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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"I've just met a girl named Maria"

Hugo Gomes, 15.01.25

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É notável como Pablo Larraín diferencia o tratamento dado às figuras que explora: entre o culto à persona (Jacqueline Kennedy, Princesa Diana, Pablo Neruda) e o desprezo por algumas (Pinochet, evidentemente sob o traços da caricaturas trocista), Maria Callas (1923 - 1975), a La Divina para sermos respeitosos a títulos, insere-se no primeiro grupo, amplamente maioritário. “Maria”, assim nomeado como metragem, desliza pelos corredores palacianos do refúgio doméstico da soprano, interpretada por Angelina Jolie, cuja presença brilha com uma luz capaz de suscitar inveja nas outras divindades mortais, mas é nos passeios que o filme distingue da sua anunciada finitude, uma biopic que anseia pelo alternativo, pelo onírico de fellinismos tímidos ou do realismo mágico um tanto extraído do costume artístico chileno, como espectáculo orquestrado na tendência de um último e grandioso ato. La grande finale!

É ali que encontramos Maria, cantando como Maria - ainda que o seu instrutor vocal exige pacientemente a voz de La Callas - , concedendo entrevistas a repórteres imaginários, e no oscilar entre os efeitos de uma medicina alucinante [Mandrax] e uma loucura sem igual (todo o mundo, segundo a sua perspetiva, é um palco, uma opereta ali performada na esperança de um regresso de uma soprana titular), sustentada pela lealdade inabalável dos seus servos: Ferruccio (Pierfrancesco Favino), mordomo e motorista que se torna cada vez mais corcunda (não é por falta de aviso da nossa Maria), e Bruna (Alba Rohrwacher), criada obediente, com olhos marejados a antecipar a tragédia iminente. Uma ídolo de barro que se deteriora com a crueldade do tempo, um tempo que não sara, um tempo ingrato e perverso, e essas figuras secundárias sustentam uma viagem imaginária, errática, repleta de “salta-pocinhas” temporais que levam espectador, como a sua Maria, de volta às suas raízes, marcadamente nos medos e paixões, estas por vezes desnutridas, além de romances pomposos e castradores, como a do magnata grego Aristóteles Sócrates Onassis (aqui encarnado pelo ator turco Haluk Bilginer) e a sua comunidade da fealdade.

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Mas no apartamento luxuoso, reflexo de uma fantasia onde o som ganha dimensão, ecoa e amplifica o desejo de Maria ser ouvida uma última vez, ou melhor, La Callas exige o holofote perdido, aquele que o temperamento de vedeta e as más opções desde então a levaram a cometer. Para isso, procura a voz que lhe escapou, um canto do cisne de uma diva confrontada pela fragilidade da mortalidade, a vida como a morte, são deveras pequenezas e mesquinhezes à sua aura. Afinado filme que só demonstra que amores dados por Larraín resulta em virtuosos enquadramentos, e Jolie, possivelmente relegada a estrela cada vez mais rarefeita numa indústria gradualmente infantilizada, renasce nas pisadas de um outro astro maior. O show é dela, o encenador Larraín o seu mais tenro cúmplice. 

Maria”, biografia da constelação larrainiana, o culto da pessoa e do artista, não apenas de Callas, mas da sua essência artística, o artista propriamente dito, lutando contra uma modernidade que vê estes devaneios e egos autodestrutivos num cinismo atroz. Um guia turístico até, mas com as emoções lá no sítio. 

Music is born of misery. Of suffering. Happiness never produced a beautiful melody.”

Stéphane Brizé: "vejo sempre a ficção como um documentário sobre os atores."

Hugo Gomes, 06.12.24

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Stéphane Brizé faz uma pausa ao seu cinema social e a Vincent Lindon, dizem que foram os sinais do tempo, a pandemia e tudo isso acarretou que o fez virar para “Hors-Saison” (“A Vida Entre Nós”), filme atípico da sua filmografia, onde filma Guillaume Canet enquanto ator deprimido e resignado à sua estagnação, a reencontrar memórias de vidas passadas num retiro balnear. Alba Rohrwacher, a célebre atriz italiana, é essa "madalena de Proust"

Em conversa com o realizador, entendemos o quão de Brizé tem esta tragicomédia romântica, o tempo que passa, o tempo que marca e demarca, Alain Delon, Claude Lelouch e Östlund num caldeirão verborreico. Depois de Veneza, “Hors-Saison” integrou a Festa do Cinema Francês e marcou assento nas estreias em sala do nosso país. Fiquemos com um diálogo que tem tudo menos estar em “fora-de-época”.

