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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

Alice Rohrwacher debate sobre as suas 'quimeras': "o patriarcado é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano"

Hugo Gomes, 06.06.24

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Alice Rohrwacher e Josh O'Connor durante a rodagem de "La Chimera" (2023)

A estreia de “La Chimera” no Indielisboa serviu de pretexto para a cineasta Alice Rohrwacher revisitar Lisboa, cidade na qual, tal como confidenciou após expor o seu português algo enferrujado mas mesmo assim surpreendentemente bem falado, havia vivido alguns anos e até aos dias de hoje detinha uma faustosa admiração. 

Nesta quarta longa-metragem, a solo deve-se salientar, a realizadora quis fazer um retrato sobre a Itália e a sua relação com o passado, e para isso, o desmonta num olhar estrangeiro, aqui sob o corpo de Arthur, interpretado pelo ascendente Josh O’Connor, maltrapilho e errante, homem de ligações tortuosas com os variados tempos do país. É através das suas apelidadas “quimeras”, transes ou pressentimentos na ordem do sobrenatural, que o protagonista assume-se como cão farejador de túmulos etruscos, descobertos, violados e de artefactos vendidos. Ele faz parte dos “tombarolis”, os saqueadores de túmulos, que sem se aperceberem despertarão vozes do além, maldições ou espíritos interrompidos do seu eterno descanso.

La Chimera”, tal como as obras anteriores de Rohrwacher, é um filme malabarista quanto ao passado, presente e futuro, onde cada peão neste jogo vivente encontra-se refém à sua ilusão, à sua época e à sua Itália.

Como surgiu a ideia para “La Chimera” (“A Quimera”)?

Eu não sei. [risos] Não tenho uma ideia concreta. Só sei que todas as ideias vêm de longe, são como músicas que estão na cabeça, que andam comigo. Na verdade, o que aconteceu é que cresci numa região onde, nos anos 80 e 90, houve a “febre” pela busca de tesouros. Foi um fenómeno social proeminente na altura, mais ou menos como agora em Lisboa, com a compra de casas no bairro de Alfama. [risos]

Acho que isso tem muito a ver com a ideia de vender e comprar coisas que têm uma aura. Nos anos 80, com o mundo materialista, os ricos, que tinham poder de aquisição, queriam comprar a alma. E foi a primeira vez que a alma estava no mercado, e de certa forma, também o passado, algo que tem uma força própria. Estava a comparar, mas acredito mesmo que é o mesmo desejo que se tem agora de comprar uma casa na Alfama, na velha Lisboa, porque é a sensação de comprar não só um imóvel, como também de comprar uma história. Então, quando há uma demanda, há uma oferta, e esta era dada pelos tombarolis.

Os tombarolis começaram a buscar objetos antigos para vender porque havia uma procura por eles, uma necessidade, um mercado. O que eu queria fazer era explorar essa ideia, fazer um filme que não os retratasse como vilões, nem herois, mas como parte do mercado. E nesse mercado, eles eram a engrenagem do mecanismo. Mesmo que se considerem predadores da “arte perdida”, na verdade, eram como hamsters às voltas na sua roda. São os pobres tombarolis! Para mim, era importante contar isso.

Os tombarolis são apenas uma maneira evidente de vender algo sagrado vindo do passado que já não consideramos mais sagrado. Todas as vezes que tentamos fazer isso, somos totalmente tombarolis.

Vou usar essa ideia do sagrado ... Esta demanda dos tombaroli é figuradamente um retrato da Itália atual, onde nada é mais sagrado. Mesmo o passado, o qual estamos praticamente a violar sepulturas para resgatar esses itens e vendê-los sob a forma de outras ideias …

O filme decorre nos anos 80, e talvez seja muito impactante vir a Lisboa agora, porque esse processo está um pouco mais atrasado aqui. Mas, na Itália, isso já aconteceu. Conheço essa transformação, esse processo. Acho que já somos filhos desse processo. A alma já foi consumida pelo comércio e agora, como uma flor, acredito que o invisível vai-se aflorando, que vai regressar.

