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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Hui So-Ying, a eterna Ah Ying numa Hong Kong em mudança: "Viver é representar, e representar é viver."

Hugo Gomes, 05.11.25

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Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Uma jovem corta e amanha peixe num mercado em Hong Kong. Pela sua expressão, não é tarefa que lhe agrade, mas pouco pode reclamar. Ao seu lado, o olhar quase ditatorial da mãe, proprietária daquela banca de peixeira, impõe-se silenciosamente. Depois do trabalho, regressam ao asilo doméstico, abafado pela família numerosa, onde o espaço é mais requisitado do que o apartamento pode oferecer. É uma vida lotada e igualmente limitada. A jovem, que momentos antes esquartejava o possível jantar de alguém, suspira por uma alternativa, aquela que poderá ter encontrado nas aulas de interpretação, lecionadas pelo seu professor invisual, 'brinde' pelo trabalho no centro filmíco. Entre ambos nasce uma forte ligação, erguida sobre a performatividade, a mesma em que a peixeira, já agora de nome Ah Ying, deposita a esperança de um futuro sem o odor do peixe.

Não, não é o vosso típico “ascensão de uma estrela”, esse género que se formalizou por si só, feito para suspirar e inspirar espectadores, embriagados pelas frases motivacionais e histórias-modelo de veneração à resiliência e à determinação. Em “Ah Ying”, de Allen Fong (1983), somos conduzidos a um retrato quase social, e por vezes premonitório, de Hong Kong dos anos 80, num registo cinematográfico distante daquilo que a indústria local da época dava como garantido: dos policiais aos cineastas emergentes, muitos deles saídos do Hong Kong Film and Culture Centre, aqui a servir de cenário para o progresso dramático da protagonista.

Aliás, ela (a tal peixeira contrariada), Hui So-Ying, era também uma rapariga de mercado. Afiava facas como as testava nos peixes comprados pelo freguês e, à noite, seguia para as aulas de interpretação, com o desafio de ser atriz na mente, como entendia que devia ser. Sim, a história é dela, com um pseudónimo pelo meio, um docudrama, como a própria gosta de o definir. Peça importante na cinematografia hongkonguense, o filme enquadra uma época, uma geração, e os movimentos que fervilhavam e reivindicavam uma juventude inquieta — uma juventude em plena renúncia aos passos dos seus progenitores, desejosa de romper com a maldição social, afastar-se do precário e abraçar o artístico. O Cinema, como janela de fuga.

E foi também daí que nasceu uma atriz — Hui So-Ying — que nunca mais se libertou dessa personagem. Viu-se vencida pelas maldições da sua própria encarnação, regressando anos depois com pequenos papéis, passo a passo, até voltar ao protagonismo. Sempre será a nossa rabugenta Ah Yin!  Foi com a 2ª Mostra de Cinema de Hong Kong em Lisboa (25 a 28 de setembro) que voltou a ser lembrada assim. Os dois filmes mais recentes trazidos para o evento só comprovam que se mantém activa, firme no ofício. Se terá sucesso ou não, pouco lhe importa, como expressou abertamente, porque saberá sempre como cortar o peixe. Aquela jovem de rebeldias silenciosas ainda vive nela.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a actriz a poucos dias da apresentação da sua Ah Ying no Cinema Ideal [28/09], praticamente inédita em solo português. O diálogo decorreu sob a sombra desse trabalho, revisitando outros desempenho, rindo no final diante do futuro “endeusado” que poderá surgir. 

Podemos resumir que “Ah Ying”, cuja sua popularidade foi bastante alavancada nos festivais internacionais e de ter deliciado a crítica de cinema na altura, continua pouco referido no Ocidente, principalmente quando se aborda a história do Cinema de Hong Kong dos anos 80. Acredito que isso deve-se ao facto de “Ah Ying” ser um produto, não apenas da sua geração, mas da sua geração local?

Basicamente, acho que muitos críticos no Ocidente (ou quem não conhece bem o cinema e a história de Hong Kong) não souberam interpretar o filme. Não têm noção da sociedade, das tradições e da realidade de Hong Kong naquela altura. Especialmente os valores familiares tradicionais. Por exemplo, porque é que ela tinha de ir ao mercado? E o mercado cinematográfico, naquela altura, era muito diferente do que é hoje.

