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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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A "representante dos portugueses lá de fora": uma conversa com Lúcia Moniz sobre "Listen"

Hugo Gomes, 19.11.20

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Eis um curioso caso de sucesso no cinema português que se dá pelo nome de “Listen”. A não-tradução é propositada, o filme reage como uma impotência aos mais diferentes níveis, entre os quais a, por vezes, falha de comunicação que limita estas personagens a defender do sistema que os espezinha … e espezinha cada vez mais.

Listen” conquistou o prémio Leão do Futuro (Luigi De Laurentiis] no último Festival de Veneza, vingando Ana Rocha de Sousa, atriz conhecida pelo grande público, como uma realizadora feita e com vontade de prosseguir. O percurso levaria a obra a tornar-se a candidata portuguesa ao Óscar de Filme Internacional, deixando para trás “Vitalina Varela”, de Pedro Costa (visto por muitos o “cavalo de corrida” de bandeira lusitana na award season), e de consagrar-se como o “filme português mais visto” num ano atípico (confessamos), porém, um feito igualmente impressionante – 34 mil espectadores até à data deste texto.

Contudo, desviando dos seus marcos, “Listen” é uma obra-denúncia de uma realidade de muitos, emudecidos perante as injustiças daquilo que supostamente o deveria os defender. Bela (Lúcia Moniz) e Jota (Ruben Garcia) são um casal de imigrantes portugueses que partiram para Londres em busca de uma vida próspera. Resididos no país, constroem e solidificaram a família, mas as adversidades de um país estrangeiro convertem-se em obstáculos sociais, que por sua vez transformam-se em desesperadas subsistências precárias.

Como “solução”, a Segurança Social britânica retira as suas crianças e inicia um processo de adoção forçada, cabendo agora ao casal de lutar com as forças restantes por um Sistema que os pressiona.

Conversei com a protagonista, Lúcia Moniz, sobre a sua participação num dos filmes do momento no panorama português, mas mais que isso sobre um cenário ocultado para muitos.

Como é que a Ana Rocha de Sousa a convenceu / conquistou a participar no seu filme? E já agora, como trabalhou a sua personagem?

A Ana [Rocha] convidou-me a ler o guião, e não recordo que cena é que foi, mas aquelas “imagens” foram tão fortes para mim que não li mais e contactei-a imediatamente. “Eu ainda não li o guião na sua totalidade, mas podes contar comigo.

Foi uma sensação boa, essa de ter nas mãos um bom guião, uma narrativa que faça sentido sem existir uma exploração exagerada daquela realidade. Há um cuidado, como também a emergência de retratar essa mesma realidade … e com realidade. No guião estava inicialmente explícito esse oscilar entre o português e inglês falado, de forma a tornar aquele cenário e aquelas pessoas credíveis.

Esta personagem foi um processo, que teve várias fases, a primeira delas foi tentar perceber esta mãe. Está mais que óbvio no argumento que esta mãe tem um temperamento à flor da pele, impulsiva, e diversas vezes perdendo a razão por ter “o coração na boca”, ou seja, agir sem pensar.

Sim, sentimos também um casal que não concorda na sua totalidade, que batalha diariamente por essa confraternização, mas que é evidente os seus contrastes, ou seja, existe um conflito presente neles.

Pois, eles chocam muito, mas ao mesmo tempo existe uma união. E eu e o Rúben [Garcia] tivemos uma cumplicidade tão boa, mas tão boa. Foi especial.

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Ana Rocha de Sousa dirige Lúcia Moniz em “Listen” / Foto.: Alex Cornes

O Rúben Garcia referiu que a ligação entre vocês foi tão intensa, que a despedida soou como uma separação difícil.

Não nos vimos durante um ano. Despedimo-nos no aeroporto e passado um ano estávamos no aeroporto para irmos para Veneza. [risos] Encontramo-nos lá.

Lá está, foi uma ligação muito forte. Voltando à minha personagem. Entranhei-me num processo de pesquisa, tendo procurando informação em reportagens e documentários sobre estes casos, depois segui ao detalhe para tentar perceber esta mulher, a sua situação em estado de choque e trauma. Levei o guião à minha psicóloga e estivemos a debatê-lo e a decodificá-lo. Resultando em mais uma prova de como este estava bem escrito. A minha psicóloga deu o seu parecer, “está tudo certo, isto faz sentido no campo emocional e psicológico.”

Isto foi importante para mim, construir esta personagem de uma forma coerente e verdadeira para representar estas mães que passam por estas drásticas situações.