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La Chimera (2023)

Só que, neste momento, a Itália, a nível político, está a atravessar um genocídio cultural total que começou com Berlusconi e agora estamos a colher os seus efeitos. Mas, o que temos que fazer é acreditar na Humanidade, na inteligência das pessoas, e talvez... esperemos que sim! Este é o ponto principal, porque se pensarmos sempre no mal, acabará por atrair o mal. Devo pensar de forma positiva, acreditar que, embora às vezes me digam, ao apresentar um projeto, que "este filme não tem público", deva opor de que haja “um público que não tem filme”.

Neste filme, também como nos outros dois anteriores - "Le meraviglie" (“As Maravilhas”) e "Lazzaro Felice" (“Feliz como Lázaro”) - há quase uma mistura temporal entre o passado, o presente e o futuro, envolvidos numa certa ilusão. Por exemplo, em "Lazzaro Felice", há uma personagem, a marquesa [interpretada por Nicoletta Braschi], que vivia num passado forçosamente estagnado, no seu latifúndio, e usava tudo à sua volta para sustentar essa ilusão, com medo de confrontar uma realidade corrente que verdadeiramente não corresponde.

Sim. Como a conversa entre Flora [personagem de Isabella Rossellini] e a arte, que permanece na ilusão. Os filmes são muito conectados, embora muito diferentes, mas são, de qualquer forma, partes da mesma tapeçaria.

Há uma conexão profunda: o que fazemos com o nosso passado? Podemos destruí-lo, como fazem os tombarollis, ou podemos gelificar o passado, congelá-lo, como faz também Flora, que deseja que o passado não seja passado, porque quer pensar na sua filha amada como ainda estivesse viva.

Também existe uma outra perspectiva, que é a da Itália [personagem de Carol Duarte]. O passado como algo que pode ser reabilitado, transformado, as ‘coisas’ abandonadas - como a estação que aparece no filme - podem converter numa outra ‘coisa’, uma casa, por exemplo. Ainda é possível imaginar outras soluções que não sejam nem a destruição, nem o bloqueio... e nem a santificação do passado.

Acho muito curioso que tenha escolhido dois atores que não são italianos, o Josh O'Connor, que é britânico, e a Carol Duarte, que é brasileira. Porquê esta opção? Ouvi dizer que quando descobriu o Josh O'Connor, reescreveu o personagem especialmente para ele.

Reescrevi o personagem porque, inicialmente, ele era muito mais velho, porque é uma personagem em que tudo nele é sem esperança, e normalmente associamos a juventude à esperança. Quando encontrei o Josh compreendi que é um ator sem idade, e que Arthur funcionaria como alguém jovem e mesmo assim, mantendo nada esperançoso. É uma pessoa incrível, com o qual queria muito trabalhar, agora, já não consigo imaginar o filme sem ele.

Quanto à Carol Duarte, a personagem não precisava ser estrangeira, mas o problema é que a única pessoa no mundo que poderia fazer esse papel é a Carol. Confesso que não queria uma brasileira, mas ela, com a sua própria identidade e nacionalidade, tornou-se perfeita. Procurei italianos, franceses, enfim, de todas as nacionalidades, essa era uma questão que não me importava, porque Itália é como uma uma clochard do cosmo. Pode vir da lua, não importa. Podia vir do meu país ou de outro, não importa. Foi com a Carol que deparei-me com essa feminilidade de clochard do cosmo que procurava. 

Quando encontrei-me com ela via Skype, foi amor à primeira vista. De repente, soube que só ela poderia fazer a personagem, e julgo que compreendi isso antes dela. É uma personagem muito difícil de compreender, porque, inicialmente, é quase como uma aranha, depois vira flor. Tem uma transformação muito forte e, sobretudo, é uma pessoa icónica. Mas quando se lê no papel, uma mãe de dois filhos o qual esconde os filhos e que não tem tecto, morando provisoriamente … e meio clandestinamente na casa de uma senhora e age como se precisasse de lições de canto, soa trágico. No princípio, ela imaginou uma pessoa trágica e não, essa personagem é cómica. Então, fomos descobrindo essa personagem e chamamos a Itália de nossa filha.

