Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Fechar os olhos para abri-los sob um novo olhar

Hugo Gomes, 07.12.23

1671165129-0d6e17b6235e30c5c78dc01d990d15c48ce6fe0

Mesmo que Nanni Moretti e a sua trupe circense, aparentemente exuberantes, desfilem pouco antes da entrada dos créditos finais no seu "Il sol dell'avvenire", toda aquela "festividade" é-nos dada como um disfarce de uma certa derrota, a de um homem vencido e enraizado no passado, pronto a ceder para se dirigir, possivelmente enquanto subsistência, ao Amanhã. Mais do que claramente o choro do "Cinema Morreu", como os mais "progressistas" destas esquinas reduziram a obra em prol de um artifício ultra-produtivo e despejado nas plataformas de streaming (um alvo que Moretti não deixou ir sem lesões), é um adeus ao seu Cinema para que possa usufruir a vida tal como ela é; por outras palavras, o conforto na resignação. A invocação de Moretti do seu falso-estado de graça entra em confronto com o muy antecipado regresso do cineasta espanhol Victor Erice, naquela que é a sua primeira longa-metragem em 30 anos de distância com o formato. 

Pelo meio, contou-se a curta "Vidros Partidos" - integrada no quarteto fantástico angariado para o antológico "Centro Histórico" (ao lado de Manoel de Oliveira, Aki Kaurismaki e Pedro Costa) -, onde se verificava um olhar ao passado num jeito memorialista e quiçá, igualmente derrotista perante as ruínas de Ontem. Há nele uma sequência final, a de um acordeão tocado por um intérprete de costas para a câmara e de frente para um painel fotográfico, um recordações de outros tempos, onde vemos "atores", diríamos antes operários, fantasmagoricamente presentes naquela não-fábrica que serve de abrigo à fílmica de Erice. A partir daí, a câmara desliza pela fotografia, tentando enquadrar todas aquelas faces, agora desvanecidas, apenas “eternizadas” pelo arquivo. É um reencontro, um dos elementos pelo qual o realizador faz uso do cinema, e desta melancolia chegamos a "Cerrar los Ojos", novamente focando nessa hipótese de regressar a um tempo, a uma pessoa e a um local. O Cinema enquanto “Perdidos & Achados”.

A história envolve um realizador, ou o foi, Miguel Garay (Manolo Solo), que abandonou o ofício à sua segunda metragem, incompleta e desviada dos olhares do público, tudo porque o seu amigo e protagonista, Julio Arenas (Jose Coronado), desaparecera, misteriosamente, certo dia. Muitas teorias orbitam a sua ausência: suicídio, homicídio, acidente ou simplesmente um desaparecimento, cujo mistério revela-se alvo de atenção para um programa televisivo de investigação, como um mito criptozoológico. "Cerrar los Ojos" arranca com esse falso-filme (o seu início como ilusão ao espectador desatento, ou simplesmente, ao espectador que deseja encantar-se, ingenuamente, ceder ao engano, ao belo engano) em que um auto-cognominado "Rei Triste" solicita os serviços de um detetive privado, um pedido como amenização de um desejo, o de ser olhado com um outro olhar. O tal olhar de reencontro.

1366_2000.jpeg

Víctor Erice procura com "Cerrar los Ojos" esse novo deslumbre pelo cinema, pelas velhas ‘coisas’, pelos amores perdidos. O faz, contrariando Moretti, contrariando a sua cedência, puxando lustre ao classicismo bem seu. Em uma das sequências, Miguel visita a filha, agora adulta (Ana Torrent, a 'menininha' de "El espíritu de la colmena" / "The Spirit of the Beehive", o filme-estandarte de Victor Erice), de Arenas, guia do Museu do Prado [Madrid]. Naquele reencontro (mais uma vez), a sua profissão é abordada por via de uma confissão, do tédio acumulado ao longo de anos em "falar do mesmo" sobre “aquela determinada” pintura, banalizando o belo e vulgarizando a obra-de-arte, desprovendo-a de mistério. Claramente, surge a necessidade de um novo olhar, o "outro" inserido no pedido do "Rei Triste". Não é um olhar de ruptura ou o desvio do mesmo, é a renovação do olhar nesses tais elementos de sempre. Enquanto Moretti decide adaptar a sua perspectiva, Erice opta pela re-exaltação para com os mesmos. Não o devemos julgar, e sim, aplaudir.

Portanto, o "Cinema Morreu" não abunda nestas esferas, neste noir degenerado e igualmente classificado, ao invés disso é a Esperança, encontrada, salientada e revalidada. O milagre, conforme o céptico declara inexistentes desde a "morte de Dreyer", é a pretensão do cineasta requer, o de voltar a acreditar no Cinema, no seu Poder (se é que existe, e deste lado, crente yo soy), no seu espírito, na sua conexão. Portanto, a epifania faz-se através do confronto com realidades, como o shakespeareano “Hamlet”, em que a peça dentro da peça incentiva a culpa do velhaco Cláudio, cuja encenação manifesta-se como um espelho de consciências, porém, aqui na "peça" ericieana, espera-se, despertar. Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.