Gostaria de perguntar sobre a génese deste projeto, mas também sobre como foi, após concluir a chamada “trilogia do trabalho”, aventurar-se por este novo universo? Como se sentiu ao dar esse passo?

Muita coisa! [risos] Depois de concluir o que acabou por se tornar numa trilogia — que, curiosamente, não começou com essa intenção —, a minha primeira ideia era fazer um novo filme social. Desta vez, seria situado numa grande empresa, com uma protagonista feminina e um tom diferente. Sentia essa vontade de continuar a explorar os mecanismos de subjugação: como é que se transforma um indivíduo? Como é que se força alguém a fazer algo que vai contra o seu próprio modo de ver o mundo? Tinha muitos elementos em mente para desenvolver.

Mas, quando expliquei essa ideia ao produtor com quem tinha trabalhado nos filmes anteriores, ele disse-me: “Não quero mais trabalhar contigo. Acabou.” E, de um dia para o outro, fiquei sem produtor. Foi um golpe duro. Decidi continuar sozinho, avançar com o projeto, mas percebi que não estava a reinventar nada. Estava apenas a repetir o que já tinha feito nos filmes anteriores.

Foi então que parei. Havia um peso emocional muito grande: a separação com o produtor, questões pessoais difíceis de gerir e, claro, a pandemia de COVID. Naquele período, a morte era uma presença constante no nosso quotidiano, uma sombra inevitável. Contávamos mortos nos jornais todos os dias. Creio que isso trouxe à superfície questões muito essenciais, quase arcaicas. O lado político, que sempre me interessou, parecia diluir-se, cedendo espaço a algo mais existencial.

Durante o COVID, todos passámos por um processo muito existencial, e “Hors-saison” nasceu disso. Foi o resultado de uma necessidade de contemplação, de olhar para a minha própria vida e experiência. Só depois de terminar esse filme é que consegui retomar o guião político e encontrar o caminho certo para ele. Mas precisava, naquele momento, de parar e de criar algo diferente, mais íntimo e reflexivo.

Mas, voltando à questão, porque falou-me desta ideia das crises existenciais, mas gostaria de perguntar-lhe sobre a escolha de um ator como protagonista. O porquê dela para representar uma crise de existencial social num filme que evoca o COVID? 

Compreendo perfeitamente o que perguntas, e foi algo em que reparei, embora não tenha sido exatamente ao ver o filme, mas sim no set, enquanto estávamos a filmar nas ruas vazias. Como a história de “Hors-saison” se desenrola numa cidade balnear fora de época, houve um momento em que, ao olhar para aqueles planos, aquelas ruas desertas fizeram-me lembrar as ruas de Paris durante o período do COVID.

Acho que isso não é um acaso. Pode ter sido algo totalmente inconsciente, mas não deixa de estar ligado a essa memória coletiva que agora carregamos. Talvez seja mesmo isso: as ruas vazias adquiriram uma nova camada de significado, remetem-nos para essa sensação partilhada, essa outra história que se infiltrou no nosso imaginário coletivo.

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Da esquerda para a direita: a co-argumentista Marie Drucker, o ator Guillaume Canet, o realizador Stéphane Brizé e a atriz Alba Rohrwacher, no Festival de Veneza na apresentação de "Hors-Saison" (2023).

Sobre esse imaginário coletivo do COVID no filme, sublinho a sequência sobre o jazz como música de fundo, no qual o Cannet refere as suas batidas como provocadoras de ansiedade. E como bem encaramos, a ansiedade é quase uma cicatriz do pós-pandemia.

Não tenho muita imaginação, confesso. O que tenho, sim, é um bom sentido de observação, e é a partir daí que tento transmitir aquilo que vejo. O jazz, por exemplo, é algo profundamente pessoal [risos].

E o jazz... tem tantas vertentes. Algumas, claro, gosto e acho aceitáveis, mas há algo curioso neste universo: parece que é um daqueles territórios de que ninguém pode falar mal. Existe quase uma pressão implícita, uma obrigação de se gostar, talvez para parecer mais inteligente ou sofisticado. No entanto, tenho de admitir que não me enquadro totalmente nisso. Ainda assim, há coisas no jazz que me atingem de forma muito direta. É como se me estivessem a espetar uma agulha ali... [risos].

