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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Caros Camaradas, até à Eternidade, assim nos prometeram …

Hugo Gomes, 05.05.21

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“Que sabes tu sobre o Estaline?

A certa altura alguém pergunta, retoricamente, digno de alguém que experienciou um sonho, uma concretização e que se depara agora com uma ilusão, e possivelmente, a deceção total, mas antes, é a negação que a faz reagir agressivamente perante a deturpação da memória Estalinista. A utopia comunista com que a União Soviética abraçou de todas as maneiras, e que após a morte do seu “anfitrião” – Josef Estaline – resiste em manter-se à luz das suas “glórias”. Infelizmente, o fim de um ciclo é somente adiado. A ideologia sobrevive, mas afinal o que é que resta dela?

Dear Comrades!” investe num experimento, um espelho de fatalidades de um regime nos seus últimos suspiros e dos seus peões, totalmente emergidos no fracasso, e para isso resgata um episódio que apenas fora tornado público em 1992 (até lá manteve-se na confidencialidade). O realizador russo Andrey Konchalovskiy, ainda contagiado com a fotografia preta e branca do seu anterior conto de Holocausto – “Paradise” (2016) – e cooperando novamente com a sua mulher, a atriz Yuliya Vysotskaya, leva-nos ao massacre de Novocherkassk, decorrido naquela mesma cidade russa em 1962, em que uma manifestação de operários transforma num massacre orquestrado pelo exercito soviético e pela KGB.

O filme não tende a reduzir-se a um dispositivo de “evento à tela”, aproveitando o acontecimento como uma reflexão da queda intrínseca de um “gigante vermelho”. “Dear Comrades!” espezinha o comunismo soviético astutamente através da ridicularização do dito “O Grande Outro”, que segundo o filósofo Slavoj Žižek corresponde a todos aqueles que, com a exceção do simbólico líder, transportam e fazem cumprir uma ideologia, crendo nela. O que acontece é que Konchalovskiy detalha as operações de contenção, sem nunca esconder-se no temor ou no fascínio, todas as figuras expostas nestes bastidores de “Poder” (entre aspas, porque tal força converteu-se em algo metafórico) são incapacitadas, comprometidas e acima de tudo, fragilizadas pelas suas evidentes fraquezas.

Depois do ridículo, segue-se a emoção, o apelo caloroso, a réstia humana que nos “manipula” ou que nos guia para ceticismos cruéis (“em que devo acreditar se não for no comunismo?”). Com o afastamento da farsa incrustada, “Dear Comrades!” sugere a dramaturgia como solução à frieza do seu tecnicismo. Perde-se as estribeiras ao comentário de peripécia e avança-se no deboche enraivecido. Depois da fantasia, o que resta? Para estas personagens, esperar com um otimismo forçado (“vamos tornar-nos melhores”). A ilusão é o último reduto e nós não esperaríamos outra coisa!

O Arrependido, O Orgulhoso e a A Absolvida

Hugo Gomes, 12.04.17

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Não é negação, mas sim saturação. O Holocausto parece ter atingido o seu ponto de ebulição no Cinema, ou há ideias e novas abordagens para apostar, ou se verga, como se turismo de tratasse, numa reconstituição crowd pleaser. Conta-se pelos dedos as “inovações” nestes lugares, não comuns, mas tão presentes no nosso “eu” moral. Em tempos de populismos e “revisionismos históricos” (termo técnico trocado pelos historiadores para amenizar a evolução do negacionismo), existe uma importância humanitária, como cultural, para recordar estas “horas negras” onde a sobreposição ideológica acima das condições humanas obtiveram resultados catastróficos que ainda hoje ecoam. Mas até que ponto deveremos recordar essas atrocidades? Andrei Konchalovsky parece ter encontrado uma nova perspetiva ao tema através do ponto consequente da desgraça da ideologia política. Paraíso, o título, resume, não ao Reino dos Céus, mas à emancipação de uma ideia, de uma comunidade “moral high ground” onde a política adquire a sua consistência massiva.

Um Paraíso para o nosso povo. Um Paraíso alemão“, declara de peito erguido o oficial Khelmut (Christian Clauss) nos interrogatórios que intercalam a narrativa desta obra envolvida em tons cinzentos. Ele é um homem decente, segundo as doutrinas globalmente conhecidas de Henrich Himmler, de um coração abrangente, mas completamente embebido pelo sonho Nazi partilhado por Hitler e os seus seguidores do partido. Khelmut é a prova de que a intolerância juntamente com a ignorância condiciona-nos como humanos e que o passado nos confronta, igualmente unindo-nos a essa mesma jornada moral. Para o nosso oficial, a ligação direta para essa consciência deveu-se a uma “princesa russa”, caída em desgraça num campo de concentração. Olga (Yuliya Vysotskaya) é essa aristocrata agora reduzida a um número, um número a ser subtraído pelas contas dos alemães, e a sua vivência longínqua com o oficial que se vai tecendo numa réstia de esperança numa fuga iminente – “achas que há um paraíso para todos?“.

Andrei Konchalovsky recria aqui um embate entre ideologias e golpear perspetivas, porém, e infelizmente, tudo é feito através da invocação dos lugares-comuns, do requisitar da violência gratuita que nos explicita o óbvio – a desumanidade das SS. Assim, o realizador parece tropeçar num evidente maniqueísmo, principalmente tendo em conta um certo teor nacionalista, onde guarda rancor de gerações aos germânicos e compaixão pelos seus conterrâneos (basta ler a dedicatória deixada pelo mesmo no final da fita). Mas apesar dessa motivação obscura, Paraíso desfragmenta em cacos um filme nascido nas ruínas que se expande como uma panóplia de conhecimentos ideológicos isolados e algumas catchphrases que ficam para futuras reflexões, mais do que todo o filme (“O mundo sem corrupção, seria completamente desumano“).

Como se não bastasse, as decisões narrativas culminam num plot twist com mais 500 anos, e bem português porventura. A invocação do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, aqui a soar como um puro registo de manipulação, da desgraça sofredora do cristianismo e o julgamento dos três cabecilhas dos respetivos grupos. No final das contas, o que sobra é O Arrependido, O Orgulhoso e a A Absolvida.