Voltando à decisão de Josh O’Connor, o facto de ser estrangeiro serviria para que o prisma sobre esta Itália fosse de fora, a de um estrangeiro?

Estipulei que o Arthur teria que ser estrangeiro. Porque foram os estrangeiros, no princípio, tanto para o bem quanto para o mal - mas sobretudo para o bem - aqueles que mudaram o olhar dos italianos sobre a sua própria História e das suas ruínas. Todo o processo arqueológico, por exemplo, na Itália como na Grécia, começou por via da chegada de muitos estrangeiros que olhavam com uma perspectiva diferente a estes países e à sua arqueologia. Eles viam algo que as pessoas sempre tinham diante dos olhos, mas que não davam importância. Então, o estrangeiro é fundamental na descoberta dos nossos tesouros.

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La Chimera (2023)

E acho que isso continua até hoje. Quem somos sem estrangeiros? Nada, apenas pessoas sentadas sobre um tesouro, olhando sem realmente ver. Naturalmente, os tombarolis aproveitaram essa mudança de olhar sobre a própria História, mas os estrangeiros foram importantes na história arqueológica da Itália, trazendo uma perspectiva positiva. Foram eles que iniciaram o desejo de descobrir o passado. Como tal queria prestar uma homenagem a todos esses jovens de Inglaterra, da Alemanha, do Grand Tour, que entretanto chegavam à Itália. Queria que a personagem fosse oriunda do Norte da Europa, para representar isso.

A sua figura tem algo de cómico também, quase digno de slapstick, é esguio, de pernas longas, de andar desajeitado, parece quase Buster Keaton ou um Jacques Tati equivocado ...

Sim, também é uma pessoa muito trágica, porque está fechada no seu sofrimento, mas tem uma pequena evolução de demonstrar um lado cómico do heroi trágico.

O que separa o trágico e o cómico é a perspetiva?

Sim, a questão de perspectiva está presente em todos os meus filmes.

Quanto aos etruscos: elemento que se revelou muito presente na sua obra. Já "As Maravilhas" tínhamos a personagem do pai que referia quando podia o espírito dos etruscos. E em “A Quimera” esse povo, apesar de serem “arqueologicamente violados”, são mencionados como uma alternativa histórica de Itália. Há uma sequência em que uma personagem quebra a quarta parede para provocar o espectador, afirmando que se os etruscos estivessem mais tempo em Itália do que os romanos, seriam uma sociedade diferente, uma sociedade não-patriarcal.

Então, em "As Maravilhas", contei como as pessoas, nos anos 90, começaram a vender a ideia dos etruscos, até o “ar” deles vendiam … uma ideia bizarra. Isso ainda não aconteceu em Portugal, de momento ainda vendem casas, mas quem sabe, pode ser que daqui uns tempos façam perfumes - "ar de Alfama" - e vendem desalmadamente.

Em "As Maravilhas", falo sobre quando, depois de vender os objetos, só restava vender a ideia. Mas "A Quimera" é sobre os objetos, é anterior. É o momento em que se descobrem os artefactos, e de que o mundo é materialista, não comercial a ideias. Não sei se os etruscos eram matriarcais. Não sou arqueóloga. É claro que uma das ideias sobre os etruscos é sobre uma sociedade, pelo menos segundo o que nos contam os romanos, onde na aristocracia, homens e mulheres estavam no mesmo nível. Mas não sabemos a realidade. Só podemos saber através do que os romanos escreveram: "Incrível, vamos ao jantar na casa dos etruscos e as mulheres estão lá falando como pessoas normais." Eles estavam muito assustados com essa normalidade, com as mulheres sentadas à mesa com os homens a falar sobre os seus domínios, não como prostitutas, mas como senhoras. Para os romanos, isso era um pouco desestabilizador.

