Portugal e o mundo árabe na distância de uma projeção. Arranca a 1ª edição do Lisbon Arabe Film Festival.
Everybody Loves Touda (Nabyl Ayouch, 2024)
Entre as muitas definições sobre a verdadeira essência do Cinema (o nosso absolutismo da 'coisas'), que variam consoante a sensibilidade e a perspetiva de cada um, há um facto incontestável: esta arte, além de contar histórias, criar estéticas ou expressar gestos artísticos, teve e tem contribuído para o encurtar da distância geográfica. Sentimo-nos mais próximos, mais comunicativos e por vezes, mais humanos. Através de uma projeção, uma tela e um filme, somos “transportados” para outros cantos do mundo, sejam eles exóticos ou simplesmente distantes, essa capacidade "vendida" de viajar através do Cinema alimenta o desejo de saciar curiosidades, como a forma como um determinado povo se vê a si próprio, ou a imagem que projeta perante o resto do mundo.
Deixemos de lado estas divagações “pseudo-filosóficas”, diversas carimbadas em spots para vender cadeias de cinema, para anunciar que Lisboa irá acolher a primeira edição do Lisbon Arab Film Festival, uma mostra de obras produzidas provenientes dos mais variados países que comumente associamos à "Arábia": o Médio Oriente, conectando ainda com o Norte de África. Este evento terá lugar na Culturgest, entre os dias 1 e 5 de outubro. Não há dúvida de que filmes desta natureza são em todo um caso um ponto de escuta e de observação, desafiando estereótipos, denunciando ‘males’ ou simplesmente narrando vidas que poderiam muito bem ser as nossas. Há Mil e Uma Noites a serem contadas, em película e em digital, abordando temas como liberdade, fé e esperança.
Nabyl Ayouch, cineasta marroquino aclamado em diversos festivais, terá a honra de abrir este evento com o filme feminista “Everybody Loves Touda”. Já “Inshallah a Boy”, de Amjad Al Rasheed, uma coprodução entre a Cisjordânia, o Qatar, a Arábia Saudita e a França, encerrará a mostra. O Cinematograficamente Falando … desafiou João Gonçalves, vice-presidente do festival, a revelar mais detalhes sobre a programação.
A criação do Lisbon Arab Film Festival reflete a crescente necessidade de transcender estereótipos. Como foram selecionados os filmes para garantir o desafio dessas percepções convencionais sobre o mundo árabe?
A seleção dos filmes foi baseada em vários factores: a qualidade artística; a variedade de representatividade dos países árabes da região do Norte de África e Médio Oriente; a variedade de tópicos abordados nos filmes. Selecionamos filmes que representam uma multiplicidade de vozes e que desafiam estereótipos, mostrando que para lá do Mediterrâneo os desafios e desejos são inerentes à condição humana, e também que mostram algumas características culturais dos diferentes povos árabes. No fundo, pretendemos ir para além das percepções superficiais sobre a região, mostrando histórias de resistência, amor, lutas sociais e emancipação.
Sendo esta a primeira edição do festival, que impacto esperam ter no público português e, de uma forma mais ampla, na relação entre Portugal e o mundo árabe?
O nosso objetivo é criar um espaço de diálogo intercultural que permita ao público português explorar novas perspetivas e entender a riqueza e a diversidade do mundo árabe. Esperamos que o festival ajude a romper com alguns estereótipos e crie pontes de entendimento. A longo prazo, desejamos que o LAFF [Lisbon Arabe Film Festival] se torne uma plataforma cultural importante para fortalecer as relações entre Portugal e os países árabes.
Hounds (Kamal Lazraq, 2023)
O cinema é frequentemente visto como uma ponte para a compreensão cultural. De que maneira pretendem abordar questões e temas sensíveis, promovendo um diálogo intercultural sem cair em polarizações?
