Fechar os olhos para abri-los sob um novo olhar
Mesmo que Nanni Moretti e a sua trupe circense, aparentemente exuberantes, desfilem pouco antes da entrada dos créditos finais no seu "Il sol dell'avvenire", toda aquela "festividade" é-nos dada como um disfarce de uma certa derrota, a de um homem vencido e enraizado no passado, pronto a ceder para se dirigir, possivelmente enquanto subsistência, ao Amanhã. Mais do que claramente o choro do "Cinema Morreu", como os mais "progressistas" destas esquinas reduziram a obra em prol de um artifício ultra-produtivo e despejado nas plataformas de streaming (um alvo que Moretti não deixou ir sem lesões), é um adeus ao seu Cinema para que possa usufruir a vida tal como ela é; por outras palavras, o conforto na resignação. A invocação de Moretti do seu falso-estado de graça entra em confronto com o muy antecipado regresso do cineasta espanhol Victor Erice, naquela que é a sua primeira longa-metragem em 30 anos de distância com o formato.
Pelo meio, contou-se a curta "Vidros Partidos" - integrada no quarteto fantástico angariado para o antológico "Centro Histórico" (ao lado de Manoel de Oliveira, Aki Kaurismaki e Pedro Costa) -, onde se verificava um olhar ao passado num jeito memorialista e quiçá, igualmente derrotista perante as ruínas de Ontem. Há nele uma sequência final, a de um acordeão tocado por um intérprete de costas para a câmara e de frente para um painel fotográfico, um recordações de outros tempos, onde vemos "atores", diríamos antes operários, fantasmagoricamente presentes naquela não-fábrica que serve de abrigo à fílmica de Erice. A partir daí, a câmara desliza pela fotografia, tentando enquadrar todas aquelas faces, agora desvanecidas, apenas “eternizadas” pelo arquivo. É um reencontro, um dos elementos pelo qual o realizador faz uso do cinema, e desta melancolia chegamos a "Cerrar los Ojos", novamente focando nessa hipótese de regressar a um tempo, a uma pessoa e a um local. O Cinema enquanto “Perdidos & Achados”.
A história envolve um realizador, ou o foi, Miguel Garay (Manolo Solo), que abandonou o ofício à sua segunda metragem, incompleta e desviada dos olhares do público, tudo porque o seu amigo e protagonista, Julio Arenas (Jose Coronado), desaparecera, misteriosamente, certo dia. Muitas teorias orbitam a sua ausência: suicídio, homicídio, acidente ou simplesmente um desaparecimento, cujo mistério revela-se alvo de atenção para um programa televisivo de investigação, como um mito criptozoológico. "Cerrar los Ojos" arranca com esse falso-filme (o seu início como ilusão ao espectador desatento, ou simplesmente, ao espectador que deseja encantar-se, ingenuamente, ceder ao engano, ao belo engano) em que um auto-cognominado "Rei Triste" solicita os serviços de um detetive privado, um pedido como amenização de um desejo, o de ser olhado com um outro olhar. O tal olhar de reencontro.
Víctor Erice procura com "Cerrar los Ojos" esse novo deslumbre pelo cinema, pelas velhas ‘coisas’, pelos amores perdidos. O faz, contrariando Moretti, contrariando a sua cedência, puxando lustre ao classicismo bem seu. Em uma das sequências, Miguel visita a filha, agora adulta (Ana Torrent, a 'menininha' de "El espíritu de la colmena" / "The Spirit of the Beehive", o filme-estandarte de Victor Erice), de Arenas, guia do Museu do Prado [Madrid]. Naquele reencontro (mais uma vez), a sua profissão é abordada por via de uma confissão, do tédio acumulado ao longo de anos em "falar do mesmo" sobre “aquela determinada” pintura, banalizando o belo e vulgarizando a obra-de-arte, desprovendo-a de mistério. Claramente, surge a necessidade de um novo olhar, o "outro" inserido no pedido do "Rei Triste". Não é um olhar de ruptura ou o desvio do mesmo, é a renovação do olhar nesses tais elementos de sempre. Enquanto Moretti decide adaptar a sua perspectiva, Erice opta pela re-exaltação para com os mesmos. Não o devemos julgar, e sim, aplaudir.
Portanto, o "Cinema Morreu" não abunda nestas esferas, neste noir degenerado e igualmente classificado, ao invés disso é a Esperança, encontrada, salientada e revalidada. O milagre, conforme o céptico declara inexistentes desde a "morte de Dreyer", é a pretensão do cineasta requer, o de voltar a acreditar no Cinema, no seu Poder (se é que existe, e deste lado, crente yo soy), no seu espírito, na sua conexão. Portanto, a epifania faz-se através do confronto com realidades, como o shakespeareano “Hamlet”, em que a peça dentro da peça incentiva a culpa do velhaco Cláudio, cuja encenação manifesta-se como um espelho de consciências, porém, aqui na "peça" ericieana, espera-se, despertar. Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.