Mas o que pretendia com essa ideia era lembrar que o patriarcado, por exemplo, é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano. Houve um momento em que escolhemos esse percurso, essa direção, e isso é um facto.

Gostaria que me falasse sobre a contribuição de Pietro Marcello [realizador de “Martin Eden”] em “La Chimera”?

O Pietro Marcello escreveu o sujeito comigo, no sentido que fizemos a pesquisa juntos, entrevistando tombarolis, porque ele também vem de uma região, Caserta, perto de Nápoles, onde havia um grande mercado de objetos arqueológicos. Não eram etruscos, mas de outras populações. Depois, decidimos que seria muito complicado abordar várias regiões, porque de manhã é Grécia, amanhã na Itália e por aí fora ... Cada região tem o seu passado para vender. Para mim, era mais fácil concentrar-me na minha região, no passado da minha região e também nessa população que admiro muito. E quanto ao Pietro, somos muito amigos.

E trabalharam juntos no documentário “Futura” (2021).

Sim, trabalhamos juntos e sempre discutindo. Acho que, para mim, é muito importante colaborar, não só com o Pietro, mas também com Jonas Carpignano, Francesco Munzi, e toda uma nova geração de realizadores. Talvez porque o cinema está mais frágil, e a luta não é entre nós.

Precisamos estar unidos, porque a batalha é para salvar as salas de cinema. Talvez uma geração mais velha tenha experimentado um cinema mais forte, com mais contrastes entre autores. Agora, pelo menos na Itália, sinto-me muito próxima de outros cineastas, e não só na Itália, como também do Miguel Gomes aqui em Portugal. Sinto-me muito feliz em partilhar ideias, em colaborar, se possível. De facto, quis incluir o Pietro no argumento, porque começámos a pesquisar juntos.

Acho que é muito importante para as pessoas verem que os realizadores podem colaborar uns com os outros. Antigamente, Fellini trabalhou com Rossellini, e eles trabalhavam juntos. O argumento de "Le notti di Cabiria" foi escrito pelo Pasolini... Eles estavam todos muito conectados e se ajudavam mutuamente. Às vezes, escreviam guiões sem saber quem seria o realizador. Achavam: "Você vai fazer ou faço eu." E depois, passou um tempo na Itália onde tudo era muito "este é o meu, este é o meu", com grandes contrastes.

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Isabella Rossellini em "La Chimera" (2023)

Foi bom referir-se a uma nova vaga italiana, que apesar da frescura artística e um proeminente olhar para o futuro, possuem evidentes  traços com o passado cinematográfico italiano. Não querendo impor influências, mas consigo identificar o realismo mágico e folclórico do Ermanno Olmi no seu cinema. 

Ah, sim!

Julgo que tem uma grande admiração pelo Olmi, certo?

Sim, sim, tenho muita admiração por Olmi, como também pelo Rossellini

Faz uma vénia indireta em trabalhar com Isabella Rossellini … [risos]

O cinema de poesias, neste momento dá-nos maior  liberdade política que o cinema de narração, o de prosa.

Digo isto porque sinto que houve uma ruptura no cinema italiano em termos geracionais. Recordo há uns anos de uma polémica trazida por Gabriele Muccino, que a culpa dessa quebra de legado foi de Pasolini, que houve a quebra da cultura e um “culto ao autor”. Mas sinto que na vossa geração há esse vínculo com o passado, trazer uma herança para a frente.

A herança não é só fazer o seu filme, mas o método de fazer o filme também.

Aproveitando a deixa, tem novos projetos?

Eu queria muito, mas estamos numa altura um pouco trágica na Itália. O que é difícil avançar com qualquer ‘coisa’ em Cinema. O certo, é que trabalhei cinco anos numa antologia de fábulas. 

Algo à semelhança de Boccaccio ou até do “Il racconto dei racconti” [da autoria de Giambattista Basile], que fora adaptado por Matteo Garrone?

