O farrapo humano
Eis o salto triunfal de André Marques ao ambicionado território da longa-metragem - após anos e anos dedicados ao formato curta, numa trajetória elogiada nos círculos cinéfilos, críticos e até mesmo académicos [“Yulya”, “Luminita”] - "O Bêbado", um título que por si sugere o tom cruel acarretado pela obra, é um exemplo a merecer ser replicado de como o cinema português poderá adquirir a capacidade de cativar um vasto público sem o auxílio (ou lê-se rendição) da linguagem televisiva.
Na verdade, deparamos com uma anti-telenovela, um ensaio incorporando em formalismos e terminologias identificáveis do cinema romeno - focando-se no quotidiano e extraindo dele uma crítica social, a estética crua e a câmara predatória para com o protagonista -, ostentando um guião minuciosamente trabalhado, verossímil e silenciosamente eufórico, refletindo o desespero sufocado do protagonista, Rogério (interpretado por Vítor Roriz, arrebatadoramente lacónico e corpóreo), o nosso “bêbado”, um constante refugiado no álcool com intuito de "anestesiar" a sua existência fragmentada e silenciosamente torturante (curiosamente a imagem do filme torna-se mais enevoada de forma a acompanhar o estado de embriaguez da personagem).
Recebemos como cartão de “boa-vindas” nesse seu mundo ao som de "Quero Viver", a música póstuma de António Variações, interpretada pelo grupo Humanos, uma representação desses desejos ardentes escondidos sob a sua carcaça desanimada, contrastando com o retrato miserabilista de uma decadente Setúbal, aqui equiparada a periferia de sonhos nunca alcançados. Contudo, o filme evita cair no cliché do "farrapo humano" e no moralismo declaradas em guerras contra o alcoolismo, foge do panfletarismo, estabelecendo a sua fixação pela ficção. A sua ambiência é dotada por detalhes de um quotidiano identificável, acreditamos piamente naquele registo, naquele personagem, naquelas dores e naquela realidade, e é por essa via que Marques marca o seu devido ponto, mas não termina aqui.
É que quadros dardaneanos encontram-se demasiado presos a um cansado discurso social, aqui, é o ‘brinde’ que surge na passagem do primeiro ao segundo ato que apimenta a narrativa, fazendo dirigir por outros caminhos, meio revoltosos é verdade, de um tom de vigilantismo acidental, o “Taxi Driver” à portuguesa que muitos adorarão descrever. O ponto extra deve-se aos seus minimalistas diálogos, principalmente oriundos da personagem de Rogério, mais performativo e expressivo que apenas um debitador-de-texto, um filme que funcionalmente comunica através das suas imagens, não dependendo da verborreia.
Uma lição estudada, executada e bem-sucedida, do qual “O Bêbado” se orgulha de apresentar como artifício de uma estreia fulgurante no formato longa. André Marques consegue um crível conto de mártires residentes da nossa contemporaneidade. Brinde por isso!