São poucos aqueles que conhecem esta situação, esta “operacionalidade” da Segurança Social Inglesa, mas Ana Rocha de Sousa vincou que investigou a fundo estas práticas (adoção forçada), estas mesmas realidade. É que o drama vivido por esta família pode causar ceticismo.

Pois, confesso que também fiquei bastante espantada com este cenário. Com este “esquema” a ser aplicado nas famílias mais desfavorecidas, o qual não tem os recursos necessários ou o facto de não estarem naturalizados com a língua, o de ser migrantes, que lhes impede de comunicar perfeitamente. Não sabia que funcionava desta forma, visto que a Segurança Social tem o dever de proteger e apoiar estas famílias, e só em último recurso … Friso, só em último recurso …não como em primeiro recurso …

Todo este percurso revela-nos uma família resistente, sendo que a sua “força” não chega para vencer. São “engolidos” por esse Sistema que “jurou” protegê-los.

Exato. E são irreversíveis, estas medidas que são tomadas. E quando sabem que são decisões precipitadas, eles não revertem. “Pronto, pedimos desculpas mas já não há nada a fazer.

E “Listen” não verga por soluções fáceis, nem finais fantasiosos. Aliás, o final traz uma falsa-sensação de harmonia para aquela família. No fundo, vemos ela derrotada / destruída pelo Sistema.

É um final de consequências e sequelas. Esse final suspenso acaba por simbolizar aquilo que é. Uma situação nada confortável. De costas levantadas e muita dor naquela família.

Acha que é um final credível?

Sim, e ainda bem que é assim o final, porque é uma mostra de como a luta é difícil e constante, e de que a força está do outro lado, o oposto do lutador. É uma forma de elucidar-nos. Foi importante para o filme este final. Este que nos inquieta em demonstrar que a força está no sistema.

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Na rodagem de “Listen” / Foto.: Leticia Valverdes

Neste momento, julgo que é inevitável não ver este filme e não pensar no BREXIT. Como bem sabemos, “Listen” terminou a rodagem no ano passado. Hipoteticamente, como seria esta história no Reino Unido do BREXIT?

Pois … Nem sei, mas é uma boa questão. Porque nem sequer abordamos isso, apesar de na altura o BREXIT, ainda não sendo uma realidade, era o assunto mais falado no Reino Unido. Mas sinceramente não consigo imaginar como seria este cenário em tempos de BREXIT. Possivelmente haveria menos formas de luta, mas na atualidade acontece isto? Acontece.

Tendo em conta a premiação em Veneza e o mediatismo obtido nos órgãos comunicacionais, é de esperar que este filme chega a muita gente. Que expectativas tem na relação do “Listen” com o grande público?

Aquilo que falamos entre nós era fazer um filme em que as pessoas tenham, por fim, o conhecimento da sua existência. Que se sintam informadas sobre esta situação e destas lutas. Porque a arte também tem esta função, um papel muito importante na sociedade que é o descortinar de situações, de realidades do mundo, muitas delas o qual desconhecemos porque estão ocultados de tudo o resto. E o facto do filme chegar a estas pessoas, revelará essa mesma realidade.

Curiosamente, visto que refere “ao grande público”, não acha que já se torna habitual vê-la como a portuguesa emigrante? [Risos] Estou obviamente a fazer menção ao “Love Actually” (“O Amor Acontece”, 2003).

[Risos] Não acho que tenha sido propósito, mas pensem o que quiserem e como quiserem. Isto partiu de uma escolha da Ana. [Risos]

Sim, mas mesmo assim parece que você é a atriz escolhida para representar os “portugueses lá de fora” … [Risos]

É uma coincidência! [Risos] Por acaso em Veneza, houve uma jornalista que no final da sessão me abordou: “Bem, do ‘Love Actually’ para este! Que diferença surpreendente.” Mas ela disse isto muito agradada por continuar a fazer cinema … quer dizer, não sei. [Risos]. Nem sei bem, responder a isso. [Risos]

Desviando de “Listen”, é sabido que integra o elenco de “Amadeo”, o filme sobre o pintor Amadeo de Souza-Cardoso realizado por Vicente Alves de Ó. Quer falar-nos sobre a sua personagem?

Tudo começou quando o Vicente [Alves de Ó] convidou-me para fazer a série “Solteira, mas Boa Rapariga”, desde então nunca mais nos largamos. Construímos uma sólida amizade. Neste “Amadeo”, a minha personagem representa uma fração na família. É a irmã mais velha, a mais protetora, é a que tem uma visão … não a nível artístico, porque ela é muito limitada … mas em perceber que o irmão sente-se como um “peixe fora d' água", que necessita de desbravar novos horizontes. E é a minha representação, a pessoa que motivará o seu percurso.

