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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

My name is Bourne, Jason Bourne

Hugo Gomes, 27.07.16

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Prevejo que aquilo que o leitor pretende realmente saber é se esta quarta estância é ou não o esperado regresso do "velho" Jason Bourne (e não outro esquecível e oportunista spin-off como “The Bourne Legacy”). Com Paul Greengrass de novo detentor da batuta e Matt Damon, o "corpo ao manifesto" de mais uma conspiração global, a resposta é claramente - sim.

Sim, eis o modelo de ação milenar que a saga tão bem apresentou-nos em três bem sucedidos filmes. Até porque em 2002, Doug Liman assinava a adaptação do livro de Robert Ludlum (e remake de uma mini-série televisiva de 1988), tendo um resultado que saiu dos eixos da matéria prima, mas que primou numa vintage sofisticação. “The Bourne Identity” evidenciava de uma acção de realismo formatado, de tons cinzento que depressa o divergia dos embriões da moda “Matrix” que o início do século lançava sem exaustão, e "bebendo fortes golos" dos ditos thrillers conspirativos da década de 70.

A outra razão da dita inovação foi de uma mera questão de timing, Matt Damon, sob a pele de um mortífero homem sem memória, enfrentava os mais diferentes inimigos, todos eles vindos ou fruto das políticas de segurança nacional e da fragilidade do mesmo. Vivíamos em tempos pós-11 de Setembro, o centro daquele vórtice de heróis da "pesada" directos dos 80s e 90s perdeu o seu "quê" de invencibilidade, eram agora um alvo como tantos outros (falo obviamente dos ataques ao Pentágono, que gerou uma alarmante ideia de vulnerabilidade num país que sempre apresentará ideia diferente). Ou seja, sob uma forte atmosfera de medo e paranóia, a estreia de “The Bourne Identity” e a sua recepção foi um meio para despoletar outros ensaios de ação cada vez mais focados neles próprios, por outras palavras, tornaram-se mais ambíguos, críticos e menos dados a maniqueísmos geopolíticos.

A saga “Bourne’” funcionou como uma distorcida variação da Guerra Fria, há quem encontre aqui uma certa veia do “The Manchurian Candidate” e a ferocidade de um Charles Bronson, quer em “Death Wish” ou no subvalorizado “The Mechanic”. Com a vinda de Greengrass à realização e o seu modo de filmagem guerrilheira, tivemos direito a dois dos mais duros e credíveis filmes de ação do nosso tempo (“The Bourne Supremacy” e "The Bourne Ultimatum").

Voltando a este quarto filme, somente intitulado de Jason Bourne, onde o nosso "anti-herói" envolve-se (ou novamente) na intriga que nunca o abandonara desde 2002. O 11 de Setembro e as políticas de medo já lá vão, mas nunca nos abandonaram, por um lado a insegurança mantêm-se, mas existem outras preocupações que o filme Greengrass quer manter-se actualizado, e uma delas chama-se "Caso Snowden". Desde a revelação dos ficheiros da NSA pelo ex-analista de sistemas que uma das grandes questões levantadas pelo Homem em relação à sua gradual dependência da tecnologia é a preservação da privacidade e os jogos orquestrados nas nossas sombras. A informação torna-se no ouro deste novo milénio e nisso "Jason Bourne" consome mais uma vez para embarcar em mais um conjunto de sequências de ação e de neo-espionagem.

A gestação de nove anos deu-nos uma réplica dilacerada pelos habituais lugares-comuns, o filme de Paul Greengrass pode bem ser moderno, mas é repetitivo e a inovação diversas atribuída à saga não encontra lugar em todo este plano global. Porém, aquilo que não se pode acusar neste "Jason Bourne" é de moleza, o filme continua a apresentar-nos um ritmo gratificante, sempre interagindo com o realismo e ampliado por um realização hand-cam de enorme carácter. Depois disto, temos ainda uma Alicia Vikander a roubar qualquer cena em que surge (não percam esta "rapariga" de vista, por favor).

Contudo, existe algo interessante nesta, para muitos, enésima produção de adrenalina: é que Jason Bourne faz até um certo mapeamento da situação europeia através dos seus locais de rodagem. Iniciando com a Islândia, passando pela Grécia (sob motins), chegando à Alemanha e atravessando uma Inglaterra receosa, quatro localidades que traduzem todo um recente historial da velha Europa, o continente em constante metamorfose política, social e económica. Todavia, não estou aqui para dar lições ou debates sobre a nossa vivida actualidade, isso terá que ficar para outro dia!

I know who I am. I remember everything."

