Silêncio! Andrew está a pensar!
Martin Scorsese, Andrew Garfield e Adam Driver na rodagem de "Silence" (2016)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Martin Scorsese, Andrew Garfield e Adam Driver na rodagem de "Silence" (2016)
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Será “Silence” a esperada epopeia da carreira de Martin Scorsese? O projeto constantemente adiado, por diversas vezes caracterizado como o “filme de uma vida” para o nosso movie brat, resultou numa obra que falha os objetivos do cinema mais ocidental.
Scorsese, atualmente detentor de uma liberdade vivida nos grandes estúdios (e "The Wolf odf Wall Street" foi o exemplo dessa “delinquência criativa”), afasta-se completamente do círculo fechado do chamado “Filme de Óscares” e aposta num storytelling sobretudo oriental. Aliás existem referências, planos “copiados” e uma fotografia que nos situa no foco do cinema nipónico, passando por Mizoguchi, Ozu e claro, visto o realizador ser um assumido admirador, Kurosawa. Talvez essa panóplia cinéfila nos satisfaça como o prazer de uma memória arrastada numa sétima arte fora dos habitués de Hollywood.
Mas “Silence” reserva-nos mais que uma loja de souvenirs. É um filme sobre a fé, concebendo (da mesma maneira que “Last Temptation of Christ” o fizera em 1988) um autêntico lobo sob vestes de cordeiro. Curiosamente, o primeiro visionamento de “Silence” ocorreu no Vaticano sob o olhar de cardeais, bispos, jesuítas, e por último e não menos importante, o Papa Francisco, que declarou o seu agrado com o resultado final. Mesmo sendo um filme de fé (Martin Scorsese é um homem crente), “Silence” apodera-se de uma história de época (baseado no livro de Shûsaku Endô, anteriormente adaptado por Masahiro Shinoda em 1971) para entranhar-se como um statement crítico às bases das instituições religiosas, um enredo que se inicia com a viagem de dois padres jesuítas portugueses a um Japão feudal que teima em não ser “batizado”.
A perspetiva cristã evidencia-se como uma “pala”, cozendo-se em tendências colonialistas e obtendo como resposta a selvajaria de uma civilização do Oriente. Andrew Garfield (que aprendeu japonês, mas nunca uma palavra portuguesa com excepção de “Paraíso”) assume o protagonismo em mais uma “cruzada” após o fracasso de “Hacksaw Ridge”, o filme antiético do extremista Mel Gibson. A sua personagem em “Silence” serve como uma catarse às entidades heróicas que hoje tendem a posicionar-se na base do cinema norte-americano. Porém, a câmara não filma tal heroísmo. Scorsese recusa promover o seu catolicismo materializado. Passando por um efeito “desastre” à lá Herzog, sentimos neste primeiro terço, os toques de uma animalidade produtiva, algo que possa ser equiparado a um “Fitzcarraldo”.
No segundo tomo, somos envolvidos em personagens nipónicas budistas que, gradualmente, rasgam os seus disfarces de antagonistas sádicos. A partir deste momento o confronto entre as duas crenças levam o espectador a uma tremenda “faca de dois gumes”: De um lado, os métodos primitivos de induzir a fé instantânea e, do outro, a arrogância do nosso herói em “espalhar a sua verdade”. A caminho recto do desfecho é que contactamos com a dimensão crente de Scorsese que se esconde num filme multi-disfarçado, nada contra a essas declarações de fé. Aliás, a Humanidade de hoje é incapaz de viver longe de tamanhas convenções afetuosas, idealistas e até políticas (“a religião é o ópio do povo” como dizia Karl Marx). O que de impressionante “Silence” possui na sua jornada é a sua fidelidade com um template meramente oriental, a evasão ao evangelismo e a concretização de uma fé unificada.
“Step on me, my Child”, sussurra Jesus num verdadeiro ato de aparição, ligando este filme fora do seu tempo, seco e empestado pelas inúmeras referências (hoje incontornáveis), ao seu “Last Temptation of Christ”, umbilicalmente unindo a mistificação do primeiro com a desmistificação do martírio do segundo. O sofrimento em via-sacra de Garfield, as suas arrogantes aspirações em tornar-se num Messias de uma Igreja megalómana, pode muito bem tecer o paralelismo com a sedução de Satanás perante o Nazareno no seu retiro no Deserto, na dita obra de 1988.
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