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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Debaixo de uma "Árvore", ao pé do Rio. Uma conversa com André Gil Mata

Hugo Gomes, 26.04.18

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André Gil Mata

Sarajevo é uma cidade abalada por espectros de uma Guerra não tão distante e o português André Gil Mata aventura-se a codificar esses mesmos espíritos em “Drvo” (“A Árvore). Porém, o exorcismo é falhado, e o desvendar converte-se automaticamente num retrato de impressões e alegorias atmosféricas. Essa Bósnia sob cicatrizes poderá responder como um alarme aos tempos “negros” que ameaçam decorrer nesta Europa.

Um projeto que nasceu de uma imagem, esta materializada por um realizador num país que não lhe pertence e que promete abordar sob uma língua universal – o Cinema. Conversei com André Gil Mata sobre as suas paixões, medos e das experiências adquiridas em Sarajevo, quer na cidade ou na escola FilmFactory, na qual doutorou-se, sob a orientação do cineasta húngaro Béla Tarr.

Segundo as notas de produção, a ideia para este filme surgiu através da imagem de uma árvore.

Há 5 anos atrás cheguei a Sarajevo e encontrei uma cidade coberta de neve, a qual não conhecia superficialmente, e essa relação com a História e de não conhecer os lugares, fizeram-me sentir pequeno e incapaz de filmar aí, apesar de Béla [Tarr] nos propor a filmar automaticamente.

Realmente, foi durante a ida a uma zona da cidade, não tão central, que deparei com uma determinada imagem. Um rio, um homem e fumo. No centro disto, uma árvore despida enraizada na neve. Registei esta mesma imagem na minha câmara. E tendo em conta o facto de Sarajevo ser uma cidade profundamente vivida pela Guerra, aliás, esta encontra-se presente na arquitetura (os buracos das balas, por exemplo, que sempre relembram a passagem do conflito) e das pessoas, na sua postura no qual caminham com o pesar de uma assombração. Essa, porque juntou com este espírito vivido na Cidade, por estes fantasmas que auferiram simbolismo aquele simples retrato.

Nisto criou-se uma obsessão pela repetição das nossas ações, independentemente dos anos, das pessoas, da História e do estado do Mundo. Aquela Guerra poderia, ou poderá voltar a ser repetida.

Sim, repetida. Aliás, o seu filme embarca nesta demanda por fantasmas.

Sim, no meu conhecimento foi uma Guerra que terminou no conflito físico, digamos, mas é uma Guerra que não está resolvida, porque nos meus olhos, as questões nacionalistas permanecem ainda dentro das pessoas, como em certas zonas. Comporta-se como um eco, uma latência de nacionalismos por questões que foram incendiadas por determinados sectores políticos. À imagem disto, é o que está a acontecer um pouco por toda a Europa. Existem e continuam a existir incendiários, de forma a assumir controlo, tal como noutros tempos. Na verdade, estamos a recuar socialmente e politicamente e a ideia do filme começou por surgir dentro desse ciclo de repetições dos erros humanos. Continuamos a errar como fizemos anteriormente. Não aprendemos nada com isso.

Mesmo sendo assombrado por estes mesmos espectros, existe um receio em abordar criticamente este cenário, visto que é uma apropriação cultural e histórica. Nesse sentido, você fez um retrato do conflito, evitando qualquer tendência de crítica ou de denúncia.

A apropriação da Guerra, quer dos Balcãs, como da Segunda Guerra Mundial, é algo que não posso fazer porque simplesmente não o vivi, logo não sinto capacidade nem dever de tomar um partido. Se eu entrasse na cedência de um partido, estaria a entrar nessa lógica de pensamento que originou estes conflitos. O que tento fazer é uma reflexão desses nossos erros. Não estou a pôr em parte quem fez os erros, ou olhar de cima e apontar que “aquele determinado errou”, e descrever os erros. É mais uma tentativa para pensar naquilo que está a acontecer, quer ali, assim, como em outros pontos, na Europa e no resto do Mundo. Creio que por vezes vivemos as nossas vidas sem refletir sobre isso, o que nos coloca numa posição igual a estes pequenos conflitos como podem incendiar, ou que incendiaram na Segunda Guerra, ou nos Balcãs. Não sei de onde vem essa raiz da apropriação de território, invasão, extermínio por parte do Homem. Mas uma coisa é certa, é algo que me transtorna.

