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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Para não perdermos Margarida Gil de vista ...

Hugo Gomes, 18.10.23

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Cavaleiro Vento (2022)

Sessão dupla de Margarida Gil chega aos cinemas portugueses, principalmente para nos lembrar da (ainda) presença da realizadora neste meio, especialmente em tempos como estes em que se clama por mais mulheres na direção de obras de ficção.

É muito difícil uma realizadora conseguir apoio para primeiras longas-metragens porque o ICA está construído como um sistema bastante patriarcal, os júris são maioritariamente constituído por homens.” A frase é de Ana Moreira, em outubro de 2021, ano em que protagoniza a segunda longa de Bruno Gascon (“Sombra”), e não é por acaso que tal declaração saiu dos seus lábios. A atriz prepara terreno seguro numa paralela carreira enquanto realizadora, simultaneamente ostenta um invejável percurso de intérprete como currículo, com algumas colaborações com cineastas de mais forte cariz no nosso cinema. Quem a consegue esquecer enquanto rosto de “Os Mutantes” de Teresa Villaverde, ou, neste contexto, como Adriana no homónimo trabalho de Margarida Gil

A atriz esteve ao lado dessas mulheres antes da questão da pluralidade se tornar um tema mais amplamente discutido, naquela época, esse 'ativismo' ainda era marginalizado, por vezes visto com indiferença, mas de forma alguma inexistente. É, portanto, à luz da atualidade, quando estamos ansiosos por novos nomes e perspetivas, que tendemos a negligenciar as heroínas do passado que ainda continuam ativas. Se Teresa Villaverde teve uma trajetória aparentemente “mais sortuda”, Margarida Gil resistiu em acordos para manter a sua operação artística, resultando em financiamentos cada vez mais escassos. As duas obras apresentadas em conjunto são evidentes exemplos dessa resiliência, duas experiências à parte, a curta - “Cavaleiro Vento” (2022) - e uma longa de 2010 - “Perdida Mente” - que não vira a luz da distribuição comercial. Curiosamente, ambos coincidem enquanto produções oriundas de pequenas produtoras, e geridas por mulheres. 

Perdida Mente”, apresentado no Festival Independente de Vídeo e Filme de Nova Iorque, leva-nos ao ator José Airosa, seis anos após ser-lhe atribuído a “cara que merece”. Na “carcaça” de Joaquim, um padeiro clownesco que em certo dia coloca inconsciente as botas no forno ao invés de pão, levando a um prejuízo que culmina no seu despedimento. Sem razão para este ato, a não ser da loucura que lhe vai apoderando a mente, uma doença neurológica degenerativa que o forçará a uma espécie de trágico arlequim, enquanto a sua filha, sonhando com danças e tutus, assume-se mártir, no aparo da sua eventual queda. 

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Perdida Mente (2010)

No cinema de Margarida Gil existe um constante dilema / conflito para com a figura paterna, seja ele ausente ou indigente, e no caso de “Perdida Mente” é um vazio quase espiritual a manifestar-se como antagonismo nesse quadrante parentesco, visto que o corpo de Joaquim expõe-se como uma presença embaraçosamente sem controlo, por vezes oca, designada à sua abstração. Palavras esquecidas, memórias turvas e desfeitas em uma realidade refém de uma alternativa sufocante e degradante. O comboio, aqui o da vida, alegoricamente, instala-se como elemento psico-onírico, a viagem em carris imaginários e de passageiros, testemunhos de uma existência em dissolução, que acenam ao fatídico, ao inevitável e ao total esquecimento de Joaquim perante si mesmo. 