Armados em espiões

Hugo Gomes, 05.09.15

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Após a sofisticada reinvenção da mais célebre criação de Arthur Conan Doyle - “Sherlock Holmes” - e a sua subsequente sequela pouco bem-sucedida, Guy Ritchie apresenta um thriller "retro-tech" baseado na famosa série televisiva “The Man From U.N.C.L.E.”, transmitida entre 1964 e 1968. Neste projecto, Ritchie afasta-se momentaneamente do seu inconfundível toque estético, que havia sido exageradamente caricaturado em “Game of Shadows" (a mencionada sequela de “Sherlock Holmes”), mas preserva o seu apurado gosto musical.

“The Man From U.N.C.L.E.”, em sintonia com o recente “Kingsman” (Matthew Vaughn), extrai a sua aparentemente inesgotável energia de uma colecção musical eclética, que está sempre em perfeita harmonia com a ação. Esta seleção, em conjunto com o habitual e engenhoso humor britânico de Ritchie, proporciona várias sequências lúdicas de comédia física e sugestiva. Naturalmente, nada de completamente absurdo como em “Snatch: Porcos e Diamantes” (2000), uma vez que o contexto é diferente, e Ritchie foca-se em criar um filme de estúdio destinado às audiências estivais.

The Man From U.N.C.L.E.” exala nostalgia nos seus poros, com um tratamento mais "retro" que o habitual. Uma colaboração entre CIA e KGB, recheada de sátiras e contrastes culturais da época, com Armie Hammer a representar o lado sovietico e Henry Cavill na mimetização de um 007 yankee, o buddy cop movie com ambições de cinema de espionagem, envolvidas em dinâmica jigajoga. Depois há Alicia Vikander, atriz sueca, recentemente “pirilampo” em “A Royal Affair” (Nikolaj Arcel, 2012) e no tratado à lá Philip K. Dick “Ex Machina (Alex Garland, 2015), irradia uma luz capaz de contagiar os seus co-intérpretes masculinos. O restante é vintage, agradável e estiloso, um filme de estúdio com personalidade.

For a special agent, you're not having a very special day, are you?"

"Ex Machina": ser humano ou não ser, eis a questão

Hugo Gomes, 21.04.15

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Pelos vistos, a ficção científica não tem que ser apenas uma panóplia de efeitos visuais servidos em prol da ação. Tal temática pode bem funcionar como uma “bandeja” para reflexões filosóficas ou até sociais. Dentro do cinema recente, “Ex Machina” é um dos exemplares que usufrui desse artifício em benefício do debate, neste caso o “velhinho” dilema da inteligência artificial, retirado das entranhas dos autores Isaac Asimov e Phillip K. Dick, os quais condicionam algo mais que somente uma feira de vaidades de tecnologias futuristas ou sofisticação robótica, preferindo antes o desenvolvimento de questões do foro humano, como a consciência e a ilusão como característica irreconhecível dos mesmos.

Alex Garland, produtor e argumentista de inúmeros filmes de Danny Boyle, constroi uma fita a partir dessa ideia, mas não limita a mesma, aprofundando as ramificações que tal sugestão poderá gerar. Curioso que num tempo em que a ficção científica parece ter adquirido espetacularidade – veja-se os casos dos recentes “Transcendence” (Wally Pfister, 2014) e “Automata” (Gabe Ibáñez, 2014), que também questionavam as limitações da inteligência artificial, mas que cederam aos códigos do espalhafato cinematográfico – “Ex Machina” seja um protótipo discreto, astuto nos seus diálogos e concentrado em criar química entre as suas personagens.

Verdade é que a química existe entre humanos e máquinas, com Alicia Vikander (“A Royal Affair”) a mimetizar de forma convincente esse androide perfeito, apenas apelidado de Ava (evidente alusão à bíblica Eva). Ava é uma obra ainda em fase experimental, submetida a um questionário-teste que desafia as suas limitações como máquina camaleónica, ou por outro lado, confirmar a possibilidade de ter consciência.

O registo narrativo sugerido por Alex Garland, descrito como outro ponto a seu favor, é um autêntico quid pro quo digno dos contos de Thomas Harris, onde os diálogos perceptíveis e agradavelmente bem construídos salientam essa cumplicidade entre as duas oposições de matéria (a carne e o sintético). Aliás, poderíamos aclamar que “Ex Machina” tem mais contornos de thriller psicológico do que propriamente do “what if” de ficção científica. Albergado por um caprichoso trio de atores, Garland coordena aqui uma das mais gratificantes obras do género presenteada nos últimos anos por Hollywood. Quanto às questões de inteligência artificial (cada vez mais em uso), talvez este seja dos melhores exemplares desde o subestimado “I Robot”, de Alex Proyas (2004).