[risos] Muito bem, voltemos então à questão do casting? Da personagem-actor, como também do ator?

Para mim, a ficção é sempre uma espécie de documentário sobre os atores. Nos filmes que faço, a ideia de personagem surge no momento da escrita e é algo que os espectadores inevitavelmente reconhecem. Mas, quando trabalho diretamente com um ator, não vejo uma personagem à minha frente; vejo uma pessoa real. O que realmente me interessa é capturar a sua humanidade, aquilo que o define, para depois, disso, emergir a personagem como uma consequência natural. Preciso de encontrar algo essencial e autêntico no ator, algo que não seja fabricado, e que estabeleça essa ligação entre ele, a atriz ou ator, e o que quero expressar através da personagem.

No caso do Guillaume, o que me atraiu foi algo que percebi nele: por trás da sua postura confiante, descontraída e até engraçada, havia uma grande angústia e, sobretudo, uma tristeza profunda. Foi essa tristeza que filmei. No entanto, o Guillaume tem uma grande capacidade de autodepreciação e um sentido de humor apurado, o que fez com que a sua tristeza não pesasse 100 toneladas, mas ainda assim presente e filmável.

Tenho uma pergunta pertinente, mas antes disso, queria continuar a falar sobre os atores. Passo agora para a Alba Rohrwacher. Portanto, uma atriz italiana para uma produção francesa.

Primeiro, porque, bom, ela fala francês. [risos] Mas essa escolha não foi algo que partiu de mim desde o início; foi, na verdade, uma sugestão da diretora de elenco. Como já expliquei antes, há sempre algo do real que é essencial para mim, mesmo num filme de ficção. Por exemplo, ao escolher Guillaume Canet, um ator conhecido que interpreta um ator famoso, era inevitável surgir a questão: quem coloco ao lado dele para dar vida a uma personagem desconhecida?

Na minha visão, não fazia sentido, escolher uma atriz francesa conhecida, porque isso poderia quebrar a coerência da história. Mas claro, a minha lógica francesa só funciona até ao momento em que o filme chega a Itália, e lá a Alba Rohrwacher é mais famosa que o Guillaume Canet! [risos] Foi curioso perceber, quando estivemos em Veneza, que essa troca de dinâmicas funcionava perfeitamente.

A escolha da Alba também veio da necessidade de alguém que pudesse interpretar um papel muito difícil: uma personagem forte, mas que trilha um percurso de resignação. E quem poderia carregar esse arco sem perder força? Precisava de uma grande atriz, e Alba é exatamente isso. Além disso, em França, ela não é muito conhecida, o que ajudava a manter a lógica da personagem.

No início, fizemos testes com outras atrizes, mas quando a Alba surgiu como sugestão, tornou-se evidente. O sotaque dela em francês também trouxe um toque poético, algo que remete à ideia de ser de fora, de outro lugar, o que adicionava camadas à personagem. E há, claro, aquele mistério que só os grandes atores e atrizes conseguem trazer — fazem existir o que o guião não escreve, mas que está lá, latente. Alba é exatamente assim: alguém que torna o invisível visível, que revela algo que transcende o texto. E essa é, talvez, a maior força dela

O seu rosto transmite tudo isso! 

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Gostaria de colocar-lhe a tal pergunta pertinente: É a seguinte — este filme, em certos momentos, poderá lembrar a muitos o “Triangle of Sadness”, mas prefiro evocar outro trabalho de Ruben Östlund, “The Square”. Nesse filme, há uma performance marcante de um homem-gorila, uma sequência angustiante e até agressiva, que explora a violência e a nossa animalesca natureza ‘adormecida’. Em “Hors-Saison”, a performance dos dois homens-pássaros parece apresentar uma contraposição clara: algo mais leve, mais distante da ferocidade do artista-símio. Nesse sentido, gostaria de saber: vê essa escolha como uma provocação ou até mesmo como uma resposta direta ao filme de Östlund?

Eu não sou um provocador! 

Digo antes, a provocação que é responder à agressividade e transgressão do homem-gorila com a harmonia dos homens-pássaros.