Ah Ying”, não era um cinema muito… virado para o entretenimento, digamos assim. Na verdade, o cinema de Hong Kong era muito ambicioso. Havia muito apoio ao cinema local. Na década de 80, alguns realizadores da Nova Vaga fizeram filmes muito realistas. Claro que alguns foram bem recebidos e outros não.

Por exemplo, “Ah Ying”, sendo sobre uma jovem mulher e tendo algumas associações a certas políticas de esquerda, não recebeu grande atenção na altura. Isso, e porque não era um filme de entretenimento comum na linha das produções de acção que se fazia naqueles tempos.

Mesmo assim acredita que o “Ah Ying” tem lugar na história do cinema de Hong Kong?

Afirmativamente, de certa forma. Não se pode negar que, nos anos 80, a história do cinema de Hong Kong apoiava muito os realizadores da Nova Vaga hongkonguense. Havia vontade de investir em filmes realistas, não comerciais e não centrados na questão do entretenimento.

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Hui So-Ying na apresentação de "Ah Ying" no Cinema Ideal / Foto.:  Gonçalo Castelo Soares

Achas que o gosto do público de Hong Kong mudou desde então?

Mudou, sim. Hoje em dia é mais fácil estudar em Hong Kong. O nível de conhecimento e o nível académico melhoraram muito. Por isso, as pessoas não querem apenas ver filmes de entretenimento, também gostam de ver filmes mais profundos. Isso elevou o pensamento e o gosto do público no geral.

Se hoje “Ah Ying” fosse feito, seria bem recebido em Hong Kong?

Mesmo hoje em dia, não vejo muitos filmes de Hong Kong feitos daquela maneira. Filmes assim, tipo docudrama, praticamente não existem. Este ano, em 2025, tivemos algumas exibições especiais em Hong Kong e a reação foi muito positiva. Mas claro, não é o mesmo que a exibição regular, com várias sessões por dia … nesse caso, não sei se haveria assim tantas pessoas a ver. Não tenho a certeza. Mas em sessões especiais, nota-se que as pessoas gostam.

É descrito que “Ah Ying” tem como base muito da sua experiência pessoal. Como isso contribuiu para concepção para jornada vivente desta Ah Ying, e o que há nela de real à sua pessoa e vivência?

Não é uma obra totalmente dramática. Como é que digo? Não é só ficção. Mas se fosse apenas o meu registo pessoal, não funcionaria, porque não haveria esperança [risos]. Então foram acrescentadas coisas ficcionais nela. Por isso é que se pode chamar de docudrama: metade real e metade não. No filme, a minha família é mesmo a minha família: o meu pai, a minha mãe e a minha irmã. Só o meu irmão mais novo e a minha cunhada não são reais. O resto são mesmo os meus familiares.

E o mercado era o mesmo?

O mercado não é exatamente o mesmo, porque era difícil filmar lá. Encontrámos outro mercado para rodar o filme.

De peixeira a aspirante a actriz, a jornada de “Ah Ying” não é tanto de ascensão no meio artístico, mas a sua luta em evadir uma vida precária. Em um momento a mãe de Ah Ying perante o anúncio de uma nova audição da filha diz que ela deveria se dedicar ao mercado. O filme lida com essa visão pejorativa da classe trabalhadora para com a classe artística dos anos 80, hoje o cenário é o mesmo, ou existiu alterações?

Na verdade, quem vende peixe continua a vender peixe. A minha situação era muito específica, por isso o realizador pediu-me para contar a minha história. Em classes sociais diferentes, as pessoas não têm muito contacto com o cinema, nem vão as vezes que pretendiam às salas. Então, a diferença entre os anos 80 e hoje? Diria que é quase igual. Quanto à luta retratada no filme, também não mudou muito. Vender peixe até dá mais dinheiro do que muitos outros trabalhos.

Mas a sua personagem quis escapar dessa vida, como a Hui So Ying …

Pode-se dizer que sim, mas a principal razão para ter feito este filme foi o meu professor de interpretação ter falecido. Então pensei que devia fazer algo para o homenagear. Ele ensinou-me representação, e quando soube que tinha morrido, senti que precisava de fazer alguma coisa.