Talvez as botas, essas “cozidas” em fornos alheios, seja a metáfora de um homem impossibilitado de andar, e os caminhos de ferro, apresentados pontualmente, seja um trilho carroleano para a sua própria loucura. Num dos momentos, o ator José Pinto, o “Malagueta”, amigo da família e acidental ‘Anjo da Guarda’ em toda esta situação, se deleita com uma pista circular de um comboio de brinquedo, o objeto inanimado, por mais velocidade que atinja não consegue “sair do seu circuito”. Aqui, o tal “Malagueta”, provinciano e modesto homem em que cada sílaba recorre ao conselho companheiro, uma espécie de alado enviado pelo Paraíso para acalentar dores iminentes, enquanto que José Wallenstein, o médico predatório que interrompe consultório adentro, com teses sociais em formato de tentações mefistotelicas, a amoralidade e por si, a vontade dos Homens acima dos seus vínculos. 

Perdida Mente” é um filme de resistências e cedências, quer a do protagonista à sua condição, da sua filha ao fado ou de Margarida Gil em construir o seu poema para lá das adversidades produtivas (nota-se os baixos recursos, os possibilitados pela produtora Ambar Filmes, tutorada por Solveig Nordlund). Mas apesar da sua aparência “barata”, exibe um lado de rebeldia para com a sua própria causa, por vezes desesperante, entre esses momentos, a de Maria do Céu Guerra, utente hospitalar que na angústia da sala de espera procura ser … simplesmente ouvida pela enfermeira de serviço. No fundo, Gil e o seu “Chaplin debilitado” desejam ser escutados, custe o que custar.

Já “Cavaleiro Vento”, a mais recente curta da realizadora, marca o seu retorno aos Açores, ao Pico especialmente (18 anos desde “Adriana”), conectando mitologias em tramas familiares. É como, segundo Gil, um sonho acordado: a paisagem única da ilha, com o vulcão adormecido no centro da paisagem, ordenando toda a atenção que o mundo pode reter, e um fantasmagórico cachalote levitando perante esse mesmo. Uma fantasia delirante, no entanto interrompido pelo drama que desenrola no ecrã, crónicas de famílias e de pais ausentes, onde a realidade emergente é distorcida pelo escapismo proporcionado pela mitologia que se repete. Através da lenda de Quetzalcóatl, a sagrada serpente de plumas que seguindo os cânones da mitologia tolteca, criador do mundo, somos desviados daquele mundo que Gil nos oferece através do mise-en-scene, conectando tragédias do mundano em narradas tragédias épicas. 

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Cavaleiro Vento (2022)

Assim como aconteceu com "Perdida Mente," o baixo orçamento apresenta desafios que requerem soluções criativas, no entanto, em "Cavaleiro Vento", o formato compacto da obra parece mitigar algumas dessas limitações. É na perspetiva de Margarida Gil que se destaca o afinco táctico-técnico, por exemplo, na câmara serpenteante que segue de perto estas personagens, como se estivessem "presas" a mitos de tempos passados, e igualmente imersas num ambiente familiar  a condizer ao gosto da realizadora. 

Ambas as obras refletem a urgência de não esquecer Margarida Gil, realizadora de mais de 40 anos de carreira, desviada das atenções e obrigada à precariedade dos seus trabalhos. Lembramos-a, antes que perdidamente a tenhamos de recuperar em futuros anos num tom de revisionismo histórico. 

Será que as tartarugas também amam?

Hugo Gomes, 03.03.23

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Feita uma pausa na dedicada procissão ao inventário artístico e intelectual de Pedro Costa, Júlio Alves encena a novela de Mário de Carvalho - “A Arte de Morrer Longe” - um “Marriage Story” à portuguesa, constrangido e dotado de um senso de absurdo que passa por representação da espuma dos nossos dias. 

Aqui, o casal Arnaldo e Bárbara (Pedro Lacerda e Ana Moreira) colhe os frutos da negligência aos seus “felizes para sempre”, sintetizando que em “terra enfadonha” não existe príncipes encantados e como tal, a separação soa-nos um golpe de misericórdia ao suplício de uma relação moribunda. O processo formaliza-se como um inventário (aliás, outro para a carreira de Alves) - “da cozinha podes ficar com o microondas” - até que alguém menciona o “elefante da sala”, mais precisamente outro animal a assumir o silencioso e embaraçoso ícone do conflito: uma tartaruga. 