Não houve uma referência consciente ao homem-gorila, mas havia uma intenção muito clara: provocar uma emoção pura. Enquanto a performance do homem-gorila em "The Square" desperta uma reação violenta e imediata, no meu caso, quis criar um clima que transformasse todos os olhares — tanto dos personagens como do espectador — num olhar infantil, desarmado e genuíno. Se existe um ponto de ligação entre as duas cenas, ele está na busca por algo integralmente orgânico e emocional. Não é sobre ser inteligente; é sobre sentir e trazer à tona o sorriso mais puro e espontâneo, quase como o de uma criança.

Enquanto escrevia o filme, ouvi um relato na rádio sobre este grupo artístico. Imediatamente pensei: "Isto tem tudo a ver com o filme." Contactei-os e sugeri uma colaboração, que aceitaram. Depois de assistir a uma das suas apresentações, vi não só o sorriso no rosto das pessoas, mas também no meu próprio, e foi aí que percebi que esta cena tinha que acontecer durante o casamento.

Filmámo-la com cinco câmaras, precisamente para capturar toda a espontaneidade e os risos genuínos numa única tomada. Nenhum dos presentes na sala sabia exatamente o que ia acontecer, nem mesmo o Guillaume e a Alba. Coloquei as pessoas estrategicamente na sala e preparei os performers, mas mantive o elemento surpresa. Disse aos atores principais apenas que era fundamental partilharem aquele momento de comunhão e alegria com os outros. E foi assim que conseguimos criar uma cena desarmante, carregada de poesia, humor e emoção verdadeira.

Alguns críticos e jornalistas comparam facilmente o seu “Hors-saison” a filmes como “Lost in Translation” ou “Broken Flowers”, e a sua resposta é com Claude Lelouch. Acho curioso porque ultimamente tem encontrado vários cineastas a mencionar Lelouch como referência, um homem visto como criador de melodrama francês, algo que foi considerado pejorativo durante algum tempo, mas que hoje muitos tem o declarado a saudade desse melodrama clássico no panorama francês, esse dito melodrama lelouchiano.

Essas comparações com “Broken Fever” e outros, deve-se muito à sensação que o meu filme transmite... O que certamente o que os une é que as personagens passam por momentos em que estão completamente perdidos. Acho isso fascinante de encenar: uma personagem que está perdida, mas sem cair no risco de aborrecer o espectador. Esse é sempre o grande desafio, o objetivo.

Sobre Claude Lelouch, tenho de admitir que tenho uma enorme admiração por ele. Curiosamente, ele chegou até a ser produtor de um dos meus filmes, por isso conheço o trabalho dele de perto. O que me fascina no Lelouch é como ele criou um gesto cinematográfico muito próprio. Quando nos encontramos pela primeira vez, percebi algo interessante: havia técnicas que já usava sem saber que ele também as fazia.

Por exemplo, dentro de um texto bastante estruturado, existe sempre a ideia de criar dispositivos no set que trazem algum grau de desequilíbrio para os atores. Não para os deixar desconfortáveis, longe disso, mas para criar um ambiente onde a escuta entre eles atinge o máximo potencial. Esse desequilíbrio torna tudo mais vivo, mais orgânico.

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Possivelmente, esta menção a Claude Lelouch deve-se porque um dos últimos filmes da sua autoria tem pontos de contacto com esta sua obra. São filmes de reencontro.

Qual filme?

A terceira parte da trilogia “Un homme et une femme” (1966), com o Jean-Louis Trintignant e com a Anouk Aimée … 

Deve ser o Les plus belles années d'une vie?

Exatamente, vi esse filme em Cannes.

O último foi apresentado em Veneza este ano [“Finalement”], com um prémio especial para ele. Também o vi em Cannes, ele convidou-me para essa exibição.

Portanto deves-te lembrar, quando no final, todo o cinema cantou... Foi incrível. Estava ele, o Jean-Louis Trintignant, a Anouk Aimée, na famosa linha do “Un homme et une femme”. E eu estava mesmo na fila da frente, a poucos metros. Fiquei tão emocionado com o filme, tão tocado. Foi incrível, porque o primeiro filme já é algo lendário na História do Cinema.

Disse-lhe como imaginava... Disse-lhe: “Claude, imagino como deve ter sido o teu entusiasmo enquanto montavas este filme.” Porque era possível trazer de volta o primeiro filme, com eles naquela cena em que fazem amor no Hotel Normandy. Eles são maravilhosos, belíssimos, belíssimos. É incrível o vínculo entre os dois filmes.