A nossa intenção com o LAFF nunca foi torná-lo um festival político. O nosso objetivo é proporcionar ao público em Portugal a oportunidade de conhecer uma realidade diferente, mas que está tão próxima de nós. A presença árabe em Portugal durou cerca de 500 anos e, no entanto, sabemos muito pouco sobre esse período. Muitos aspetos da nossa vida, como a organização das cidades, especialmente a sul do Tejo, e a própria arquitetura, refletem influências do mundo árabe. Na seleção dos filmes, não evitámos temas sensíveis que possam causar impacto ou desconforto no espectador. Pelo contrário, acreditamos que o cinema tem o poder de ser um catalisador de reflexão e ação. Queremos que os filmes exibidos no festival não só gerem debate, mas também ajudem a promover um diálogo intercultural genuíno, abordando temas complexos de forma que vá além de visões polarizadas.
A curadoria do festival inclui várias produções co-produzidas com países europeus. Estas colaborações intercontinentais enriquecem a narrativa sobre o mundo árabe nos filmes apresentados?
Acreditamos que as co-produções entre países árabes e europeus trazem uma riqueza adicional às histórias. Além disso, essas parcerias permitem que as histórias sejam contadas com diferentes sensibilidades e recursos, contribuindo para uma narrativa mais completa e abrangente.
Com filmes de várias geografias, como Marrocos, Palestina e Arábia Saudita, de que maneira o Lisbon Arab Film Festival pretende sublinhar as diferenças culturais e sociais dentro do próprio mundo árabe, em vez de o tratar como uma entidade monolítica?
O festival foi projetado para refletir a diversidade dentro do mundo árabe, destacando as diferenças culturais, sociais e políticas que existem entre os vários países da região. Cada filme traz uma perspetiva única sobre o contexto específico de onde vem, seja no norte de África ou no Médio Oriente, explorando questões locais, tradições e formas de vida que contrastam entre si. O objetivo do LAFF é mostrar que o mundo árabe não é homogéneo, mas uma mancha de retalhos de identidades e culturas ricas e variadas, que por algumas vezes têm semelhanças entre si.
O festival não se limita apenas à exibição de filmes, mas inclui eventos paralelos como encontros com cineastas e experiências gastronómicas. Como é que estes elementos adicionais contribuem para aprofundar a experiência do público e ampliar o entendimento cultural?
Estes eventos paralelos, como as experiências gastronómicas, são essenciais para criar uma experiência mais imersiva e envolvente para o público, conhecendo melhor a região. A ideia seria que ao interagir diretamente com os realizadores, o público teria a oportunidade de entender melhor os contextos culturais e os processos criativos por trás dos filmes.
Bye Bye Tiberias (Lina Soualem, 2023)
Como veem, dentro do circuito comercial português, a distribuição e difusão de obras cinematográficas árabes? Como acham que o público português reage a essas cinematografias?
Embora o cinema árabe ainda tenha uma distribuição limitada no circuito comercial português, o festival pode servir de plataforma para aumentar o interesse e a visibilidade dessas obras. Estamos confiantes de que, com a promoção adequada, o público português, que já demonstrou grande interesse pelo cinema arabe noutros momentos, com filmes como “Les Filles d'Olfa” [Kaouther Ben Hania, 2023], “Adam” [Maryam Touzani, 2019] ou a “Cairo Conspiracy” [Tarik Saleh, 2022], e acreditamos que a curiosidade despertará ainda mais depois do nosso festival.
Expectativas futuras para o festival?
O nosso objetivo é que o LAFF cresça e se torne um evento de referência entre o mundo árabe e Portugal. No próximo ano, temos a visão de expandir o festival a outras cidades portuguesas e de acrescentar um ciclo retrospectivo de obras anteriores ao ano 2000. Também pretendemos acrescentar uma nova nuance na nossa visão, que seria uma ligação cultural através da música e ter pelo menos um concerto por ano com artistas do mundo árabe. Assim pretendemos melhorar a construção de pontes culturais.
Para ter acesso a toda a programação, ver aqui