O pequeno e singelo réptil é a partir daquele específico momento a exaltação de um necessário final de compromissos, possivelmente a última em que o “casal” terá como tomar enquanto … isso mesmo, casal. Porém, através de debates para apurar quem “fica com o ‘bicho’”, ou de quem o “‘bicho’ é propriedade”, que Arnaldo e Bárbara conformam-se em unir ao derradeiro destino do animal, naquele, aparentemente, simbólico e pequeno gesto, uma emancipação dos mesmos, o direito da sua respectiva individualização (possivelmente o digno final do casal, esse conjuntivo social o qual se empreenderam anos e anos). 

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A Arte de Morrer Longe” é uma tragicomédia que embarca na alegoria do quelônio, o medidor de tensão arterial a uma relação, prescrevendo-a a um digno final, mais do que a consolidação. O desfecho será visto como acesso à independência social. Enquanto isso, a jornada doméstica destes seres não habilitados para com o anterior animal de estimação é tido num visual respeito quanto à sua privacidade, dito isto são os constantes planos engendrados em que Arnaldo e Bárbara mantêm-se, de alguma forma, separados e retidos para com o seu redor, a solidão por ambos emanadas traduzir-se em “gravidades” próprias (bem presente devaneios oníricos que aludem a essa, cada vez mais, distância para com o estabelecido conformismo), apenas intercalados por grandes planos da tartaruga, cuja natural vagarosidade do animal transfere uma certa indiferença ao conflito do casal. 

Dito isto, Júlio Alves converte-se num certificador da imaginária e criada “ordem de restrição" decretada pelas personagens, e sem barricadas, indicia um invulgar trilho de superação para ambas. Os atores, por sua vez, são cúmplices dessa entranhada e voluntária melancolia. O que existe depois do amor?

Ana Moreira: "o ICA está construído como um sistema bastante patriarcal"

Hugo Gomes, 13.10.21

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Sombra (Bruno Gascon, 2021)

Em tempos de paz, os filhos enterram os pais. Em tempos de guerra, os pais enterram os filhos”: conhecemos Isabel desta forma desconcertante. Uma mulher presa ao vazio gerado pela sua vida, mas acima de tudo, uma mãe desesperada, aguardando que o seu filho chegue um dia a casa, nem que seja a sua sombra ou que resta dela.

Ana Moreira é essa figura depenada, de luto adiado, num filme chamado "Sombra" que se aproxima de uma história real, o do desaparecimento sem deixar rasto de Rui Pedro, com 11 anos, em 1998, e de uma mãe inquieta, Filomena Teixeira, condenada a viver entre manchetes e suposições. Bruno Gascon, realizador habituado às causas, presta homenagem a estas mães com a sua segunda longa-metragem, que é tanto um drama como um "thriller" e um ensaio psicanalista da dor das dores.

Numa conversa que mostra que não é de interpretações que é feito o seu cinema, falei com a atriz que prestou corpo a um martírio e se tornou uma figura incontornável da nossa cinematografia desde que nos conquistou há 23 anos com “Os Mutantes”, de Teresa Villaverde.

Começo a conversa por lhe perguntar como entrou para este projeto.

Aconteceu por convite do próprio Bruno Gascon e da produtora Joana Domingues. Estavam interessados numa possibilidade de convocar-me para este papel, o da Isabel. Li o guião e automaticamente achei o projeto interessante. É uma história ligada à nossa memória coletiva, que ainda recordamos e a que estamos intimamente ligados. Encontrei-me com o Gascon, que explicou... bem devagarinho para não me assustar [risos]... do porquê de querer contar esta história e agora, e sobre a minha personagem, que me foi apresentada aos poucos, assim como o guião. Rapidamente percebi que iria ser uma viagem complexa, emocionalmente difícil e exigente. Ao ler o guião - tendo a perceção do quão bem escrito estava - fiquei, de alguma maneira, atraída por esta história.