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"Drvo" / "A Árvore" (2018)

Até porque o cenário da “A Árvore” consegue ser universal. O inimigo, apesar de presente, é invisível, e nessa invisibilidade é lhe atribuído o medo. Recordo a personagem da criança que corre desalmadamente na floresta e que identifica o perigo como “Fascistas”. Até que ponto este filme não serve como um alarme à expansão do pensamento da extrema-direita na Europa que vemos atualmente?

Admito que também é um medo que eu próprio tenho. Sinceramente, vivemos numa democracia em Portugal e o facto de estarmos encostados no oeste, desvia-nos um pouco a nossa atenção a este fenómeno. Também pelo facto de nunca termos passado por nada aqui nos últimos anos. Felizmente! E nesse ponto sentimo-nos agraciados pela sorte de não vivermos um conflito recente, apesar do Ultramar ainda encontrar-se na memória. Fora isso, vivemos na ideia de habitarmos numa espécie utopia. Harmoniosa utopia.

Mas para além da fronteira portuguesa, testemunhamos manifestações em França, onde a Extrema-Direita assume papéis políticos, ou a Catalunha com os políticos a usar as mesmas armas que foram usadas em outras guerras. O de colocar as populações numa frente quase incendiária de nacionalismo cego. São cenários que nos podem amedrontar, mas acima de tudo devemos refletir e não deixar influenciar por estes discursos de loucura. Temos que pensar sobretudo naquilo que a História nos ensinou, o que isso provocou, o terror de outros tempos. Temos que viver com essa consciência .

O seu filme é praticamente composto por planos-sequência e aí devo perguntar: para ti quanto dura um plano até este perder o seu simbolismo?

O plano dura, não por simbolismo, o tempo em que o próprio plano se assume daquilo que nós imaginamos. Há um determinado momento em que é o próprio objeto filmado que adquire força acima de qualquer ideia, rebeldia contra o que imaginamos anteriormente e aquilo que pretendíamos filmar. Aí, o plano ganha uma identidade própria e autodefine essas definições. Quando estamos a filmar sentimos o quanto o plano vive, ou seja, não devemos programar que o plano y deve ter x de duração, o que importa é dar a vida a esse mesmo plano. E dar-lhe os elementos de forma a que se auto-construa.

Depois há a questão da montagem e o sentir essa duração. O tempo que não seja de forma racional (começa aqui e tem que acabar ali), e sobretudo procurar quando um plano está vivo e até onde ele mantém essa vivacidade. É quase como jogar um puzzle, basta juntar as peças. A música, por outro lado, poderá servir como um auxílio dessa duração e atribuir os mais diversos suplementos, por exemplo, a tensão ou a emoção. Depende muito da intenção. Acho que um plano, antes de filmar não sabemos o quanto durará.

Mas num pensamento academista há a regra de que um plano tem que obedecer a um x tempo.

A única academia que efetivamente eu tenho é a Matemática, e o que ela realmente nos diz são determinadas regras. Porém, nunca uma limitação. Há uma noção de infinito. O facto de termos regras, o conhecimento delas, permite andar dentro do jogo, mas nunca a imperatividade de usá-las. O academismo não é algo que me assiste.

Quanto ao plano, estarmos a controlá-lo é limitar o seu potencial enquanto elemento.

Quanto às influências de Béla Tarr?