Talvez seja sobre o “tempo que passa” que referes como ligação desse filme com o meu? Só que nesse filme, fala-se do Claude. Vemos os personagens velhos, depois vemos-os novamente jovens, e, de repente, há ali 50, 60 anos de diferença, ou algo assim, e num determinado momento da montagem, sentimos intensamente o tempo que passou.

E o “Hors-Saison”, fala disso: o que fazemos com as nossas vidas, o que fazemos com o tempo. Fala mesmo sobre isso.

Quer no seu filme, quer na do Lelouch, o romance é entendido como uma espécie de veículo para regressar a um tempo que não tem regresso. São filmes sobre a ilusão encantatória do passado. 

Sim, concordo plenamente consigo. Este filme fala exatamente sobre isso. Há algo muito forte nele porque todos os espectadores se lembram do primeiro filme, lembram-se do início da história. No último filme, o Jean-Louis Trintignant não se lembra. A personagem principal não se lembra de algo que eu me lembro. Isso é muito poderoso. É uma ideia incrível. Às vezes, perguntamo-nos: “Será que ele se lembra? Não sabemos. Será verdade? Ou não será?”

Compreendo perfeitamente a sua questão, e é a primeira vez que alguém observa isso, por isso deixa-me contar-te uma história.

Sim, claro …

Na primeira versão do guião de “Hors-saison” tinha uma personagem para o Alain Delon. Eu o queria no meu filme, seria um dos hóspedes do hotel.

O Guillaume, a personagem, está tão em baixo... Ele vê o Alain Delon ao longe, no restaurante. O Alain Delon está ali. Ele tem dinheiro, é um grande hotel, é plausível. Guillaume liga à mulher, e ela diz-lhe: “Ouve, durante toda a tua vida disseste que, se um dia encontrasses o Alain Delon, lhe dirias: ‘Sou um grande fã, és muito importante para mim.’ Estão no mesmo hotel. Vai e diz-lhe que ele é importante para ti.” Mas o Guillaume, nessa tristeza, responde: “É o Alain Delon. O que é que ele se vai importar comigo? Faz o que quiseres.

Então, o que acontece? Mais tarde, noutra cena, noutro lugar, o Alain Delon está no mesmo espaço. E sabemos, naquele momento, que o Guillaume gostaria de se aproximar dele, mas não tem coragem. E não vai. No guião, estava escrito que, depois disso, ele estaria no quarto, a ver o “Plein Soleil" de René Clément.

Porquê “Plein Soleil”? Porque é exatamente o que está a dizer sobre o Claude Lelouch, queria ter a imagem do Alain Delon de antigamente logo após a imagem do Alain Delon na sua atualidade, porque o meu filme fala do tempo, do tempo que passa. Na história, era por isso que, quase no final do filme, o Guillaume estava sentado à mesa e víamos um homem a chegar – o Alain Delon – e ele dizia: “Não quero incomodá-lo, só quero dizer que sou um grande fã. Sabe, aproveite a estadia. Tenho de ir.

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Alain Delon em "Plein Soleil" (René Clement, 1960)

Contactei a filha do Alain Delon, escrevi uma carta de amor para ele. Ela disse-me: “O meu pai está tão cansado, já não quer fazer estas coisas.” Mas ele recebeu a minha carta. Não sei se leu, mas recebeu. E era exatamente sobre o que estávamos a falar: sobre a vida.

Foi uma experiência, um experimento cinematográfico. Tal como em “Une Vie(2016), uma das principais experiências de montagem que já fiz para falar sobre o tempo. Em zero segundos, no não-tempo, ela é jovem, depois velha, depois jovem outra vez. E, de repente, estamos a falar do tempo, num único momento de montagem.

Voltará ao filme social que mencionou no início da conversa?

Sim, o guião está praticamente pronto, e aliás, enquanto trabalhava em “Hors-saison”, a outra metade do meu cérebro pensava nesse filme. [risos] Posso dizer que não encontrei toque no momento certo, mas atualmente o vejo como uma examinação sobre os aspectos grotescos do liberalismo. Será de um filme performaticamente cínico. 

Ou seja, é uma resposta aos novos tempos. Tempos, esses, em que a política adquiriu uma certa espectacularidade circense.