Considera-se uma atriz de método?

Não me considero, até porque não estudei artes dramáticas, por isso, nunca passei... como dizer... por uma escola de teatro ou de atores. Tenho 20 anos de carreira, interpretei diversos papéis e, inclusive, fui protagonista diversas vezes. O meu método é singular, foi construído através da experiência, da prática, extraindo conhecimento do simples ato de fazer.

Perguntei isso porque gostaria de saber como trabalhou psicologicamente e emocionalmente uma personagem como esta, que lida constantemente com o vazio da sua perda e que, ao mesmo tempo, resiste a esse abalo.

São vários elementos que se vão reunindo durante o processo. Alguns deles através do guião, através de ideias, como também houve encontros com mães de crianças desaparecidas, em que tive oportunidade de ouvir as suas histórias, de uma maneira mais íntima, partilhando as suas “viagens” e aquilo que elas sentiam. E isso foi muito importante para a construção da minha personagem. Saliento que tive um encontro com a Filomena Teixeira, mãe do Rui Pedro, que talvez seja a inspiração maior para este filme, e esse contacto foi muito especial, o de conhecer verdadeiramente esta mulher com uma história de vida tão incrível, cruel e brutal. Ela serviu como elemento crucial para a minha personagem. O resto foi interpretação.

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Sombra (Bruno Gascon, 2021)

Será inevitável não pensar no caso do Rui Pedro ao ver “Sombra”.

Sim, mas ao mesmo tempo não deixa de ser uma ficção. Apesar de existir aqui uma grande responsabilidade, não senti a necessidade de me “colar” à pessoa que é a Filomena ou outra que passou por igual experiência. Por isso também damos muito aquilo que nós somos, aquilo que podemos entregar à personagem. É um processo de imaginação e criação que fazemos à mesma.

A Ana Moreira é uma das atriz mais reconhecíveis do cinema português, tendo colaborações com realizadores distintos e bastantes expressivos como, obviamente, Teresa Villaverde, Miguel Gomes, Eugéne Green, Jorge Cramez e Margarida Gil. O que leva a escolher com quem trabalhar? Quais são os seus parâmetros de seleção?

O projeto tem que reunir várias condições para provocar interesse e vontade de querer colaborar com certos realizadores em determinados filmes. Não têm que ser todos [papéis] protagonistas, mas passa pela pertinência da história, da personagem, pelo elenco que nos vai rodear, pela equipa, são vários fatores que se conjugam e nos ajudam a selecionar certos projetos. Por vezes, atiramo-nos sem saber, no caso do Bruno [Gascon], nós não nos conhecíamos. Ele estava ciente do meu trabalho e eu só tinha visto o “Carga”, que é, no fundo, a sua primeira longa-metragem. Nesse sentido são importantes os primeiros encontros para criar empatias, perceber se as pessoas encaixam e entender se os projetos são desafiantes ou não.

Já aconteceu não sentir empatia com um realizador ao ponto de não aceitar o papel?

Já. Várias vezes. Mas não é o de sentir desagrado, mas perceber que aquela personagem não era para mim ou de não ser a pessoa certa para interpretá-la, mesmo que o realizador esteja interessado. Por vezes, sentimos que não há conexão de alguma maneira, e entendemos que se aceitarmos ou tentarmos forçar o trabalho de alguma maneira, não irá correr bem. Aí sinto que estou a fazer perder tempo, ao realizador, ao projeto e a mim. Por isso, não é benéfico para todos.

Deixando um pouco a Ana Moreira, a atriz, gostaria que me falasse da Ana Moreira, a realizadora. Neste momento, com duas curtas [“Aquaparque”, “Cassandra Bitter Tongue”] e uma colaboração no coletivo “Contágio”, também aproveitou experiências alheias?

