Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

This is a man's world ...

Hugo Gomes, 16.08.22

https3a2f2fcdnsanityio2fimages2fxq1bjtf42fproducti

O que oponho a “Men” é precisamente o seu título, um atalho a facilitismos de leituras levianas acerca da “masculinidade tóxica" (limitando o filme a somente isso), com isso fugindo dos propósitos da alegoria visual que descrevem expressivamente a protagonista do que o oposto.

Alex Garland, que questionou o humanismo e aquilo que nos torna exatamente isso no brilharete de inteligência artificial [“Ex Machina”, 2015] assim como do individualismo no frenesim visual e conceptual de "Annihilation" (2018), leva-nos agora ao dilema da nossa sanidade com o engodo de uma mulher traumatizada, Harper (Jessie Buckley), que procura refúgio no meio rural. Aí, será abordada por vários homens, desde asquerosos a duvidosos, sem perceber que a sua presença instala uma inquietude em forças acima da naturalidade (não é por menos, que na sua chegada, a protagonista recolhe e saboreia o “fruto proibido” daquele jardim edênico, a representação bíblica do reino dos homens o qual a sua presença perturba). 

4YiGf5oA2x37vzyFVhsKQQ.jpg.crdownload

get8.jpg.crdownload

“Men” combina elementos de folk horror em modo de terror “slow burn”, teor que parece definir, hoje (um termo algo pejorativo), o “elevated horror”. Sim, Garland mesclas elementos tão próprios de Ben Wheatley ou do recente Ari Aster (a influência de um "Midsommar" está na ordem do dia) para seguir numa provocação impressionista digna de um Lars Von Trier (porém, não cederemos à preguiça desta última referência, dando a entender que no Cinema só o co-fundador do Dogma 95 tem o direito à incitação). Contudo, a essa receita atiro uma outra referência, bem presente na ruralidade bruta e do aparente “home invasion” - “Straw Dogs” de Sam Peckinpah (1971) - o ainda hoje polémico conto de violência que subscreve o instinto acima da razão, e para Harper, o instintivo é a sua arma de resistência à “infestação” do ente masculino (do paganismo à religião monoteísta, da autoridade ao ódio, o patriarcado ostenta "mil faces"). 

Com isto, o filme assume como terror simbólico, uma terapia sangrenta de foro psicanalista conservando-se como uma metáfora fílmica, e nesse ponto, reconheço a sua fácil ingestão e até exaustão (tenho dúvidas se a viagem sobrevive a uma revisão), mas por entre as referências que facilmente buscamos para descrever esta ego-trip encontramos uma coerência no modus operandis de Garland (até um terceiro ato impugnado por CGI tem), um realizador de género pronto a dissecar o Homem como ser que pensa, sente e reage. Depois da existência, da identidade, chegamos agora ao género como fim anunciado de uma trilogia. O Humano está quase completo, só lhe falta a alma …

"Ex Machina": ser humano ou não ser, eis a questão

Hugo Gomes, 21.04.15

ExMachina_touch_rgb0_rgb_2040.0.0.jpg

Pelos vistos, a ficção científica não tem que ser apenas uma panóplia de efeitos visuais servidos em prol da ação. Tal temática pode bem funcionar como uma “bandeja” para reflexões filosóficas ou até sociais. Dentro do cinema recente, “Ex Machina” é um dos exemplares que usufrui desse artifício em benefício do debate, neste caso o “velhinho” dilema da inteligência artificial, retirado das entranhas dos autores Isaac Asimov e Phillip K. Dick, os quais condicionam algo mais que somente uma feira de vaidades de tecnologias futuristas ou sofisticação robótica, preferindo antes o desenvolvimento de questões do foro humano, como a consciência e a ilusão como característica irreconhecível dos mesmos.

Alex Garland, produtor e argumentista de inúmeros filmes de Danny Boyle, constroi uma fita a partir dessa ideia, mas não limita a mesma, aprofundando as ramificações que tal sugestão poderá gerar. Curioso que num tempo em que a ficção científica parece ter adquirido espetacularidade – veja-se os casos dos recentes “Transcendence” (Wally Pfister, 2014) e “Automata” (Gabe Ibáñez, 2014), que também questionavam as limitações da inteligência artificial, mas que cederam aos códigos do espalhafato cinematográfico – “Ex Machina” seja um protótipo discreto, astuto nos seus diálogos e concentrado em criar química entre as suas personagens.

Verdade é que a química existe entre humanos e máquinas, com Alicia Vikander (“A Royal Affair”) a mimetizar de forma convincente esse androide perfeito, apenas apelidado de Ava (evidente alusão à bíblica Eva). Ava é uma obra ainda em fase experimental, submetida a um questionário-teste que desafia as suas limitações como máquina camaleónica, ou por outro lado, confirmar a possibilidade de ter consciência.

O registo narrativo sugerido por Alex Garland, descrito como outro ponto a seu favor, é um autêntico quid pro quo digno dos contos de Thomas Harris, onde os diálogos perceptíveis e agradavelmente bem construídos salientam essa cumplicidade entre as duas oposições de matéria (a carne e o sintético). Aliás, poderíamos aclamar que “Ex Machina” tem mais contornos de thriller psicológico do que propriamente do “what if” de ficção científica. Albergado por um caprichoso trio de atores, Garland coordena aqui uma das mais gratificantes obras do género presenteada nos últimos anos por Hollywood. Quanto às questões de inteligência artificial (cada vez mais em uso), talvez este seja dos melhores exemplares desde o subestimado “I Robot”, de Alex Proyas (2004).