Takes Monstra 2022: Morrer ou sobreviver, porque a animação é mais do que um instrumento para crianças
Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente
“Matar eu sei, e mato muito bem”. O cartoonista brasileiro Angeli fez da sua conhecida irreverência um extra mortal, a capacidade de dispensar afetivamente as suas personagens, conduzindo-se a um estatuto de Deus perante elas. A criação para que no momento exato, desfira o golpe de misericórdia. Angeli é convertido em personagem de stop-motion em “Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente”, animação com traços intimistas do artista que embarca na sua plena crise artística, como também a sua relação (ou aparente desapego) com as personagens que geraram do seu imaginário, incluindo o punk anarquista do título até ao seu pesar em forma de Rê Bordosa.
Para qualquer adepto do trabalho do cartoonista na igualmente irreverente revista “Chiclete com Banana”, o trabalho assinado por Cesar Cabral, apresenta-nos uma descida existencial a essa mente que como todos os artistas soa-nos perturbada, e que o seu ato predileto, o de “matar” personagens interpreta-se como um forçado crescimento tendo em conta que estas suas criações são parte do seu “eu”. Porém, este é um filme que desafia o próprio Angeli, colocando-o em xeque com a questão das questões: o que adianta crescer se isso implica perder um pouco de nós? Laerte, outra importante cartoonista do panorama brasileiro, deixa aqui a sua presença neste delicioso híbrido de tom rançoso para com a restante Humanidade. Nos debates que decorrem em tom de urgência atual, os limites de humor vão ao encontro da personalidade destes humoristas de satirizar os antagonistas da sociedade assim como os hipócritas da mesma.
Even Mice Belongs to Heaven
Há qualquer coisa de Antoine de Saint-Exupéry neste “Even Mice Belongs to Heaven” da dupla Jan Bubenicek e Denisa Grimmová, um tom adocicado e igualmente sábio que se aproxima da obra-mestra “O Principezinho”, conseguindo manobrar pelas ópticas das diferentes faixas-etárias. Ora, para quem acreditar piamente que este conto adaptado [do livro de Iva Procházková] em stop-motion - de uma rata e uma raposa que se reencontram no Paraíso e que a partir daí estão destinados a encontrar o seus próprios e respectivos caminhos (o sentido da vida verdadeiramente) - se resume a um filme exclusivo e de linguagem unicamente dirigida para o público mais infantil, perderá com isso a estrutura de um ensaio de superação que contraria facilitismos sensíveis por detrás da sua camada aparentemente imatura.
É uma história sobre a morte, aliás, sobre a perda direta e indiretamente, sem eufemismos nem suavidades, trazendo tais territórios e os tratando sem contradições. Porque há que lidar com as nossas perdas, sendo a partida destas a base da nossa maturidade, mas acima de tudo é a naturalidade com que encaramos a mais derradeira das perdas, a nossa existência, lição encoberta numa sociedade que parece esconder a sua mortalidade. Temas e abordagens constantemente negligenciadas para os mais novos, em resposta de uma preservação ainda maior do simbolismo da inocência (ou ingenuidade) na infância.
Hoje, desejamos atrasar até à extensão dos dias a Morte como tópico, dando a este universo infantil uma sensação anti-despedida, nada deixa ser vencido tudo tem uma solução. A grande fatia de filmes de super-heróis, por exemplo, tem-se sobretudo esquivado desse derradeiro destino encontrando alternativa ao fim dessas mesmas personagens, priorizando os seus atributos comerciais, mas cujo seu sucesso tem contributo para uma indiferença com a morte desde os “verdes anos” nesta geração de espectadores. Já não se fazem “Bambis”, mas "Even Mice Belongs to Heaven” é um recomendável antídoto.
Flee
Podemos pensar que o género do documentário é um género dependente das imagens alicerces ao seu tema, ou seja a necessidade da sua ilustração como autenticação dos factos, o que aponta-nos para uma determinada questão - o que fazer quando as imagens estão ausentes? O cambojano Rithy Panh tem contornando essa via através de uma figuração às suas memórias ou as dos outros com o utensílio de modelos, instalações artísticas ou cemitérios instantâneos. São as “Imagens que Faltam”, alusão à sua aclamada obra de 2013 [“The Missing Picture”] que tão bem serve como mote da sua carreira. Já “Flee”, de Jonas Poher Rasmussen, a “falta de imagens” tornam-se na sua maior arma, condensando as memórias de Amin (refugiado afegão que se abre no seu divã para contar a sua história de vida e de sobrevivência), a uma animação de rotoscopia que deixa fluir esse aspecto memorialista sem nunca confrontá-lo com real (neste caso a imagem), mesmo que as de arquivo surjam ocasionalmente para temporalmente contextualizar.