Após vários anos de trabalho com diversos e diferentes realizadores, todos com maneiras de filmar e de escrita para cinema, é inevitável que a experiência adquirida ao ler tantas propostas diferentes de fazer e escrever cinema tenha sido apropriada de alguma maneira. Mas tal não impede de construir a minha própria linguagem. Essa formação motivada pela experiência (e muito especial, aquela adquirida em rodagem, não restringindo-se somente à teoria, e sim, para entendermos a prática de cinema - a teoria de cinema é tão diferente da sua prática) é muito importante, e como tal levo isso para os meus próprios projetos.

Quando poderemos ver a Ana Moreira como autora de uma longa-metragem?

Estou a trabalhar nesse sentido. Tive o apoio do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] para escrita e concretização de longas e vou começar para o ano a desenvolver esse projeto.

Mas de onde e em que momento surgiu essa vontade de se aventurar na realização?

Acho que esta vontade, de alguma maneira, esteve sempre em mim. Como havia dito, não estudei artes dramáticas, mas estudei arte e estive alguns anos no Ar.Co. O cinema e o teatro surgiram em paralelo, levando-me a parar os estudos, que foram retomados algum tempo depois. Por fim, fiz um mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas na Faculdade de Belas Artes no Porto. Por isso, de certa maneira, a minha vontade sempre esteve mais ligada à criação, suscitada e motivada após anos de trabalho como intérprete, tendo reunido as condições apropriadas para realmente avançar.

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Os Mutantes (Teresa Villaverde, 1998)

No papel de realizadora, o que acredita faltar ao cinema português, ou caindo no cliché - “o que é que o público deseja encontrar no seu cinema?"

Em especial agora, depois da pandemia, tive contacto em vários festivais de cinema com trabalhos de alguns realizadores emergentes que estão simplesmente a fazer o trabalho deles. Ou seja, a fazer cinema. Aí noto uma necessidade de [contar] histórias novas, mais contemporâneas, atuais, desviando-se do nosso cinema ainda agarrado “ao antigamente”. Estão a aparecer realizadores bastante interessantes que estão a contar histórias que, de alguma maneira, estão mais próximas de nós.

Pode nomear alguns desses “realizadores emergentes”?

David Vicente Pinheiro, João Salaviza, Diogo Baldaia, Leonor Noivo, Salomé Lamas. Ou seja, está a fervilhar um novo cinema português.

Mas em Portugal continuamos a ter realizadores que estão anos e anos no formato da curta-metragem, enquanto outros, como Leonor Teles [“A Balada dos Batráquios”] regressam ao ponto de origem após fazerem uma longa [“Terra Franca”].

Pois, podemos falar de outra coisa, que é a questão das mulheres no documentário. Houve aí uma fase em que se “admirou” que as mulheres ocupassem "um grande espaço no documentário português”, mas creio que isso se prende com um aspeto mais depreciativo. É muito difícil uma realizadora conseguir apoio para primeiras longas-metragens porque o ICA está construído como um sistema bastante patriarcal, os júris são maioritariamente constituído por homens. Ou seja, isso faz com que, de alguma maneira, outras narrativas, principalmente as construídas por mulheres, dificilmente sejam validadas por estes júris. Por isso é que para uma mulher é muito mais fácil concretizar uma curta ou uma longa documental do que uma longa-metragem ficcional.

Nesse caso, visto que trabalhou com Teresa Villaverde em três filmes, como é que ela conseguiu vingar-se num mundo dominado por homens?

A Teresa conseguiu através de muito esforço e trabalho. Aliás, não foi só ela, mas também muitas outras mulheres da sua geração, como é o caso da Margarida Gil ou de Margarida Cardoso, que ocuparam uma lacuna, um espaço, e acima de tudo mantiveram-no até aos dias de hoje. A vinda do digital permitiu que muitas realizadoras, como também realizadores, pudessem iniciar os seus caminhos sem estar verdadeiramente dependentes do financiamento do ICA. O resultado é esta nova colheita de realizadoras, e posso dar-lhe um exemplo, Marta Sousa Ribeiro, do “Simão Chama”, que foi premiado no último IndieLisboa. Apesar de tudo, está-se a abrir um espaço, mas ainda há muito caminho a percorrer.