Acho que ele me influenciou mais como pessoa do que propriamente como cineasta. Não sinto. Antes de o conhecer pessoalmente, era mais influenciado pela obra dele do que sou hoje. Conheces a pessoa, passas o dia a dia com ela e isso ajuda-te a desmistificar essas questões de idolatria ou de veneração. Ele tem um carácter bastante forte, o que nos poderá afetar de certa forma. Creio que … sei lá, qualquer indicação de procurar ou repetir a linguagem que é dele, é realmente algo que até a ele provoca confusão.

Gus Van Sant, por exemplo, diz que o cinema dele o mudou. Descobriu outro cinema após ver o “Sátántangó” (“Tango de Satanás”). Para mim, o filme que me fez olhar para outro cinema foi “Ao Sol do Marmeleiro” (“El sol del membrillo”) de Victor Erice, ou os “400 Golpes” (“Les Quatre Cents Coups”) de Truffaut. São coisas que nos mudam, mas não nos modificam, e sim … transformam-nos. Não no sentido de sermos miméticos ao trabalho em causa

Não sei a que ponto fui influenciado para “A Árvore”. Obviamente temos a influência das pessoas que nos rodeiam.

Voltando atrás no tempo, o André tirou a licenciatura de Matemática antes de se aventurar no Cinema.

Na verdade, concorri à Escola de Cinema e não me aceitaram, e a única coisa que me fascinava para além do Cinema era mesmo a Matemática [risos].

Tentei estudar Cinema sozinho, no Porto, o que tornava a tarefa menos acessível, visto que a cidade não apresenta as mesmas regalias culturais de Lisboa. Por exemplo, não existe lá nenhuma Cinemateca. O facto de ter nascido numa cidade pequena também não me ajudou, sendo que os videoclubes tornaram-se de alguma maneira a minha escola. A única forma de aprender Cinema era através do aluguer naqueles dois videoclubes existentes na cidade. Os donos desses estabelecimentos foram realmente os meus programadores de Cinema.

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"Drvo" / "A Árvore" (2018)

Esses “tempos difíceis” cheio de decisões difíceis – Que filme irei levar esta noite? [risos]

Pode parecer meio anedótico, mas é a verdade. O que também me ajudou, foi na altura da minha adolescência ter aberto um Cineclube na cidade vizinha [Santa Maria da Feira], que apresentava uma programação, na altura, fora deste país. Ciclos e retrospectivas inacreditáveis, que muitas delas apenas se fizeram ali. E foi aí que deparei-me com o outro Cinema.

E é triste que atualmente os Cineclubes não apresentem essa ousadia. Obviamente, grande parte deles sem apoios e muitos dos que há, apenas subsistem com as “sobras” das salas das Grandes Cidades. Perderam a sua identidade.

Exerceu os cargos de curadoria no Festival de Cinema de Santa Maria da Feira, entre 2001 a 2008, e um ano depois concretiza a sua primeira curta-metragem ["Arca d’Água"]. A questão é, enquanto curador do festival procurava nos filmes o mesmo que tenta alcançar com as suas produções?

Sai da curadoria para fazer a minha primeira curta e gostava que essa estreasse naquele festival, porque esse mesmo dizia-me muito em termos afetivos. Então saí por questões éticas, não havia senso em julgar o meu trabalho. Saí para que pudesse julgá-lo e o selecionassem ou não para o festival. Foi mais nesse sentido.

A minha curadoria no festival foi em outra escola de Cinema, a oportunidade de poder discutir filmes com todos aqueles que fizeram parte do comité selectivo e posteriormente com os próprios realizadores. Resultou numa experiência enriquecedora.

Agora, as duas experiências são completamente diferentes, tenho objetivos completamente distintos em ambas.

E em relação à ida a Berlim, como se sente pelo seu filme ter sido selecionado?

Primeiro de tudo, sinto-me angustiado por ter terminado o filme. Para mim os filmes são como paixões e quando os termino sinto que estou a terminar uma relação, ou simplesmente essa paixão vai embora das nossas vidas sem dizer adeus devidamente e ficamos desolados por não poder amar mais. Neste caso, não poder trabalhar no filme.

