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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Andrei Rublev": A pintura a fresco de Tarkovsky

Hugo Gomes, 17.02.16

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Andrei Rublev, considerado o maior pintor iconográfico da Rússia, é atualmente uma figura de difícil desmarque de Andrei Tarkovsky. Não pelo facto de a obra ter sido bem-sucedida dentro da comunidade cinéfila e de apresentar particularidades hoje raras no subgénero da cinebiografia, mas porque a história narrada deste artista funde-se cada vez mais com o cineasta e poeta.

O paralelismo entre a Rússia do século XV e a de Tarkovsky é evidente. Tão visíveis, que as autoridades soviéticas tudo fizeram para impedir o seu visionamento além-fronteiras. Felizmente, essa tentativa foi um fracasso, tendo a obra sido projetada numa sessão in extremis no Festival de Cannes em 1969, sete anos depois do Festival de Veneza ter condecorado a primeira longa-metragem do realizador – “Ivan’s Childhood” – com o tão cobiçado Leão de Ouro, tornando Tarkovsky num herói junto aos seus conterrâneos. Desde os tempos áureos de Eisenstein, não se vira um cineasta russo a ser tão apreciado no Ocidente. “Andrei Rublev” é uma produção épica, centrada não no próprio pintor, mas na sociedade em que vivia: o Reino Russo em plenas mudanças sociopolíticas (um pouco como os anos 60 na União Soviética, em plena De-Estalinização por Nikita Khrushchev).

A obra também visa uma estreita relação entre o Homem e Deus, entre o Mortal e o Eterno, o Carnal e o Divino (o pintor foi canonizado em 1988), o estado da alma e a preservação desta frente ao pecado comum. Uma demanda à pureza que Tarkovsky constrói como degraus para o seu protagonista, constantemente desafiado por esta análise que é tudo menos glorificante. Até porque Rublev era um herói nacional, explorado agora por um cineasta com intenções para além do habitual retrato heróico, que tanto agradava o regime soviético. A nossa personagem é um homem obcecado pelo seu estatuto na sociedade, mas a sua pureza está longe de ser evidenciada. Andrei Rublev é um ser ambíguo, entre o pedante e o vulgar, um génio que cedo é declarado, mas sempre duvidando pelas “fintas” do realizador em relação aos pontos vitais da sua biografia. Por exemplo, em momento algum deparamos com o nosso protagonista em plena fase de criação, ou seja, a pintura nunca é aqui mostrada. Nem sequer os feitos ilustres que são citados pelos seus historiadores. Tarkovsky não quer ser um trovador, antes uma testemunha. A forma como esboça o cenário que o rodeia é, por si, o auge da sua pintura: não se limita à miopia do personagem destacado, mas mostra o lugar que o artista ocupa no Mundo.

O que é hoje elogiado, amanhã será criticado e depois esquecido“, afirma o também pintor iconográfico Feofan Grek (Nikolay Sergeev) durante o seu confronto verbal e ideológico com Andrei Rublev, interpretado pelo ator-fetiche de Tarkovsky (Anatoly Solonitsyn), numa das sequências mais relevantes e filosóficas do filme. O debate centra-se numa premonição apocalíptica quanto ao destino da civilização e nas comparações inevitáveis com o destino de Jesus Cristo no Novo Testamento. Neste longo frente-a-frente é evidente a determinação de Rublev em atingir um objetivo celestial, encontrando conforto nas escrituras e a liberdade dos pensamentos na própria pintura. Todo este caminho, que teima ser o correto da eventual santificação, levará o pintor a um poço de arrogância e a consequências maiores. Consequências, essas, que coincidiram com um ponto de viragem histórico no destino da Rússia, a invasão dos Tártaros e a limpeza étnica levada a cabo por estes. Será possível reencontrar o tão destacado conforto perante a perda de esperança na Humanidade?

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A análise de Tarkovsky a esta etapa histórica é profunda, mas não carece de espectacularidade. “Andrei Rublev” comporta-se, mesmo assim, como um épico dignamente soviético, mostrando um trabalho esforçado na caracterização, nos cenários, na fidelidade histórica e nos seus conteúdos sociais e políticos. Mesmo sendo um filme, Tarkovsky parece enviar os seus atores à Idade Média, salientando-o com diálogos centrados na religiosidade e crença, na superstição e na preocupação prioritária da alma ao invés da entidade física.

Outro ponto que “Andrei Rublev” parece favorecer é a denúncia subliminar da opressão da mulher na Idade Média, sem nunca ceder ao panfleto forçado nem ao politicamente correto hoje investido nas produções globais. Essa denúncia encontra-se fundida na reconstituição épica e nas transcrições das escrituras, que sugeriam uma dominação dita masculina e redução da Mulher na imagem do Pecado Original (basta ver os casos de Maria Madalena e o da tentação de Eva, invocada em forma de serpente). “É tradição a Mulher russa sentir-se oprimida” como é citado a certa altura, no seio de um debate sobre o uso do véu e o pecado oriundo de rituais pagãos.

Andrei Rublev é um “outsider” da sua condição de cinebiografia, apesar de se basear sobre os mesmos propósitos, que é o de documentar, mas até mesmo este registo está acima de qualquer episódio biográfico. Tarkovsky trouxe-nos uma obra complexa, motivada pelo olhar do espectador que se deslumbra por um mundo sólido que não é o seu. É como o quadro “A Subida do Calvário” pintado por Pieter Bruegel (1525 – 1569): um panorama que se modifica perante a nossa interpretação e sensibilidade.