Enquanto isso, Rasmussen reafirma o universo da animação para lá do “entretenimento infantil”, e sim, um motivador de narrativas, um engenho criativo para que o cinema não reduza à sua estandardizada formalidade. Apesar disso, não podemos fugir a um simples factor, o cariz humanista com que “Flee” emprega no estatuto “refugiado”, palavra que tem-se colado a uma definição pejorativo e de fácil uso político, e ao mesmo tempo apontado para esse coletivo e concentrar numa história individual com os seus individualismos. É na base da empatia de um só indivíduo que basta para estimular uma optimização nossa enquanto seres humanos. “Flee” é, em todo o caso, um filme humano sem nunca vergar pelo panfletarismo ou a militância. De compaixão e de paixão, é do que é feito este cinema.
La Traversée (The Crossing)
Enquanto “Flee” remete-nos ao individualismo na condição de “refugiado”, nunca escondendo as suas origens para bens identitários da sua personagem (Amir vive da sua nacionalidade e dela parte para o seu debate existencial), “La Traversée” / “The Crossing” de Florence Miailhe especifica um país não identificado para restringir-se a um planificado exemplo de história-base desse mesmo campo. Sabendo que nos é avisado desde a abertura da obra que o filme abordaria um relato na primeira pessoa e de vivências em si marcantes para a autora, não podemos deixar de sentir uma estrutura Dickeana de infortúnios e desventuras, ora fabulistas, ora próximas às vivências de milhões. É um “coming-to-age” no limite das suas forças, sem com isso desligar-nos ao grande papel do filme em questão, a sua estética, desenhos à mão que ilustram esta jornada de jovens deslocados das suas origens, rodeados por “lobos famintos” que se aproveitam do seu miserabilismo. Nesse aspecto, é uma aposta arriscada que encontra interesse no seu artesanato, mas que se distancia do calor humano destas personagens. O belo fica, mas tudo soa passageiro, e até certo efeito, como a vida, onde as possibilidades são efêmeras, reféns da vontade do tempo.
My Sunny Maad
“Com 'Swallows of Kabul', o recente 'Flee' e agora o seu ‘My Sunny Maad’, ficamos com a ideia de que a melhor forma de chegar ao Afeganistão é por via da animação?” Perguntei à realizadora e animadora Michaela Pavlátová (do oscarizado “Reci, reci, reci …”), confrontando-a com este “agrupado” de coincidências. A resposta que obtive não foi esclarecedora. Coincidências, será isso mesmo, ou a impossibilidade de retratar um país algo abstrato, que oscila entre mudanças sociopolíticas, e que atualmente vive essa regressão deixando o ocidente e o seu desejo de ocidentalização em um estado impotência? Questão que faço sem esperar resposta alguma, contudo, é com filmes como este “My Sunny Maad” que percebo a quão próxima a animação é para nós.
Inspirado no livro “Frista” de Petra Procházková, o enredo começa e prossegue num “olhar estrangeiro”, uma infiltração a uma família afegã que não é mais do que o espelho da sua sociedade. Nomeadamente “My Sunny Maad” é uma denúncia às diferenças entre homens e mulheres nessa contemporaneidade, pressentindo ser a história de uma mulher europeia que cai na “armadilha” do “exotismo” do seu marido, acabando por se aprisionar a esses costumes que a minimizem enquanto ser humano. Porém, é aí que a “porca torce o rabo”, Pavlátová não tem intenção de elaborar um panfleto unicamente focado no direito das mulheres, pintando elas como vítimas nas mãos de “homens-bestas”, a sensibilidade dela encontra-se sobretudo no retrato desses mesmo elenco masculino, brutos ou dóceis incompreendidos, ou acima de tudo, vítimas da sociedade onde inserem. Rompe maniqueísmos, conquista-se o espectador pela cativação com este mesmo e disfuncional grupo familiar.