Quanto ao festival, sinto-me nervoso quanto a essa exposição, onde pessoas vão ver essas paixões, obsessões e cada um interpretará à sua maneira. De certa forma, essa loucura que durou x anos, que me fez pensar que era a única coisa que amava, acordava e deitava a pensar nela, e no fim, já não nos pertence. Tentamos entender se estamos a apaixonar pelas “pessoas” certas ou simplesmente vamos sair iludidos.

Depois existe essa questão subjetiva, sabendo que nem todas as pessoas vão gostar do filme. O facto de pelo menos gostar do filme é bom, porque já não nos sentimos tão isolados nesse rodopio amoroso.

E novos projetos?

Tenho ideias, mas ainda é emocionalmente cedo. Sinto que acabei de sair de uma relação e o meu corpo precisa de um certo tempo para avançar para outra paixão.

Os Horrores de longe, a Devastação de perto

Hugo Gomes, 04.02.18

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Sempre teremos Sarajevo: por mais longe que esteja, estará situada nas nossas mentes, não a cidade sob um contexto geográfico, mas o que este agora “não-lugar” representa. O cinema adquiriu a sua maturidade pós-Segunda Guerra no lidar com cenários-símbolos, entre as mais agravantes Auschwitz. Como transcrevê-lo em imagens ou melhor, com que imagens devemos descrevê-lo? Ao leitor, entenda-se, que isto não se trata de uma comparação entre o mais “infame” dos Campos de Concentração (o infame encontra-se sob aspas como se fosse possível catalogá-los em popularidades) e Sarajevo, a cidade-fantasma, povoada mas eternamente assombrada.

O que está em causa é o como podemos pronunciar lugares de um jeito quase metaforizado e, ao mesmo tempo, percebendo o seu contexto; mais que uma imagem, um nome, uma cidade que nos transporta para as vastidões dos seus simbolismos. Com isto, garantimos que Sarajevo é automaticamente Guerra, é destruição negligenciada pelo resto do Mundo, mudo, cego e surdo perante tais atrocidades (não importa qual lado, tudo é atrocidade). Poderia soar Dolores O’Riordan e a sua banda The Cranberries sob os acordes violentos de “Zombie”, bem verdade, Sarajevo existe na nossa mente (“In your head”, como cantarola a artista na referida música).

Segundo André Gil Mata em relação a este seu novo filme, “Drvo: A Árvore”, a ideia nasceu de uma imagem, uma árvore e um menino. O signo da prosperidade [a árvore] e o futuro [o menino] idealizados em Sarajevo. A cidade vista pelos olhos de um estrangeiro, mas o que Gil Mata capta não é um recorte turístico ou a reconstituição de quem vem de fora, mas a cidade imaginária, aquela captada pela ideia. A ideia anexada pelo Cinema ou, diríamos antes, apoderada. Assim sendo, o filme constrói-se por essa cidade-fantasmagórica agora convertida num não-lugar, um identificável, porém, não sendo um vínculo direto à percepção de Sarajevo.

Composto por duas dezenas de planos-sequência que se arrastam no ecrã por um silenciosa eternidade (minimalista, portanto), “Drvo” tem o feito de cercar o espectador numa tremenda rotina em ruínas – um ancião que percorre o seu vilarejo fantasma com um dever de subsistência, de longe ouve-se estrondos, uma guerra vizinha, um inimigo invisível que mesmo assim provoca o pânico para quem os ouve. No centro da rotina, uma criança, órfã de Guerra, apavorada pela marcha iminente dos fascistas (o próprio os caracteriza como tal), e cujo seu destino cruzará com o velho, que na altura atravessa o rio, “mergulhado” pela escuridão e o emudecimento.