Se me perguntares se queria sair daquela vida, não consigo dizer concretamente. O meu principal objetivo era homenageá-lo. Vendia peixe porque os meus pais eram muito trabalhadores, e simplesmente queria ajudá-los. Essa era a razão de estar no mercado… e a razão pela qual entrei no cinema foi o facto do meu professor ter morrido.

Vender peixe é mais admirável do que ser atriz?

Não posso dizer isso. [risos] Não. São coisas diferentes. No meu caso, sempre gostei de representar. Por isso vendia peixe durante o dia, e à noite ia ao Hong Kong Film Culture. No filme consegues ver isso representado de alguma forma.

E acerca disso. A Ah Ying tem aulas de interpretação no Film Culture Centre, que foi um centro de formação importante para a vinda de uma nova vaga de cineastas de Hong Kong, o filme antecipa esses nomes e estilos, ou foi pensado para incentivar esse crescimento artístico?

O Hong Kong Film and Culture Centre ajudou muita gente com interesse em cinema. Essas pessoas trabalhavam durante o dia e iam estudar à noite. Na altura, não havia assim tantas oportunidades para aprender técnicas de cinema. O Fruit Chan, por exemplo, foi uma das pessoas que frequentou o centro. A Ann Hui, com a qual vim a trabalhar em “A Simple Life” (2011), aprendeu lá e entrou na indústria.

Por isso digo que o centro ajudou muitos cineastas, e também queriam mostrar que nos anos 80 existia esse espaço. Muitos dos professores eram realizadores e argumentistas da Nova Vaga de Hong Kong. Quando filmámos, voltámos ao centro, todavia, eles já tinham mudado para outro sítio, e ainda não estava renovado. Pedimos ao dono para alugar o espaço para terminar o filme.

Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Então, essa cena em que eles destroem o carro pode ser entendida como uma metáfora ao fim do ‘Film Center?

Não exactamente. Eles mudaram-se para outro sítio, mas continuaram em Hong Kong. O espaço é que ficou mais pequeno. Havia menos produção, não havia tantas aulas. A razão principal foi o financiamento limitado.

O centro cultural ainda existe?

Continua a existir, mas é diferente. O nome mudou. Antes era Hong Kong Film Culture Centre, agora é Film Culture Center Hong Kong. Mudou porque houve dinheiro que desapareceu, ou algo assim, não estava muito claro na altura. Portanto, decidiram alterar o nome: puseram “Hong Kong” no fim. [risos]

Com os louros de “Ah Ying”, a sua carreira obteve o devido ‘empurrão’, poderemos considerar este o seu filme crucial? De algum modo ainda é reconhecida ou referida como Ah Ying em Hong Kong?

Na verdade, quem costuma me chamar para representar sabe que eu sou a Ah Ying. Claro, este é o meu filme mais importante. Muito especial na minha carreira.

Agora se a minha carreira ia ter o impulso que devia… estou só a ser sincera: se acontecesse, aconteceu. Se não acontecesse, não aconteceria. Não sou daquelas pessoas que tem de continuar a representar a todo o custo. Isso não faz parte de mim. Se alguém achar que este filme, ou que uma certa personagem, me assenta bem, vem falar comigo. Penso na proposta, leio o guião. Aceitar ou não depende do motivo.

Já disse isto: o meu objetivo principal com este filme era homenagear o meu professor, e tal feito consegui. Não estou aqui para procurar atenção ou outras regalias.

Depois de “Ah Ying” trabalhou em “No Regret” (Herman Yau, 1987), depois dessa obra deu-se um hiato, voltaria ao cinema em 2009. O que terá acontecido por essa ausência e o que motivou esse ressurgimento no Cinema?

Casei. [risos] E quando tive a minha primeira filha, ainda estava a trabalhar como assistente de produção, só que estava sempre a pensar nela. Então senti que tinha de deixar o trabalho para cuidar dela. Depois tive a segunda filha e aí já não dava mesmo para voltar. Só quando elas cresceram é que senti que podia, e estava na altura de regressar.

Nesta Mostra de Cinema de Hong Kong de Lisboa serão exibidos dois filmes com duas interpretações recentes suas, que proveito obtém de uma carreira longa de filmes como “Papa” (Philip Yung Chi-Kwong, 2024) e “All Shall Be Well” (Ray Yeung, 2024)?

