventual final feliz. Talvez seja por isso que uma nova avaliação desta antagonista fosse motivo que chegue para um spin-off deste género, mas será que realmente precisávamos?

Apesar da dedicação de Angelina Jolie em tornar-se num boneco da Disney (em principal destaque nas sequências “arrancadas” integralmente da animação original), “Maléfica” sofre de outro grande mal: a modelização de um mundo fantástico, sendo que a história desconhecida da personagem de Angelina Jolie, toda aquela harmonização entre criaturas mágicas e imaginárias e as intocáveis florestas dotadas de fadas e pós de “perlimpimpim”, seja algo visto e nada de surpreendente, até mesmo para as mais novas audiências. Tudo isto acompanhado por um visual tecnicamente competente, pudera, não fosse o facto de Robert Stromberg (vencedor de dois Óscares pela direção artística em ”Avatar” e a toca do coelho de Tim Burton que fora  “Alice in Wonderland”) estar na direção (os efeitos visuais talvez sejam dos mais qualitativos deste ano). Mas até nisso sente-se um certo desleixo, principalmente nas posições de luz e o uso desta.

Para complicar as coisas, “Maléfica" ainda expõe as vulnerabilidades do argumento quando estamos perto do final, onde parece que a produção apercebeu-se do tempo da duração e decide incutir um desfecho cínico, apressado e nada emocional. Aliás, já que falamos em tendências atuais, não poderíamos deixar de referir que esta nova produção da Disney surgiu numa era pós-”Frozen”, ou seja, em que a emancipação feminina e o fortalecer dos laços familiares são alternativas encontradas para expor uma ausência de ingenuidade romântica. Sim, “Maléfica” vale a pena por Angelina Jolie e até mesmo pela doçura de Elle Fanning, mas existe de momento uma necessidade urgente de preservar os antigos contos e não transformá-los em rotineiros guiões distorcidos de Hollywood. E quanto à transformação do vilão, a Disney fez bem melhor e sobre um tom mais descontraído em “Wreck-it-Ralph”, por exemplo.