Gil Mata aprendeu com Béla Tarr [orientador do curso do FilmFactory], a filmar sob motivação e não a subjugar-se ao dever … E, sobretudo não recear do tempo, este esculpido, reproduzido quase na sua exatidão (se não é fiel, é sensorialmente idêntico). Sim, a paciência, virtude perdida nos espectadores ocasionais, é recompensada com uma imersão técnica que nos faz refém a uma metáfora arquitetada, construída como um universo à parte. Mas é Sarajevo que imaginamos, e como espectadores, sentimos a sua amargura.

Drvo” é sobretudo um filme de cinema (heresia da nossa parte estas últimas palavras, quase sugerindo que há filmes a não ser vistos em sala de cinema), um filme para se sentir no grande ecrã e contemplarmos com sua verdadeira função de materialização. Gil Mata cria um quadro e chama através de imagens a nossa Sarajevo. Portento visual.

“Fiel ao espírito independente”: as novidades do 14º Indielisboa, segundo Mafalda Melo

Hugo Gomes, 02.05.17

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Mais um ano, mais uma edição do Indielisboa. Para sermos mais exatos, o festival lisboeta com especial dedicação ao cinema alternativo e independente vai para o 14º ano de existência. A melhor forma de celebrá-lo é apresentar-nos outra rica seleção, desde as habituais retrospectivas, novidades, experiências e uma das maiores competições de filmes nacionais da História do evento. São seis longas-metragens, desde nomes prontos para saírem do anonimato até o regresso de veteranos, tais como Jorge Cramez, que segundo Mafalda Melo, uma das programadoras do festival, “é uma infelicidade não filmar mais”.

 

Quem disse que não havia Cinema Português?

Foi sobre esse signo lusitano que arrancou a nossa conversa com a programadora, que afirma, devidamente, que é sob a língua portuguesa que a 14ª edição terá o seu pontapé de saída. Sim, “Colo”, o novo filme de Teresa Villaverde, presente na competição do passado Festival de Berlim, terá a honra de abrir mais um certame, criando um paralelismo com a tão rica Competição Nacional: “É um ano feliz, aquele que sempre poderemos abrir com um filme português

Mas voltando ao ponto de Cramez (“Amor, Amor”), o retorno do realizador ao formato da longa após dez anos de “Capacete Dourado”,  é “uma confirmação do seu talento”, que se assume como forte candidato da Competição Nacional e Internacional, no qual também figura. E isto sem  desprezat o potencial dos outros cinco candidatos ao Prémio de Melhor Filme Português: “Coração Negro”, de Rosa Coutinho Cabral, “uma ficção dura, de certa forma ingénua e verdadeira”, o regresso de André Valentim Almeida ao trabalho “sob a forma de filme ensaio” em “Dia 32”, a aventura de Miguel Clara Vasconcelos na ficção em Encontro Silencioso, que remete-nos ao delicado tema das praxes universitárias, “Fade into Nothing” de Pedro Maia, “um excelente road movie” protagonizado por The Legendary Tiger Man, e, por fim, “Luz Obscura”, onde Susana de Sousa Dias persiste no “registo documental em tempos da PIDE”.

Em relação à competição de curtas-metragens, Mafalda Melo destaca algumas experiências neste formato, entre as quais o nosso “Urso de Ouro”, “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, assim como Salomé Lamas (“Ubi Sunt”), José Filipe Costa (“O Caso J”), Leonor Noivo (“Tudo O que Imagino”) e André Gil Mata (“Num Globo de Neve”). Ou seja, apesar de serem filmes de “minutos”, nada impede que sejam “impróprios” para grandes nomes da nossa cinematografia e “uma seleção bastante consistente”.

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Tudo o que Imagino (Leonor Noivo, 2017)

 

A Emancipação dos Heróis

Para Mafalda Melo, o que une os dois Heróis Independentes deste ano é o seu espírito marginal: “Quando falamos de Cineastas Independentes, quer do Paul Vecchiali como do Jem Cohen, não pelas mesmas razões, nem pelas opostas, são dois cineastas verdadeiramente independentes.