"A ficção é a maneira mais eficaz de expressar a realidade": falando com Eugène Green

Hugo Gomes, 23.12.19

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No início de 2020, mais precisamente no a 5 de janeiro, dá-se início à Retrospectiva Integral e à carta branca de um dos grandes devotos da cultura portuguesa, Eugène Green. Nascido em Nova Iorque e radicado em Paris, o realizador celebrizado em filmes “A Religiosa Portuguesa” e “La Sapienza” sempre renegou o inglês, chegando mesmo a recusar dialogar com alguém nesse “bárbaro” dialeto, como o considera. E não se trata de um mero capricho, o realizador é um ávido devorador da palavra, a verdadeira energia das suas personagens, das suas ficções e realidades. Green é um homem literal e com isso preza a sua liberdade na escrita e no processo de produção dos seus filmes.

A Imagem da Palavra“, o cabeçalho desta exposição exaustiva sobre a sua obra, é um atalho para entender o seu cinema e a última palavra aos universos criados pela sua prosa. Essa profunda análise ao seu cerne encontra uma extensão: os filmes que acompanham a sua figura, sejam eles da sua autoria ou de outros mas que fazem parte do seu paladar cinéfilo. Eugène conversou comigo sobre esta proposta, sobre a “sua palavra”, mundo e sapiência.

Na sua carreira, o que representa uma exposição como esta?

Apesar de eu já ter tido retrospectivas (quando a minha filmografia era um pouco mais curta, em festivais como o de Turim, Gijón, Riga, Paris-Cinéma, e recentemente na Cinemateca de Toulouse e no Arsenal em Berlim), esta é a primeira vez, tendo em conta a retrospectiva, no qual sou fruto de uma exposição num prestigiado museu de arte contemporânea. Como é óbvio, a sua representação é para mim importante.

Podemos esperar uma abordagem “íntima” da sua visão cinematográfica e poética nesta exposição? Não tem medo de expor o essencial, o íntimo, do seu trabalho?

Este é, de facto, um olhar externo ao meu trabalho – neste caso, o de António Preto [diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira] – e representa isso mesmo, sob outra forma, um artigo de análise crítica. Não é “íntimo”, pois não sou eu que me exponho aqui, mas alguém que, de forma contemporânea, observa atentamente e disseca o meu trabalho. Encaro isso como uma abordagem muito interessante e simultaneamente acredito que pode ajudar as pessoas a gostarem do meu cinema.

Visto tratarmos aqui de retrospectivas e análises ao seu trabalho, existe algum arrependimento na sua carreira? Por oposição, de que obras é que mais se orgulha?

Lamento especialmente ter perdido tanto tempo. Enquanto escrevo guiões com facilidade, lancei-me em muitos projetos, mas para que eles tenham sucesso, com algumas raras exceções, o tempo de espera é entre os quatro a cinco anos. Também lamento muito ter sido forçado a filmar “La Sapienza” e “Faire la parole” em digital, embora tenha sido acordado que os filmaria, tal como os outros filmes, em película. Os meus filmes são como se fossem os meus filhos, amo todos eles. Mas tenho uma ternura particular pela “A Religiosa Portuguesa”, porque foi aí, segundo a minha perceção, que fui mais longe em direção àquilo que procuro.

Em relação a Portugal, pode explicar este seu apego pela nossa cultura e pelas nossas pessoas?

É algo natural e espontâneo, que não procuro analisar intelectualmente. Portugal, o seu povo, a sua cultura e a sua língua tocam-me e despertam em mim uma memória que, sem dúvida, é mais antiga que o meu próprio nascimento.

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La Sapienza (2014)

O que pode nos dizer sobre o projeto “Lisboa Revisitada”?