Representar é como a vida, e a vida é como representar. Viver é representar, e representar é viver. Por isso, para mim, não há diferença de um filme ou de outro. Mesmo agora, neste momento, também estou a representar. [risos] 

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All Shall Be Well (Ray Yeung, 2024)

Em “All Shall Be Well” são abordadas questões delicadas, não apenas no contexto de Hong Kong, mas também em relação a outras realidades sociais, como as relações afectivas entre pessoas do mesmo sexo. Na sociedade de Hong Kong, continua a ser um tabu representar estes temas no cinema? Além disso, segundo o filme, essas relações permanecem num vazio ou desprezo jurídico.

Não é tabu  nenhum. Só que há pessoas contra. Hoje em dia pode-se falar, está aberto, mas o Governo de Hong Kong ainda não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse é o ponto principal. Claro que há políticos que são contra. Acho que é um passo atrás, visto que em muitos sítios do mundo já é aceite. Portanto, não ser aceite, ou não ser legal, é injusto para os casais do mesmo sexo.

Pergunto isto porque o filme em si é muito tímido a mostrar a relação entre aquelas duas personagens. Discreto até.

Sim, porque algumas famílias não aceitam. Há famílias que aceitam, claro, mas há outras que não querem ter sequer um vislumbre dessa estrutura familiar. Esse é o problema. Por isso há casais do mesmo sexo, mesmo já com idade, que continuam a ter dificuldade em assumir-se.

O filme está a mostrar uma realidade verdadeira. Talvez na sociedade chinesa ainda não queiramos mesmo enfrentar isso. E a forma como o filme mostra é a forma como é na realidade.

Queria terminar com uma contemplação ao futuro: quanto a novos projetos? E vais voltar a ser a atriz principal nesses próximos trabalhos?

Sim, vou voltar.

Vai?!

Vou sim! Posso adiantar que vou ser uma deusa taoísta. Uma rainha celestial numa curta-metragem. É sobre a realidade, mas usa essa mitologia, essa lenda, para tornar tudo mais delirante.

 

Um agradecimento especial a Virginia Or, pela tradução do cantonês e pelo auxílio.

"O cinema de Hong Kong é pouco visto em Portugal": vem aí o 2º Making Waves para contrariar a tendência!

Hugo Gomes, 24.09.25

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Ah Ying (Allen Fong, 1983)

Está a chegar uma corrente vinda de Hong Kong ao Tejo, parece desaguar no Cinema Ideal nestes tempos. Portanto, façam ondas … O Making Waves, a segunda mostra de Cinema de Hong Kong de Lisboa, acontecerá nos próximos dias, de 25 a 28 de setembro com vista para o rio donde partiram os exploradores para a rota marítima do Oriente, mas longe dessas eras colonizadoras, hoje é Hong Kong a ‘colonizar-nos’ com uma mostra breve e altamente curada do cinema que se pratica naqueles cantos remotos. O que podemos dizer sobre o Hong Kong cinematográfico sem referir os lugares-comuns das vagas anteriores, ou do expoente cinema de acção ou até mesmo desse continente à parte de nome Wong Kar-Wai, esse “bichinho” que conquista corações por esse mundo fora. 

A programadora Vanessa Pimentel respondeu ao desafio do Cinematograficamente Falando … falar-nos desta mostra e as razões para ser uma rota oriental para cinéfilos portugueses. Que segredos cinematográficos ainda tem Hong Kong guardados?

A mostra surge como uma ponte entre Hong Kong e Lisboa, mas também como um gesto de mediação cultural. Quando se seleccionou estes seis filmes, pensou mais em revelar Hong Kong ao público português ou em provocar o olhar que Lisboa tem sobre si mesma através desse espelho asiático?

O programa Making Waves visa a promoção do mais recente cinema de Hong Kong, fora do seu território. É um programa que acontece em várias cidades do mundo, desde a Ásia até à América, em que, cada cidade e cada programação faz a sua própria seleção. Como sabemos, o cinema asiático e, em particular, o cinema de Hong Kong é um cinema menos visto em Portugal - a Ásia é um lugar longínquo.  