Jem Cohen é provavelmente o mais fundamentalista a receber este título de “Herói”. O nova-iorquino “quando começou a filmar, há cerca de 30 anos, precisou só da sua câmara e ter ideias para fazer filmes. Foi assim que ele trabalhou e continua a trabalhar.” Uma carreira diversificada, que vai desde o documental à música, ao ensaio até à pura experiência que não limita a sua cinematografia, com orçamentos “baixíssimos” até a micro-equipas, um verdadeiro “sentido de independência”. O Indielisboa irá dedicar-lhe um extenso ciclo, incluindo o seu mais recente filme, “Birth of a Nation”, uma visita a Washington no dia da tomada de posse de Donald Trump: “um filme onde encontramos aquilo que sempre encontrámos na sua filmografia, uma ligação emocional às coisas, aos espaços e aos sítios. Um gesto político, silencioso, mas igualmente agressivo”.

No caso de Vecchiali, “a sua independência garantiu-lhe um lugar à margem das manifestações artísticas da sua época.”. Longe da nouvelle vague, por exemplo, o outro Herói foi ator, realizador, produtor, um homem voluntariamente marginalizado dos eventuais contextos cinematográficos que foram, no entanto, surgindo. Como produtor, Vecchiali mantinha-se fiel ao “espírito do realizador e da obra”. Tal fidelidade resultou na sua produtora, a Diagonale, onde os realizadores usufruíram da mais intensa liberdade criativa, tendo apenas como condição respeitar o “orçamento imposto”.

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Paul Vecchialli

 

Uma Família Cinematográfica

Os métodos de liberdade concebidos por Paul Vecchiali fortaleceram a ideia de “família cinematográfica”, um círculo partilhado pelo Indielisboa que aposta sobretudo na crescente carreira de muitos dos seus cineastas. Melo sublinhou com curiosidade, o regresso constante de muitos autores premiados, como por exemplo das secções de curtas, ao festival com novos projetos entre mãos. É a família, esse revisitar, que alimenta a ideia de que um festival é sobretudo mais que uma mera mostra de filmes, um circuito de criadores e suas criações.

Nesse sentido, o 14º Indielisboa conta com três realizadores anteriormente premiados nas secções de curtas, “com filmes seguríssimos que só apenas confirmam os seus já evidenciados talentos”. Quanto a outros convidados, Mafalda Melo destaca a presença dos dois Heróis Independentes, dos realizadores das duas grandes Competições (Nacional e Internacional) que terão todo o agrado de apresentar as suas respectivas obras e ainda Vitaly Mansky, um dos documentaristas russos mais aclamados.

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Viejo Calavera (Kiro Russo, 2016)

 

Mantendo-se Internacionalmente Competitivos

São 12 primeiras, segundas e terceiras obras que concorrerão pelo cobiçado prémio. Uma seleção rica, quer em temas, nacionalidades e estilos. A programadora refere novamente Cramez, um português a merecer destaque numa Competição que esteve várias edições fora do alcance do nosso cinema, e ainda as provas de Kiro Russo (“Viejo Calavera”), Song Chuan (“Ciao Ciao”), Eduardo Williams (“El Auge Del Humano”) e a produção brasileira “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans. “Todos estes filmes são descobertas e têm em conta”, acrescentou.

A destacar ainda a união de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, dois investigadores da Sensory Ethnography Lab, de Harvard, que conduziram em 2013 o grande vencedor do Indielisboa, “Leviathan”, agora remexendo no onirismo do letrista nova-iorquino Dion McGregor.

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Free Birds (Ben Wheatley, 2016)

 

O Inferno continua no Indie

Mafalda Melo foi desafiada a falar da crescente secção Boca do Inferno, dedicado ao cinema de género e de temáticas ainda mais alternativas, sem mencionar a sensação de “Grave” (“Raw”), o filme de canibalismo de Julia Ducournau, que vai mantendo um registo de desmaios, vómitos e saídas repentinas por parte dos espectadores, por onde passou.

