Ciclo «Câmera-Corpo» na Culturgest: pela lente ergue-se a janela para o mundo indígena
Na rodagem de "A Flor do Buriti" (João Salaviza & Renée Nader Messora, 2023)
Arrancou hoje (04 de Abril), a primeira edição do “Câmera-Corpo”, ciclo promovido na Culturgest, em Lisboa, com “perninha” com o Festival Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, do outro lado do Atlântico [Brasil], e motivado com a estreia de “A Flor do Buriti” da dupla Salaviza e Nader Messora. Trata-se de um ciclo que decorrerá em dois dias com ambições de despertar a curiosidade lusa sobre o cinema-indigena e lançar-se no debate sobre, para além das estéticas, a sobrevivência destes povos e a preservação do seu modo de vida.
Tendo curadoria de Daniel Ribeiro Duarte e Júnia Torres, esta última dando a honra ao Cinematograficamente Falando … de descortinar a mostra e a sua órbita, fica, para além do gesto a resistência não como grito mas como existência numa cinematografia que deseja, em todo o caso, ser emancipadora.
Gostaria que me falassem sobre a génese deste projeto e como se desenvolveu a parceria com o forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte?
O forumdoc.bh é um festival que há 27 anos exibe filmes indígenas, sendo pioneiro nesta difusão e divulgação.
Em 2023 fizemos o lançamento do belo e importante filme “A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader, em sessão comentada com a presença dos realizadores e dos argumentistas indígenas do povo Krahô. Foi um momento muito forte e bonito na programação. Deste encontro no Brasil partiu a ideia de realizarmos em Portugal, junto à estreia deste trabalho uma pequena mas significativa mostra das produções de diversas etnias que vem fazendo do cinema um modo de expressão valioso e um veículo de fortalecimento cultural, num movimento estético especialmente relevante para o documentário no Brasil.
Quais são os principais objetivos que esperam alcançar com esta mostra?
Difusão e valorização de um novo modo de fazer cinema, com novas perspectivas, linguagens e abordagens que amplia o protagonismo autoral cinematográfico e colabora para a relação entre povos diversos e entre indígenas e não-indígenas. Esperamos que uma maior visibilidade internacional possa colaborar politicamente para a manutenção, emancipação e permanência dessas culturas com o seu modo especial de se relacionar com o Outro e o que chamamos de natureza.
Yvy Pyte - Coração da Terra (Alberto Alvares & José Cury, 2023)
O que pode dizer sobre os filmes seleccionados?
Os filmes selecionados compõem um conjunto que procura mostrar trabalhos contemporâneos, realizados nos últimos anos, com abordagens e estratégias fílmicas heterogéneas que vão de filmes mais etnográficos ou melhor, auto-etnográficos até filmes de experimentação formal, como vídeo-performance. Mas todos eles com recados importantes sobre os (civilização ocidental) limites ambientais, sociais, etc. São amostras de modos de vida diversos e mais ricos, como acreditamos.
E em relação aos convidados?
O convidado principal desta Mostra será o cineasta Guarani, Alberto Alvares, um dos mais reconhecidos e atuantes realizadores indígenas em atuação no Brasil. Tuparay, seu nome Guarani, faz um filme muito pessoal e autobiográfico que a um só tempo é muito subjetivo e autoral e alcança as grandes questões pelas quais atravessam os povos indígenas no Brasil, assim como nos faz refletir sobre questões humanas gerais e existenciais. É o lançamento, fora do Brasil, na sua mais recente longa-metragem.
Temos também Renee Nader e João Salaviza para comentarem o seu intenso e extenso trabalho de mais de uma década com o povo Krahô, comentando no dia 5, filmes autorais dos seus companheiros de realização nas Aldeias na região da Amazónia.
Pesquisadoras e pesquisadores interessados e que já conhecem a produção dos cinemas indígenas também aceitaram os nossos convites para participarem, e estamos muito felizes com essa adesão.
Tencionam continuar com este ciclo no futuro, ou consideram-no como um evento único por enquanto?
Sim, a ideia é estabelecer possibilidades de continuidade nesse movimento para formar um público para estes filmes também em Portugal. A periodicidade permitirá também acompanhar o desenvolvimento dessa nova e inovadora cinematografia, pois a proposta é mostrar a produção contemporânea.
Essa Terra é Nossa! (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero, 2020)
Como encaram o trabalho de João Salaviza e Renée Nader Messora com o díptico krahô dentro do contexto do cinema indígena?
É um trabalho extremamente interessante pois incorpora elementos da cosmologia e da estética krahô nos filmes que são inteiramente atravessados por tais linhas de força e de potência. Desse encontro, surge uma nova perspectiva para o cinema do Real, que se constroi para além dos limites entre a ficção e o documentário, essa divisão, ou essas categorias e géneros fílmicos deixam de fazer sentido. É um modo de produção muito especial pelo nível de profunda relação, conhecimento e respeito com o coletivo indígena parceiro na realização. O que reflete numa proposta formal muito singular, que amplia os conceitos e as formas de se fazer cinema.
Não querendo estragar a "magia"", mas gostaria que explicassem a escolha do nome para o ciclo - "Câmera-Corpo" - e como os corpos dos indígenas são, maioritariamente, representados no cinema enquanto corpos políticos.
Os cinemas indígenas, assim no plural para respeitar ou responder à diversidade de povos que o realizam, mas também, evidentemente a sua bem-vinda heterogeneidade e complexidade formal, são cinemas do corpo, do gesto, das florestas, dos espíritos e não somente das palavras humanas.
Incorporam relações inter-espécies. A câmara funciona como uma extensão do corpo, do olhar, participa dos acontecimentos diários e rituais, dança, caça, compartilha mundos e modos de existência muito diferentes dos nossos. Permite-nos uma imersão nestas diversas cosmologias. A câmara é a flecha que luta e também o cesto que recolhe e guarda memórias fundamentais.