Não, nada de mundo fantástico, mais próximo ao real. 

Sabes que o Ítalo Calvino fez uma recolha regional de todos os contos de fadas italianos? São contos populares das diversas regiões italianas, também fez um trabalho bibliográfico, e atrás dele está o trabalho que fizemos.

Queria muito uma antologia de contos de fadas, também para crianças, para o público de amanhã, porque é importante saber o que vão consumir os nossos filhos. Não só o que a nossa geração consome, mas também a geração do futuro. Mas agora não sei se será o meu próximo projeto, porque produzir isso não está fácil. Veremos.

Como vê a indústria italiana nos dias de hoje?

Nós trabalhamos muito com dinheiro público, e isso, para mim, é algo muito bonito. Desde o começo, desde o meu primeiro filme, quando soube que havia dinheiro público para trabalhar, pensei na grande oportunidade e na responsabilidade de restituir algo à coletividade. Agora, o governo cortou a maioria dos apoios públicos.

É possível trabalhar com dinheiro privado, mas isso traz um problema ético, porque o setor privado precisa vender algo.

É um pouco como o último filme de Nanni Moretti, no momento em que ele tenta vender o filme à Netflix e eles exigem um “momento WTF”.

Depois, naturalmente, sei que sempre trabalho com produtores independentes que protegem o meu trabalho. Mesmo quando fiz "Le Pupille" (2022) com a Disney, tive muita liberdade; ninguém me disse o que tinha de fazer. Então, é possível trabalhar com grandes companhias privadas e ainda assim ser-se livre.

Mas, ao mesmo tempo, gosto da ideia de trabalhar com o Estado, com o Ministério da Cultura, de ter interesse cultural no que fazemos, e não apenas como uma imagem para vender ‘coisas’, ser-se antes um projeto cultural. 

Neste momento, o projeto cultural da Itália está um pouco encalhado.

Itália, como te vejo, como te descubro ...

Hugo Gomes, 04.06.24

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Alice Rohrwacher é, em toda a sua essência, filha de Itália, e é dessa herança que tece a sua carreira sem um olhar defunto, sem um corte com os que antecederam, nem com indiferença a quem a procede. Itália, esse país, mais que isso, instituição, ideia, podendo experimentar como um mote para a reunião dos três tempos [passado, presente e futuro], estabelecendo no seu centro, um quarto, invisível, não estagnado, não morto, apenas vivo e confluido, uma alegoria. 

A partir da sua segunda obra - “Le meraviglie” (2014) - prosseguindo na felicidade do ignorante e quase mudo Lázaro (“Lazzaro felice, 2018) e agora com “La Chimera”, contemplamos um território à deriva nos diferentes estados-terrenos, personagens que equilibram entre os que viveram e os que viverão, na tristeza entranhada no olhar quase vítreo dos protagonistas (seja de Adriano Tardiolo, o nosso referido Lazaro, seja em Josh O’Connor, o Arthur aqui nos presenteado) e o passado, ora representado em memórias trovadas, ora enterrados em artefactos arqueológicos. Há diálogo neste constante trabalho de Rohrwacher ao longo dos seus filmes, e não apenas nos etruscos como alternativa da história italiana ou de marquesas iludidas e reféns da sua época, nos seus “castelos” em decadência, ou do contagiante realismo mágico com “pós” de Fellini a Pasolini

Não, esse tal diálogo (figuradamente falando) encontra-se naquela luz divina, carregada nas palmas da pequena Gelsomina (Maria Alexandra Lungu) em “Le meraviglie”, fingindo beber dela os seus dotes celestiais (curiosamente “Corpo Celeste” é o título da sua primeira longa-metragem), ou aqui, Arthur “salvo” por esse contacto atribuído a algo que ultrapassa a sua existência, o destino talvez. Mas afinal do que se trata “La Chimera”? Um estrangeiro tragicómico, que tem tanto de cavaleiro da demandas de Olmi (uma das paixões cinéfilas de Rohrwacher) como do slapstick desajeitado de Jacques Tati ou Buster Keaton, preso numa miserabilidade cómoda e que mesmo, errante ou simplesmente encalhado, subsiste como talentoso “tombaroli”, termo atribuído a salteadores de tumbas de etruscos, ou violadores de sepulturas como bem entenderem apelidar, que saqueiam os objetos fúnebres para depois vender no mercado. 