E fora Vicente Alves de Ó, tem novos projetos?

Para já não há nada na manga.

Ana Rocha de Sousa: "o problema aqui é que eu não sou a 'atriz dos ‘Riscos’ que fez um filme'."

Hugo Gomes, 21.10.20

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Ana Rocha de Sousa na rodagem de "Listen" (2020)

Ganhou quatro prémios no Festival de Veneza: o Leão de Futuro, de primeira obra, o prémio especial do júri da secção Horizontes, e duas distinções paralelas, 'Bisato d'Oro' e' Sorriso Diverso Veneza '. "Listen" é um filme de uma tremenda força de resistência contra um sistema que nos deixa desarmados.

Em estreia nos cinemas portugueses e protagonizado por Lúcia Moniz e Ruben Garcia, a primeira longa-metragem da também atriz Ana Rocha de Sousa inspira-se numa história verídica, o drama de uma família portuguesa que tenta a sua sorte nas margens de Londres, onde o seu quotidiano é uma luta constante.

Só que uma nova batalha é adicionada a esta mesma equação. Numa decisão questionável, mas “comum” no panorama inglês, a segurança social retira as crianças a este casal, iniciando assim um processo de adoção forçado que, na pior das hipóteses, deixará os progenitores sem encontrar o rasto dos seus rebentos.

Listen” prova ser um filme-denúncia de uma realidade cruel mas, acima de tudo, é uma obra de garra e de emoção à flor da pele. Conversei com a realizadora sobre este feito, desde as suas influências até às "guerras" em que o filme se encontra involuntariamente envolvido. Neste último ponto, Ana Rocha tem um recado a dar.

Começo com a pergunta básica: de onde veio a iniciativa para elaborar esta história?

A ideia surgiu de uma notícia que veio a público em 2016, na qual retiravam de uma mãe, um bebé com somente dias. Não estava a acreditar nessa história e, como tal, iniciei uma investigação para perceber como é possível e o porquê de tal procedimento. Tive conhecimento de mais casos, descortinando-se todo um universo perante mim, o que me deixou impressionada, horrorizada e sensibilizada. Principalmente tendo em conta que muitos destes casos envolviam famílias portuguesas, fatores que me levaram a escrever este filme. Confesso que tive alguma resistência em iniciar a escrita. O meu primeiro impacto com este assunto foi muito agressivo para mim. Estava incrédula.

Pelo que me está a dizer, isto só acontece maioritariamente a famílias “estrangeiras”?

Também acontece a outras famílias, porém, a grande percentagem é estrangeira. Isso é associável a uma classe baixa, impedida de possuir meios para se defender deste sistema. Para além disso, era necessário as pessoas estarem informadas porque o processo de sinalização/investigação tem procedimentos muito assustadores. Não quero afirmar com isto que só acontece a famílias estrangeiras que vivem em grandes dificuldades. Existem também famílias inglesas que passam por este pesadelo, só que muitas delas conseguem, e com maior facilidade, um responsável pela guarda/custódia. Muitos deles escolhidos dentro da própria família.

É óbvio que a escolha de uma família portuguesa para protagonizar e especificar este caso é uma forma de nos identificarmos facilmente com os dramas destas personagens.

Sim, é uma perspetiva portuguesa desta temática. É uma família ficcionada, mas tem como base a realidade comum de diversas famílias. Mas pretendia um ponto de vista português porque sou portuguesa e vivi na Inglaterra e queria trazer a este caso um choque cultural que levasse ainda a mais conflitos, falhas de comunicação ou equívocos com maior facilidade. Queria demonstrar os obstáculos em bruto de que estas famílias sofrem com este cruel procedimento.

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Listen (2020)

Queria que me falasse sobre a escolha de Lúcia Moniz para protagonizar este drama vinculado ao seu realismo. Sendo ela uma atriz reconhecida pelo grande público.

A Lúcia foi sempre uma atriz de uma perspetiva e um espectro bastante amplo que possibilita uma variedade de personagens. Não tendo uma associação a papéis específicos, ela tem características que ajudam e muito em filmes como estes, em que é pretendido veracidade, transparência e verdade no seu desempenho. Para além de uma boa atriz, precisamos de alguém cuja personalidade não se sobreponha e que não se imponha ao papel. Por exemplo, se for ver um filme com o Brad Pitt demoro mais tempo a aceitar a personagem que ele me está a entregar. Com a Lúcia, mesmo sendo um nome com que todos estão familiarizados, sabia perfeitamente que embarcaríamos numa viagem. Porque ela mergulha e passa a ser definitivamente esta mulher.