Respondendo ao desafio, a programadora falou, incontornavelmente, de “Free Fire”, o mais recente trabalho de Ben Wheatley (“Kill List”, “Sightseers”), “uma espécie de Cães Danados da nova geração”. Brie Larson, Cillian Murphy e Armie Hammer são os protagonistas. Mas foi em “I Am Not a Serial Killer” que se sentiu um maior fascínio: “Um pequeno grande filme sobre um jovem de tendências homicidas que descobre que Christopher Lloyd, o Doc do “Regresso ao Futuro”, é um verdadeiro monstro. Uma obra geek, mas de um humor negro inacreditável.

O russo “Zoology”, “outro pequeno grande filme, sobre uma mulher que descobre que lhe está a crescer uma cauda, não colocará ninguém desapontado”. Estas entre outras “experiências bastante distintas” que alimentaram esta cada vez mais procurada secção.

 

Director’s Cut: entre Zulawski e Herzog

Dois eventos esperados para cinéfilos são a exibição do filme “maldito” de Andrzej Zulawski,On The Silver Globe”, e “Fitzcarraldo”, de Werner Herzog. Em relação a Zulawski, “estamos muito satisfeitos por fazer parceria com a White Noise, como resultado iremos exibir uma recente cópia restaurada” de um filme incompleto devido à decisão da época do Ministério da Cultura polaco de vir a comprometer questões politicas e morais.

Quanto a “Fitzcarraldo”, a sua projeção foi motivada por outra projeção, a da curta de Spiros Stathoupoulos, “Killing Klaus Kinski”, que durante a rodagem do tão megalómano filme,propôs a Herzog o assassinato do ator Kinski de forma a restabelecer a paz.    

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On The Silver Globe (Andrzej Zulawski, 1988)

 

Redescobrir o Português subestimado

Ainda no Director 's Cut, está agendado um encontro com Manuel Guimarães, o cineasta que tentou incutir o neorrealismo no cardápio cinematográfico português, mas que hoje tornou-se numa figura esquecida e constantemente subestimada. O Indielisboa passará O Crime de Aldeia Velha, uma história sobre inquisições e superstições, que dialogará com o filme de Leonor Areal, “Nasci com a Trovoada”, um olhar atento à figura e os motivos que o levarão a tão triste destino – a falta de reconhecimento.

 

Indiemusic ao Luar!

Uma das secções mais habituais do Indielisboa terá um novo fôlego. O Indiemusic abrirá em paralelo com a reabertura do Cineteatro Capitólio/Teatro Raul Solnado. Serão sessões ao ar livre com muito cinema e música como cocktail. A mostra terá início no dia 5, com a projeção de “Tony Conrad: Completely in the Present”, o documentário que olha o legado incontornável do “padrinho” dos Velvet Underground.

 

Um festival a crescer!

Ao longo de 14 anos, o Indielisboa tem se tornado um festival cada vez mais “acarinhado por parte do público”, o que corresponde a mais espectadores, mais seções. Mas para Mafalda Melo, o “Indie não se fechou, mas sim expandiu fronteiras e ao mesmo tempo manteve-se fiel ao seu espírito independente. Conseguimos ao longo destes anos uma mostra esperada dentro deste circuito, uma plataforma para a descoberta. E é isso que temos mantido, esta evolução gradual ao longo dos anos, o dever de apresentar cineastas e filmes que as pessoas desconhecem.”

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Tony Conrad: Completely in the Present (Tyler Hubby, 2016)

 

O Indielisboa acontecerá no Cinema São Jorge, Cinema Ideal, Cinemateca Portuguesa Museu do Cinema, Cineteatro Capitólio e a Culturgest, a partir do dia 3, prolongando-se até ao dia 14 de maio.