O meu corpo, os meus géneros ...
Chegamos a mais um trio de curtas emparelhadas como uma sessão única, utilizando a sua temática unificadora como “desculpa” para a sua aliança. “Ovnis, Monstros e Utopia: Três Curtas Queer” [“Entre a Luz o Nada”, “Sob Influência”, “Uma Rapariga Imaterial”] reúne três obras, fruto de três produtoras diferentes [“Primeira Idade”, “Promenade”, “Terratreme”], mas cujas vertentes artísticas parecem saltitar de filme para filme. Enquanto o seu cuidadoso lançamento em junho assinala o içar da bandeira arco-íris e o punho certeiro em nome do Pride, como soa ordenar este calendário temático.
Contudo e quanto aos filmes, mesmo entrelaçados no selo queer, é curioso encontrar uma voz antagónica a essa mesma categorização, e é dela que gostaria de partir. Odete, atriz , performista e personagem principal de “Sob Influência” de Ricardo Branco - e também participante do festival de “Entre a Luz e o Nada” de Joana de Sousa, e compositora musical de “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho -, brindou-nos com um questionário habitual, sempre pontuado pela produtora Promenade nas suas redes sociais. É um hábito na sua conta de Instagram: os atores e agentes artísticos desta casa são desafiados a enumerar cinco coisas que adoram e cinco coisas que odeiam, curiosamente, Odete assinala o termo “queer” na lista dos ódios.
Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)
Não entendendo bem o seu contexto, mas junto-me a ela, não em odiar [palavra demasiado forte], mas em questionar essa gravidade orbital trazida pelo uso da palavra queer. Mesmo conhecendo a “estética queer” no cinema - uma prolongação do camp com mais requinte visual - neste caso, oponho a categorização como um catálogo, um sectarismo que vai contra aquilo que as três curtas parecem/desejam manifestar – o romper de barreiras (leia-se géneros, sexualidades, códigos pré-socialmente estabelecidos).
Quanto às curtas propriamente ditas, os três elementos impostos no título da sessão são referências simbólicas, signos presentes em cada uma delas, ou por um lado, alegorias e personificações. Comecemos então com os “Ovnis”: “Entre a Luz e o Nada”, o lado intergaláctico de uma rave organizada em edifícios ao abandono, um filme sensorial que se apresenta como o segundo trabalho de Joana de Sousa, reconhecida no meio como ex-programadora do Festival Doclisboa (2015 - 2023).
Dos três, é o mais convencional na dita estética queer, impondo uma brincadeira de luzes, purpurinas, constelações e música techno que se avançam em sonhos coletivos e em loop. Parte dessa brincadeira para se impor como uma mostra de uma fauna única deste mesmo universo, consolidado numa festa à moda daquilo que Portugal faz bem, seja em juventudes inquietas [“Verão Danado”], seja em territórios cavernícolas [“Ruby”], são convívios marginalizados, algo escapistas para com a uma realidade que os aterroriza, e os obriga a “banalizarem-se”. “Entre a Luz e o Nada”, o festim (quase) nu possui não só essa evasão de uma normalidade, como um culto de apelo a forças maiores que elas próprias, uma vinda extraterrestre quem sabe, que os liberta das suas amarras e a apresenta num único corpo, uma utopia [calma, já lá vamos!]. Joana de Sousa brinca aos misticismos como uma nova religião.
Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)
“Monstros”: não dos saídos do armário, mas daqueles cujas garras nos sacodem para forma dos nosso parâmetros, aqui, Odete, a tal protagonista contra o termo Queer, é emborcada de alucinógenos que a empurram para fora do seu terreno, da sua realidade, torna-se um corpo alheio, abananado, deambulando para lá onde for. “Sob Influência”, de Ricardo Branco (também assistente de realização de “Entre a Luz e o Nada”), faz a sua fuga pro vai desse estupefaciente e o coloca a mente e o corpo de Odete na demanda da sua alegoria, é um “objeto” perdido e simultaneamente encontrado no limiar da sua fronteira (convenhamos, há um elemento abstracto conformidade com a alusão de não-pertença, Odete não pertence a etiquetas, géneros, nem seja o que for, povoa na sua exclusividade como a sua plena característica).
Branco brinca a outros géneros, o do cinema, com sugestões de um terror psicadélico e de criaturas escuras como breu, voyeuristas e famintas, tudo envolvido num exercício de “nem carne, nem peixe” mas com atributos estéticos e produtivos que colocam “Sob Influência” num quadrante de um sonho acordado, e drogado.
Contemplamos então a “Utopia”: “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho, o dos três o mais conseguido esteticamente, mas o mais ambíguo na sua temática / abordagem. A história tem tanto de fantástico-erótico como onírico-febril, um encontro mesmerizante entre Tiago (João Duarte Costa) e uma “rapariga” de nome João, que reside numa isolada casa no meio da floresta. Existe um choque inicial que nos guia à parcialidade do cinema de João Pedro Rodrigues, dos travestis caçadores-de-gambuzinos em “Morrer como um Homem” (2009) ou das amazonas agressoras de observadores de aves em “Ornitólogo” (2016), mas é nesses cantos e recantos obscuros do feral e do silvestre que se esconde sexualidades a ser exploradas nos confins da empestada civicionalidade que termina essas comparações.
Odete em "Sob Influência" (Ricardo Branco, 2023)
João Pedro Rodrigues não é tão favorável às mulheres como Godinho encanta neste registo com sonho de diluir géneros, corpos e genitálias, e isso torna-se evidente na sequência de sexo erotizado e hipnótico em que a tal rapariga de nome João assume e encorpora três carnes, distribuídas em três géneros (João Abreu, Aurora Pinho e Mafalda Banquarte), quebrando os limites do seu erotismo direccionado, nesse termo relembra o “faz de conta” de Bertrand Mandico na sua fantasia surrealista “Les Garçons sauvages”, ao trocar os papeis dos géneros e com isto desafiando o sexualismo dessas imagens e desses corpos.
Só que “Uma Rapariga Imaterial” termina exatamente nesse registo erotizado e prossegue com uma agenda escancarada de revolução, contrapondo os “eles” contra os “outros”, os normalizados, os males do mundo materializados. Aí, a confusão instala-se, invocando e desinvocando todos os temas e mais alguns, propagando uma ideia de utopia (a cena final resume-se a isso). Infelizmente, o resultado é o contrário: uma distopia, um confronto sem decretos e declarações convictas.
É uma pena que um filme que desbrava as ervas-daninhas da sexualidade através de uma montagem perfeccionista e encantatória (a cargo de Francisco Moreira, responsável pela montagem de “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos e “Alva” de Ico Costa) se deixe deslumbrar pela necessidade de transmitir uma mensagem imperativa, ou múltiplas mensagens, num ativismo algo tosco. A subtileza dos primeiros minutos era mais do que suficiente.
Uma Rapariga Imaterial (André Godinho, 2023)