“Listen” é um filme de poucos embelezamentos, dotado de realismo e direto no seu discurso e em certa parte, é uma obra com influências de um certo cinema britânico que o coloca num plano à parte dentro do panorama português. Queria que me falasse sobre as suas inspirações e referências.

É engraçado, porque muitos têm apontado referências que artisticamente não fazem parte das minhas inspirações. Faz-se, por exemplo, muita menção ao Ken Loach [cineasta conhecido por filmes de um forte pendor social e político como "My Name is Joe" e "I, Daniel Blake], e apesar de ter um enorme respeito pelo trabalho dele, não acredito que o tenha "citado" voluntariamente. Identifico-me mais com uma Nadine Labaki [a cineasta libanesa de "Caramel" e "Cafarnaum"]. Aliás, temos um paralelismo de sermos ambas as atrizes que se colocaram atrás da câmara. Mas quanto a referências? Gosto bastante de cinema japonês, nomeadamente de [Hirokazu] Koreeda ["Nobody Know”, "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões"], que mesmo sendo uma realidade diferente, julgo que “Listen” seria o resultado da sua tradução. Se calhar [risos]. Assim como Abbas Kiarostami ["Close Up", "Taste of Cherry"] ou o grego Theo Angelopoulos ["Ulysses’s Gaze", "Eternity and a Day"]. 

Quando uma pessoa tem referências, ou um grande amor pelo trabalho de um realizador, isso não implica que não esteja no filme de alguma maneira, mas que não seja óbvio. Mas tem graça de não ter a menor ideia de onde vem o Ken Loach à conversa. Quando trabalhava neste filme, o “I, Daniel Blake” já tinha estreado e mesmo hoje, ao vê-lo, não consigo associá-lo ao “Listen”.

Possivelmente, essa associação surge do facto de ter estudado cinema numa escola de Londres.

Sim, acho que tem… O ensinamento que tive foi através de outras referências. Penso que está relacionado com toda uma escola britânica e não somente a obra de um realizador. E o que é forte nessa ligação, se é que existe, é automaticamente através da temática. Acredito que, se mostrarmos "Listen" ao Ken Loach — aliás, penso que tal já aconteceu —, dificilmente o ligaria à sua obra nem assumiria que alguém estaria a pensar nos seus filmes ao fazer este. Ele é uma pessoa que vive na crueza profunda e eu não estou nessa “crueza profunda”. O filme é cru …

… e cruel?

A realidade é cruel, não é o meu filme que é cruel. E nisso o Ken Loach também faz, vai buscar a crueza e a crueldade e colocá-las lá, no seu cinema. Com isso sim, identifico-me, mas nesse aspeto é algo tão próprio de mim. Não posso fazer nada se a minha essência vai ao encontro disso. Fomos separados à nascença... ou não [risos].

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Ana Rocha de Sousa premiada em Veneza

Desde o anúncio da presença no Festival de Veneza até às suas distinções, "Listen" e o seu nome têm sido utilizados como arma de arremesso numa guerra antiga no Cinema Português. Há quem a tenha desvalorizado como "a atriz dos ‘Riscos’" [série juvenil transmitida originalmente pela RTP entre 1997 e 1998] e quem agora se refira a si como “a atriz dos ‘Riscos' fez um filme que ganhou prémios em Veneza" e deu uma “bofetada de luva branca” a quem a criticou. Deixe-me fazer uma salvaguarda, julgo que o seu filme merece mais do que todas estas guerras.

Pois, o problema aqui é que eu não sou a “atriz dos ‘Riscos’ que fez um filme”. Estou no meio, estou efetivamente no meio, e algo que não aprovo é que o meu nome seja utilizado para dizer mata nem para dizer esfola. Isto para dar a ideia que há dois lados profundamente errados nesta história. Um lado muito errado é aquele que olha para mim e diz algo do género “aquela miúda é a atriz dos ‘Riscos’", ponto final parágrafo. Esta pessoa, subentende-se, não tem capacidade de... ponto. O outro lado é algo como “ah, ah, ah, a atriz dos ‘Riscos’ pode e aconteceu”. Simplesmente, não! Há aqui um grande equívoco, mas isso deixou de ser uma guerra minha.

Mas não sente essa instrumentalização?