Era “uma encomenda”, não no sentido em que me ditaram o tema, mas simplesmente porque me pediram para criar algo novo para a exposição, e o orçamento modesto do filme era financiado pela Serralves – o que significou que não houve a necessidade de esperar cinco anos para a sua realização. Também foi interessante enquanto experiência, pois é o meu primeiro filme de “montagem” – justapondo imagens de “A Religiosa Portuguesa” com imagens dos mesmos lugares, em Lisboa, filmadas em abril de 2019. É, portanto, um filme sobre os danos do turismo em massa e como este destrói a vida e a civilização. Mas espero desenvolver esse tema de maneira mais profunda, bem como o da violência no mundo contemporâneo, através de uma ficção que quero filmar em Portugal e em português … isto se pudermos encontrar o financiamento antes que o mundo acabe.

O que pode-nos dizer sobre o seu novo filme – "Atarrabi & Mikelats"?

É uma longa-metragem inspirada nos principais relatos da mitologia basca, sobre os dois filhos de Mari, a grande deusa basca, que adaptei para expressar alguns temas importantes para mim. E é inteiramente falado em basco. É um filme do qual me orgulho e espero que seja lançado em Portugal.

A temática desta exposição é a Palavra. No seu cinema, são as palavras que controlam a vida e não os gestos…

O tema realmente é – como o título diz – “A Imagem da Palavra“, que é a minha definição de Cinema, pois para mim o plano cinematográfico funciona como o discurso que existia na civilização europeia antes do triunfo, no século XVIII, da cultura racionalista e materialista. Existem muitas palavras nos meus filmes, mas elas visam tornar perceptível a vida interior daqueles que as falam. E tudo isso faz parte do plano cinematográfico. As minhas personagens podem não fazer muitos gestos, mas todo o processo do filme constitui uma ação.

Com exceção de “Tout Le Nuits” – baseado na obra ‘A Primeira Educação Sentimental‘ de Gustave Flaubert – os seus projetos foram inteiramente escritos com as suas palavras. Acha que com isso consegue controlar melhor um filme?

Nunca fiz essa pergunta, mas como acho que a ficção é a maneira mais eficaz de expressar a realidade, em toda a sua complexidade, gosto de criar ficção. Acredito que a “adaptação” de uma obra literária ao cinema, como geralmente a consideramos, é prejudicial e, sim, gosto de ser completamente livre para desenvolver as minhas ficções e determinar as palavras que dizem as personagens.

No “Le Monde Vivant”, existe aquilo que podemos considerar uma (re)alfabetização do real. No mundo em que vivemos, esta nova alfabetização do real é realmente necessária?

Não sei se entendi bem a pergunta. Você evoca as poucas referências como “Jules Ferry” e “bruxa lacaniana”? Não precisa conhecê-los para apreciar o filme. A prova é que, na França, está no catálogo de uma associação chamada “Infância e Cinema”, que organiza exibições de filmes para grupos escolares. Já foi visto e geralmente apreciado por cerca de 70.000 crianças entre oito e dez anos, as quais duvido que saibam o nome de Jules Ferry e das quais espero que nenhuma tenha sido colocada nas suas mãos de uma bruxa lacaniana.

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Ana Moreira em "A Religiosa Portuguesa" (2009)

Gostaria que me falasse sobre as suas escolhas cinematográficas na carta branca, em particular na indicação de “Mimosas”, de Oliver Laxe.

Por razões alheias ao meu controlo, a seleção final não reflete totalmente a minha ideia inicial, que era programar três clássicos representativos da minha cinefilia e três jovens realizadores que fazem parte da minha “família” cinematográfica. Dos três clássicos, um filme de Ozu não estava disponível (e o segundo filme de Ozu, que propus, também não estava disponível). Entre os três jovens, queria programar o último projeto do Oliver Laxe,O Que Arde”, mas o distribuidor português não autorizou a exibição. Então programei o seu penúltimo filme, “Mimosas”, o qual também gosto muito, mas que pode ser considerado mais difícil para alguns espectadores.