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Arthur, de dom (ou maldição, conforme a perspetiva) subaproveitado, convive na companhia dos desesperados, dos trafulhas e dos espirituais, ele é uma Itália invadida e perdida, mas não é a Itália que Rohrwacher anseia como modelo. Essa, uma dádiva que partilha igual nome do país, aqui incorporada por Carol Duarte, atriz brasileira potente em “Vida Invisível” de Karim Ainouz [belíssimo filme devo destacar], outra estrangeira portanto, mas é na sua intenção para com os três ditos tempos que nos apoiamos. O desejo, a reabilitação, a transformação, o respeito pelo sagrado, pelo profano e pelo memorialismo, a Itália hoje renegada para se chegar a outras oposições. 

Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão

Todos desejamos ser "felizes como Lázaro". Uma conversa com Alice Rohrwacher

Hugo Gomes, 15.10.18

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Lazzaro Felice (2018)

Podemos ser todos felizes como Lázaro? A personagem, encarnada com total doçura por Adriano Tardiolo, é o pedestre de uma Itália convencida por uma ilusão, um saudosismo que o impede de olhar para o futuro e renascer das suas anteriores cinzas.

Por outras palavras, é a perspetiva de alguém que entende o confuso espírito do seu país. Alice Rohrwacher, atriz que tem se aventurado na realização, que com esta sua terceira longa-metragem confirma a sua posição como uma das mais pessoais cineastas de Itália. Lazzaro Felice” é acima de tudo um conto sobre os estilhaços de uma Itália em crise existencial.

Falei com a realizadora sobre o seu filme, as referências e os seus sentimentos enquanto mulher no Cinema.

Em “Lazzaro Felice” deparamos com um filme tão próprio de si, assim como saudosista aos imensos mestres italianos, desde Ettore Scola a Fellini, passando por Ermanno Olmi. Quer falar sobre as suas influências?

É muito difícil falar sobre as influências diretas, tudo soa inconscientemente. Porém, é ainda mais violento e doloroso falar do “maestro” [na altura desta conversa, Ermanno Olmi tinha falecido há uma semana]. Sinto uma grande tristeza ao pensar no que aconteceu. Tinha uma grande admiração pelo Ermanno.

O título serve-nos para entender a composição da personagem de Lázaro, há algo nele que faz pensar que “quanto mais ‘idiotas’ somos, mais felizes somos”. A dita felicidade é algo inatingível a quem raciona e reflete sobre a sua própria vida?

Eu penso que no filme, tal não é o ingrediente-chave para a felicidade individual, possivelmente uma tentativa de atingir a felicidade coletiva, o qual percebemos ser impossível porque estas pessoas estão deslocadas dos seus sítios originais  Não diria que Lázaro seja feliz, diria antes que é sereno, o que faz com que a coisa acabe por não lhe correr bem.

Lázaro não é a solução, é a possibilidade de olhar para a inocência e lembrar-nos que ela existe nos seres humanos. Ou seja, é um memorando.

Em comparação com o seu “Le Meraviglie”, existe em “Lazzaro Felice” uma tendência de aproximação ao tradicional storytelling do que a narrativa docudrama do seu filme anterior. Contudo, em ambas as obras há como uma hibridez de tons, quer da fantasia, quer da mitologia algo histórica de Itália. Sem contar com a sempre presente crítica aos tempos modernos.

Não tenho a certeza que seja tão diferente do anterior, possivelmente a história seja na verdade, mas ambas as obras foram feitas pelas mesmas pessoas, eu e os meus colaboradores. Por isso, se tiver que comparar com o “Le Meraviglie”, diria que este “Lazzaro Felice” é mais livre de certa maneira, porque nos levou a aprofundar a história do protagonista e da sua inocência.