Nesse sentido, quando a Blue Lotus Lisboa abraça este projeto, fá-lo com a intenção de dar a conhecer ao público, em Lisboa, o que, do nosso ponto de vista, de melhor se tem produzido no cinema de Hong Kong, deixando em aberto a leitura que quiser ter, sobre Hong Kong, sobre Lisboa e sobre o mundo. Esta mostra é, também, marcada pela presença de público bastante heterogéneo, com diferentes origens e backgrounds, penso que a multiplicidade dos olhares é um dos seus pontos fortes.

Quais os desafios encontrados de uma para a segunda edição da mostra?

Julgo que o desafio mais óbvio de uma segunda edição será certamente superar a primeira. Numa seleção bastante diferente da seleção do ano passado, manter a qualidade dos filmes que propomos era a primeira prioridade, seguindo-lhe a possibilidade de trazer pessoas relacionadas com cada filme para termos as conversas - Q&A  que se seguem às sessões e penso que ambos foram cumpridos. Temos seis filmes premiados ou que marcaram presença em Festivais de Cinema internacionalmente reconhecidos, um restaurado, da primeira Nova Vaga de Hong Kong, de 1983 e, com todos os filmes, temos uma actriz, uma produtora, uma montadora e três realizadores que estarão em Lisboa, para partilharem connosco as suas experiências. Será, sem dúvida, interessante ouvi-los e poder perguntar-lhes sobre o que nos interessa. 

Por fim, e não menos importante, está a capacidade de atrair público que é, naturalmente, outro dos desafios importantes. Temos boas expectativas e acho que podemos conseguir um bom resultado, a ser posto à prova já no dia 25 de Setembro.

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All Shall Be Well (Ray Yeung, 2024)

O programa oscila entre novos nomes e um clássico restaurado, “Ah Ying” (Allen Fong, 1983). Que leitura quis propor ao colocar lado a lado estas duas extremidades, o cinema mais fresco e a herança de uma Nova Vaga já distante?

A ideia é sempre criar uma perspetiva mais abrangente do cinema de Hong Kong. Hoje em dia, com a quantidade de títulos que vão sendo restaurados, em Hong Kong e não só, abre-se a possibilidade de trazer à sala de cinema títulos que não poderiam ser revistos, de outra forma. O cinema de Hong Kong é pouco visto em Portugal, no seu todo, ou seja, tanto os títulos mais recentes, como os mais antigos. Trazer um filme restaurado é dar a conhecer mais um título igualmente importante e revelar um pouco mais do património cinematográfico de Hong Kong, dando a possibilidade, como referi acima, de alargar a perspetiva que podemos ter

Há uma evidente intenção de confrontar o público com temas universais — saúde mental, maternidade, género, resistência física — mas sempre ancorados em Hong Kong. O que é que se perde e o que é que se ganha quando se universaliza uma cinematografia ainda marcada por tensões locais?

As cinematografias das mais diferentes regiões podem versar sobre os mais variados temas. A universalidade talvez nos torne mais próximos uns dos outros, mas têm sempre uma abordagem particular, penso que a ‘individualidade’ ou a componente autoral não se perde e enriquece qualquer universalidade. Tomando como exemplo a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, um tema que se discute em vários sítios do mundo e que colide, na nossa sociedade, com princípios católicos, somos confrontados, em “All Shall Be Well” (2024) com a inexistência da possibilidade legal para reconhecer a união de duas mulheres, aqui, numa perspetiva particular de Hong Kong, levantando outras questões como o problema da especulação imobiliária e da habitação  - curiosamente, outro tema mais universal do que seria desejável e que é foco de grande tensão, dadas as limitações naturais do território. 

De resto, em todos os filmes estão presentes características particulares de Hong Kong, desde as paisagens e cenários aos hábitos culturais, às perspectivas sociais e individuais, facilmente as ‘universalidades’ se particularizam nos autores que as invocam, julgo que essa é uma componente de grande evidência e importância, neste programa.

Segundo os press releases, a mostra pretende “criar uma ideia mais concreta de Hong Kong”. Mas não haverá o risco de, ao concentrar seis filmes num curto espaço de tempo, cristalizar uma imagem que, sendo parcial, se confunda com uma verdade total?