Todos esses cineastas, mortos ou vivos, têm em comum uma ideia elevada do cinema como arte, uma linguagem pessoal e, sob diferentes formas, os respetivos trabalhos têm uma dimensão espiritual. Obviamente, entre os clássicos, também poderia ter escolhido uma obra de Bresson, Oliveira ou Fellini, cineastas que admiro muito, e entre os vivos, [um trabalho de] Bruno Dumont, Miguel Gomes, Pedro Costa, Apichatpong ou Eloy Enciso. Programar uma carta branca é como decidir que amigos vamos convidar para uma festa.

Ama-se o plano para nunca odiar o Cinema

Hugo Gomes, 12.06.17

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Há 10 anos,  estreava entre nós o filme “O Capacete Dourado”, um romance de contornos shakespearianos transportado para o contexto social atual e que, de forma vampírica, beberia de uma tragédia que tanto “apimentou” os medias portugueses. Infelizmente, apesar da passagem em Locarno, a atenção não foi a devida o que, em conjunto com os “trambolhões” que o sistema de validação e financiamento de projetos cinematográficos deu na última década, procrastinaram este tão esperado regresso (sem querer afirmar com isso que Jorge Cramez é uma espécie de D. Sebastião do cinema português). Cinema, esse, que ao contrário do pensamento demagógico, não precisa de ser salvo.

Eis que surge “Amor Amor”, a transformação atual da peça La Place Royale ou l’Amoureux Extravagante, de Pierre Corneille (escrito em 1634), para uma intimidade ritualizada que o autor assume. Tratando-se de uma história de encruzilhadas amorosas entre cinco personagens, todas elas remetidas a amores secretos e a planos ocultos para a concretização dessas mesmas paixões, tudo decorrido no último do ano.

O quincôncio é inserido em diferentes signos, como figuras estampadas de qualquer baralho de tarot, tendo a nosso dispor a Trágica (Ana Moreira), o Manipulador (Jaime Freitas), a Cínica (Margarida Vila-Nova), o Ingénuo (Nuno Casanovas) e por fim, o Romântico (Guilherme Moura). Figuras que incentivarão esta tragicomédia a seguir sob um registo coeso e igualmente boémio em relação às suas tramas. Uma festa, uma praia e por fim o réveillon como reinício, as três etapas que adensarão estas relações em constantes choques.

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Mas o que nos motiva a gostar imensamente deste “Amor Amor”, não é o seu enredo, nem as suas personagens, nem sequer os diálogos, nem mesmo as suas sofredoras paixões e compaixões que servem de linguagem meta-cinematográfica. O que realmente realça a nova obra de Cramez de muitas outras produções nacionais (sobretudo aquelas com as quais compete no Indielisboa), é o afeto evocado pelo plano. O realizador constrói um filme tendo em consciência prioritária de como filmá-lo, e nesse modo atribuir uma narrativa vivaça, fortemente rica e sobretudo de um virtuosismo rigoroso em relação à sua estrutura técnica. “Amor Amor” separa-se dos imensos produtos televisivos (sempre associados à palavra – técnica) por essa dedicação à perspetiva do espectador, incutindo com isso algumas das sequências mais belas do cinema português recente. E que amor esse! Pelo plano conjunto, de tão difícil marcação, pelo grande plano que tenta invocar a introspeção quase direta da alma das personagens (a mencionar a transposição dos quadros de arte e do olhar do artista a essa transfiguração).

Mas esta experiência, o bem-vindo reencontro da longa-metragem, não é de todo perfeita e Cramez, apesar de acertar na narrativa visual, falha sobretudo na narrativa temporal. Tarkovski referia o tempo, não como uma simulação, e sim como um retrato realista. “Amor Amor” pode não ter a ousadia de elaborar uma intriga de 24 horas de ordem fiel, porém, não conseguiu transmitir essa sensação de tempo. Um dia é mais atribulado que uma semana e devido a isso, o espectador perde-se neste registo temporal. Trocando por miúdos, há demasiados eventos para 24 horas.