A ideia do realismo que combina com o folclore mágico deriva de dois elementos que constituem o núcleo da minha cultura- Itália – a nossa História, de certa maneira. Diria que a História e a Mitologia interceptam-se durante o tempo. Trata-se de um país com uma enorme quantidade de camadas na História. Por exemplo, é costume irmos a um posto dos correios e ao lado encontrarmos um túmulo de séculos passados ou monumentais ruínas. Tudo está misturado. Tudo está compactado.

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Alice Rohrwacher na rodagem de "Lazzaro Felice" (2018)

Mas devo dizer que há qualquer coisa de retrato da crise dos refugiados nesta sua “fábula”.

Vivemos num momento preciso da História e como tal desenvolvi este desejo de fazer um filme político decorrido em Itália, mas que possa ser identificado com a situação vivida em imensos países do Ocidente. Ou seja, quis abordar o receio e medo da vinda de outros e, claro, que o Cinema pode ser bastante direto, assim como expressivo e simbólico, sendo possível abordar histórias do nosso passado ou vindas diretamente da nossa imaginação e fazê-las comunicar com o nosso presente.

Tinha esta imagem que era o medo tido pelos migrantes, milhares que diariamente chegavam à Itália. Através disso, pensei nas possibilidades da migração ser sobretudo doméstica, do próprio país, o que não estava inteiramente longe da realidade italiana. Espero que com estas imagens de camponeses e agricultores limitados a um rio  – e da polícia perplexa, que os questiona “porque simplesmente não o atravessam" expresse esse medo vivido nos dias de hoje. Essa imagem tem como eco as imensas que abundam nos telejornais e jornais sobre os refugiados e as vagas migratórias. O Cinema é muita coisa e ser uma ferramenta política é uma delas.

Obviamente que na teoria isto seja tudo um conto negro, mas a iluminação trazida por Lázaro converte este filme politizado num conto de fadas alicerçado ao território espiritual.

Não é só em Lázaro que encaramos como um signo de uma Itália sem perceção do seu espaço, assim como na personagem de Tancredi, o filho da dinamarquesa, deparamos como uma alusão a um país decadente mas que nega essa mesma decadência.

Sim, em certa parte existe um simbolismo de Itália. Estamos a falar do filho de uma dinamarquesa, um rapaz de uma hereditariedade privilegiada que colapsa. Através desse mesmo colapso, perdendo os anteriores privilégios, tenta cortar as ligações de todas as pessoas que explorou. O símbolo aqui opera diferentemente em diversos níveis e o filho da dinamarquesa acaba por destruir todo um legado.

Mas falando em Tancredi, curiosamente, é o nome de uma personagem de “Il Gattopardo”, de Visconti. Há aqui algo mais que uma mera coincidência?

Sim, Tancredi é o nome da personagem de Alain Delon nesse filme, mas também é o nome de um cavaleiro francês cujos feitos são relembrados pelos cânticos dos trovantes em praças públicas. Foram essas glórias que levaram a Marquesa a batizar o seu filho mimado, mas infelizmente para ela, este é incapaz de lhe dar tais renomes.

Para Lázaro, o mistério do filme é ser um filme e não apenas um mistério. É simplesmente chamar as coisas pelos seus devidos nomes. São muitos precisas as referências, por que tal como sabemos, Lázaro é alguém que ressuscita e o local onde ele habita chama-se Inviolata. Tomamos a simplicidade como se tudo fosse explicado para crianças.

Em relação à Competição de Cannes? O facto de ser uma das três realizadoras integradas no certame, e atualmente a importância que é dada nessa representação.

Já estive 3 vezes em Cannes e sempre me perguntaram como é ser uma realizadora, uma mulher nesta indústria. Na última vez [“Le Meraviglie”], tal questão vinha normalmente de revistas femininas ou da imprensa cor-de-rosa, mas atualmente tornou-se, finalmente, numa pergunta séria. O festival começou a tratar o problema da representação feminina com seriedade.