Não sei se este filme foi instrumentalizado para essa guerra. Sinto que era importante, de uma vez por todas, perceber que não sou apenas a miúda que se estreou nos "Riscos". Continuo a ser e continuarei a ser a miúda que sonhou ser atriz e se estreou nos "Riscos". Se voltasse atrás, faria exatamente o mesmo porque foi um percurso que me interessou e me preencheu durante muito tempo. Também não sou essa miúda que, do nada, decidiu fazer outras coisas e teve "uma sorte do caraças". Não, estudei imenso, trabalhei imenso. Há certamente muito que tenho para aprender... ótimo, temos todos. Retirar frases do contexto não fica bem e retirar uma pessoa que tem milhares de características ou milhares de linhas que são informativas, que são dados importantes, quer de um lado, quer d’outro, não me parece de todo bem. Por isso, situo-me no meio.

Escutemos, porque a fantasia não mora aqui!

Hugo Gomes, 08.10.20

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Elaborar cinema social é quase visto como uma tarefa inglória. Porque em todo o caso há uma subserviência à ideologia política no qual se deixa instrumentalizar, que numa definição mais simples funcionam naquilo a qual chamamos de propaganda. Nunca fugindo da politização, até que o cinema nunca deve ser imparcial (ambíguo pode, imparcial é impossível), o cineasta britânico Ken Loach é um dos grandes exemplos de como a arte narrativa opera como uma arma de tremenda e prolongada luta, nesse caso, a da dignidade da classe operária, por vezes corrompida pela onipresença do capitalismo selvagem.

Num encontro com a imprensa, a portuguesa Ana Rocha De Sousa referiu, assertivamente, não se rever nas comparações, que entretanto, têm sido feitas da sua obra com Loach. A realizadora sublinhou que não tinha em mente esse cinema enquanto compunha “Listen”, e essas ditas paralelizações provavelmente teriam sido suscitadas devido à crueza e crueldade com que ambos abordam as suas respetivas e determinantes batalhas. Porém, é verdade que a sua formação na Escola de Cinema londrina a colocou indiretamente nessa onda de dito realismo social, um exercício quase minimalista nos quadrantes narrativos que tem como foco principal expor um sistema devastador e bárbaro, eticamente falando.

Nesses termos precisos, “Listen” é um filme-denúncia que cumplicia com uma família portuguesa que tenta a sua “sorte” numa Londres longe dos “postais de visita”, e sob o constante olhar predatório da segurança social inglesa. Convém, salientar a sua frontalidade no discurso mesmo que a narrativa esteja retalhada de maneira a fomentar uma prolongada sessão de tortura a estes protagonistas (Lúcia Moniz naquele que é indiscutivelmente o seu melhor papel), impotentes perante um sistema que não os protege e acima de tudo, que não os compreende. Não existe compaixão por estas burocracias questionáveis com ares de BREXIT aludindo permanentemente as suas ditas fundamentações, mas às suas "vítimas" é reservado um trabalho minuciosamente emocional e igualmente expositivo para com o seu “caso de estudo”.

Portanto, a simplicidade originária desse enredo montado pelo somente essencial (basta exercitarmos e refletir qual das sequências é por si dispensável à saúde narrativa para entendermos o quão economizado está esta estrutura) tornam “Listen” um filme a merecer ser ouvido e que o consegue, sem deambulações nem embelezamentos agravados.

A juntar a isso, um final dúbio que assenta que nem uma luva a todo este expoente de (in)justiças, não maquilhando esta extensa dor. Ana Rocha parece estar afim desse choque de realismo, até mesmo na desconstrução da inicial fantasia cinematográfica. Longe do sintético e fascinado pelo natural e austero das relações afetivas, metaforicamente comentado pela personagem Lúcia Moniz, que no início deste processo algo kafkiano, dirigindo-se à sua filha (Maisie Sly) que contempla o redor do seu fabricado biótopo – “É um avião, mas eu prefiro os pássaros.” Contudo, a dor não é acalentada, apenas adormece preparando-se no contínuo da guerra.

Listen: Há filmes que simplesmente precisam ser ouvidos com atenção

Hugo Gomes, 09.09.20

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Um filme-denúncia dissecado por Ken Loach e todos esses cantos e recantos do cinema social. “Listen”, que erradamente tem servido de arma instrumental para guerras antigas, é um objeto curioso das suas próprias desgraças, num desencanto abalável que contrai momentos de pura emoção (muitos deles sustentados pela melhor das melhores Lúcias Moniz). É simples, digamos, sem espinhas, mas apoiado por uma coluna vertebral frágil e mesmo assim seguro da sua força. Curioso para ver esta visão à inglesa aplicada mais vezes no nosso cinema, nem que seja o seu caráter ativista e sem rodeios, sem floreados e à sua vontade, cru. Há qualquer ‘coisa’ em Ana Rocha.