A nossa intenção é trazer ao público em Lisboa mais e mais cinema da Ásia, no caso concreto, o Cinema de Hong Kong, abrindo portas ao imaginário português para esta cinematografia de paragens mais distantes. Pensar que qualquer região ou cinematografia se pode fechar em apenas seis títulos, seria largamente redutor. O ano passado trouxemos sete títulos e este ano mais seis, todos muito diferentes entre si, na forma, na estética, na técnica e na temática. Quando se fala em ‘criar uma ideia mais concreta’ não significa fechar um conceito, mas sim torná-lo concreto, através de imagens, sons e histórias que nos são dadas a ver e ouvir e não uma mera especulação ou ideia pré concebida do que é ou pode ser Hong Kong. 

Um exemplo da possível clarificação de preconceito, são os dois documentários que trazemos este ano que, apesar de bastante diferentes entre si, nos mostram a extensa paisagem natural de Hong Kong e não a habitual cidade repleta de arranha céus que estamos mais habituados a ver. Por outro lado, a vinda dos realizadores e atores estreita esse contacto e permite-nos saber mais sobre a realidade de Hong Kong.

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Four Trails (Robin Lee, 2023)

O que me pode dizer sobre os convidados? Da sua importância para uma mostra destas como a sua selecção?

Como já referi em respostas anteriores, a vinda dos convidados é uma oportunidade única para conversar sobre os filmes que vamos ver, mas também sobre como é fazer um filme em Hong Kong e sobre a sua realidade. Qualquer filme que tenha um elemento principal da equipa disponível para falar sobre o seu trabalho enriquece sempre a experiência da sessão a que se refere e permite que o público se relacione com a história e a experiência partilhadas na sala, de forma mais intensa. Por exemplo, este ano teremos a atriz [Hui So-Ying] que protagoniza o filme restaurado “Ah Ying”, o que não é habitual. Por outro lado, será extremamente enriquecedor tê-la entre nós para partilhar a sua experiência, em particular, neste filme que se inspira, em parte, na sua própria história.

Como encara o atual cinema de Hong Kong, tendo em conta que os principais movimentos artísticos, e até produtivos, parecem ter entrado em desuso ou expirado na sua criatividade. Ou existe desde sempre uma ideia redutoramente ocidental quanto ao cinema de Hong Kong?

O cinema, em todo o mundo, tem vindo a deparar-se com variados desafios e as (im)possibilidades de produção são ainda mais variadas e de diversas índoles, estando sempre presente a nuvem da ‘morte do cinema’ com as diferentes dificuldades de financiamento e a pressão para a ‘standardização’ em determinados canais, um pouco por todo o lado. Sou bastante otimista e julgo que a capacidade de reinvenção e a vontade de filmar e de contar histórias pode e tem superado as adversidades, dando lugar a novas estratégias de produção que permitam a concretização de novos filmes. Este programa é, a meu ver, sinal de que o Cinema de Hong Kong não sofre de criatividade expirada e tem, pelo contrário, um património rico e gerações mais velhas e, também, estreantes a produzir cinema de forma autêntica e com qualidade reconhecida.

Por fim, ao trazer para Lisboa esta segunda edição do Making Waves, até que ponto sente que está a programar para a comunidade asiática residente, para o público cinéfilo português, ou, secretamente, para si própria enquanto espectadora que também procura ver o que raramente chega às salas?

Naturalmente, o que nos motiva na Blue Lotus Lisboa é a ligação  que temos à Ásia e essa é base fundamental para um projeto que ambicionamos ver crescer e evoluir na direção de um Festival de Cinema Asiático em Lisboa.

Na elaboração da programação tentamos, como já referi, manter uma qualidade elevada nos títulos apresentados. De resto, programamos para todos os que estejam interessados e que queiram ver esta cinematografia tão importante e de rara visibilidade em Lisboa, sempre na expectativa de podermos cativar e chegar a mais pessoas. Temos todo o gosto em ter nas salas um público heterogéneo, de diferentes raízes e motivações, a riqueza desta mostra está, também, na diversidade e na partilha de perspetivas motivando o diálogo entre universos tão distantes.

Toda a programação poderá ser consultada aqui.