As mulheres têm uma herança de 4 mil anos ou mais de abusos, opressão e marginalização. Era impossível estudarmos, ou sequer termos uma expressão própria. Por isso é importante, sobretudo do ponto de vista político, encarar o feminino com a devida seriedade.

Do outro lado da ressurreição

Hugo Gomes, 19.05.18

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Fora das evidentes referências bíblicas, Lázaro [personagem] é todo ele uma cápsula personificada de uma Itália perdida, à deriva de um biótopo longe da sua adaptabilidade. Para a atriz e realizadora Alice Rohrwacher, esta sua terceira longa-metragem é apenas um sufixo do seu discurso cinematográfico, o de exorcizar um país dividido, não por facões sociais, mas por tomos temporais – passado e presente – sem nunca olhar para o futuro com promissores olhos.

Trata-se de uma Itália congelada pelo tempo, onde o modernismo interpela com as reminiscências quase convertidas a folclore. Nesse aspeto, porventura, levando com sobriedade na moldagem da sua metáfora, “Lazzaro Felice” é, em linguagem simplista, um conto. Preservando a ingenuidade de fachada que esses termos dispõem com prazer, é um efeito-chave de questões sociais, políticas-financeiras, instalados numa montra, obrigando o espectador a espreitar tamanho fascínio por entre os adereços ostentativos da exposição.

Os fluxos migratórios, essas crises em que todos parecem reservar opiniões, são transitados (ótimo termo para a temática) para territórios domésticos. Num país “faz-de-conta” – assim o espectador se aperceberá graças a uma eventual reviravolta sem as antecipações shyamalianas – os camponeses vivem restringidos a uma terra isolada, contornada por um rio; a fronteira vista pelos seus próprios olhos. Cada camponês nasce e vive com o conhecimento de que é património de uma Marquesa, uma “aristocrata fabulista” que vive nos confortos do seu decadente castelo. Esta imensa “farsa”, um engano que leva a uma involuntária ignorância (sem com isto inibi-los de gestos e atos voluntários) por parte deste coletivo, é só uma camada para este embuste, desta vez sob tons de próprio inocente engodo.

Assim, somos introduzidos a Lázaro (um estaticamente doce Adriano Tardiolo), o conhecido “tonto” da comunidade, quase um autómato devido à sua incapacidade emotiva e sobretudo intelectual. Mas como o título sugere, “Feliz como Lázaro”, este consegue ser o mais satisfeito em todo este enredo. Mas essa sua felicidade fantasiada é só a mentira contada ao espectador para o negar da principal consciência fílmica de Rohrwacher, assim como a escancarada menção bíblica, porque na verdade o que evidenciamos é uma Itália vivida numa prolongada burla, uma mentira não tão doce e igualmente discriminatória e castradora.

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A realizadora articula todas essas variações e perpetua um cinema em constante saudosismo para com o seu legado. Por entre o rocambolesco de um Ettore Scola ou do tradicionalismo espiritual de um Ermanno Olmi (contraindo também uma ruralidade digna de “L’albero degli Zoccoli”), há que encontrar aqui, até porque o principal ingrediente está na mentira e como esta é forjada e mantida, especiarias do próprio Fellini. Sim, existe em “Lazzaro Felice” todo um cocktail de referências e tiques que se mesclam dando origem a um objeto cuidado, mesmo que a sua aparência seja sobretudo intuitiva e “sujamente” desleixada, uma metáfora a ser lida em qualquer que seja dos lados a começar.

Infelizmente, está longe da caricatura suspensa de “Le Meraviglie”, mas está perto de aquecer o nosso coração cinéfilo e acima de tudo acreditar numa cinematografia absolutamente grata aos seus mestres. Agora só esperamos que Itália veja o seu Cinema a seguir as pisadas de Lázaro, ou seja, a ressuscitar. Não apenas a voltar à vida, mas encarando-a com nova vida