Sim, vou voltar a Ruben Östlund para fechar o círculo. O que acontece é que, quando escrevi “La Loi du marché” (2015), “En Guerre” (2018) e “Un autre monde” (2021), fiz esses filmes a partir de dezenas de testemunhos. Fui ao encontro das pessoas, escutei-as, e elas contaram-me as suas vidas. Depois, tentei transpor essas vidas para o filme.

No entanto, em cada um desses filmes, fui obrigado a colocar a ficção abaixo do real. Porquê? Porque, de outra forma, os meus filmes realistas pareceriam falsos. O real é tão mais indecente, violento e cínico do que aquilo que conseguimos imaginar que, para não perder essa autenticidade, tive de subordinar a ficção à verdade.

Há anos que me pergunto: como se pode representar o real de forma precisa numa obra de ficção? E acho que é necessário deslocar-se um pouco em direção à farsa. É isso que Ruben Östlund faz. É um caminho para representar a indecência a que chegámos hoje — a indecência do cinismo e do grotesco do capitalismo. Por isso, o meu "cursor" também se desloca nessa direção.

"A Bíblia foi o primeiro Avengers da História", falando com Gianni Zanasi, realizador de "Troppa Grazia"

Hugo Gomes, 07.05.19

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Gianni Zanasi dirigindo Alba Rohrwacher e Hadas Yaron em "Troppa grazia" / "Lúcia Cheia de Graça" (2018)

“Lúcia Cheia de Graça” (Troppa grazia”) poderia facilmente ser uma comédia ou um filme de fé à moda norte-americana, mas Gianni Zanasi trabalhou como uma tragicomédia existencial de uma topógrafa que, mesmo não acreditando, começa a ver a Nossa Senhora. Uma obra que reúne os mais variados e reconhecíveis elementos bíblicos em prol de um conto universal sobre a busca da verdade e da ética, esta, subvalorizada nos dias de hoje.

Conversei com Zanasi durante a sua vinda à 12ª Festa do Cinema Italiano em Lisboa. O realizador, sempre bem humorado, falou sobre a (não) crença da religião e a importância desta numa sociedade cada vez mais despreocupada.

Esta é a sua primeira vez em Lisboa?

Sim.

E como está a ser a sua estadia?

De facto, está a correr bem. Aliás, fiquei curioso com um pormenor desta cidade – vocês têm esquilos. De início julgava que fossem ratazanas, grandes por sinal. Nunca tinha visto esquilos na minha vida [risos].

Há sempre uma primeira vez [risos]. Em relação ao filme "Lúcia Cheia de Graça", como surgiu a sua ideia?

A ideia surgiu sozinha. Tive uma “aparição”, quer dizer, imaginei uma cena em que a Nossa Senhora aparecia a esta personagem, Lúcia. Mas encarei aquela imagem, algo mais do que uma simples aparição, uma encarnação de alma. Lúcia é uma pessoa real, passando por uma fase difícil da sua vida. Uma mulher que, chegando ao estado adulto, esqueceu a diferença entre viver e sobreviver. São duas coisas bastante distintas. Ela ficou tão presa ao seu quotidiano que se esqueceu de sentir o que está além disso. E nessa crise existencial, ela enfrentará as suas próprias dificuldades tendo como impulso algo impossível, o aparecimento de Nossa Senhora.

E quanto à escolha de Alba Rohrwacher? Ela foi a sua primeira escolha para o papel de Lucia? Houve casting?

O filme poderia ser muitas coisas, uma delas era uma brilhante sitcom. Mas acima de tudo queria causar uma sensação muito forte no espectador para que este questionasse: “e se isto me acontecesse?”. E por isso queria um ator que vivesse esta situação de um modo muito verdadeiro. Tendo em conta essas capacidades, a Alba foi a única atriz que tinha em mente para o papel de Lúcia. Aliás, num encontro com ela afirmei que só iria fazer este filme se ela aceitasse o papel.

Achei uma decisão, de certo modo, bastante ousada de colocar Hadas Yaron, estrela de muito cinema judaico, como “Fill the Void” ou “Félix et Meira”, como Nossa Senhora.

Escolhi a Nossa Senhora não pela religião, nem pelas ligações, mas pela qualidade da atriz. Vi a Hadas na “Fill the Void” e desde então achei-a perfeita para o papel. Porque da mesma forma que Alba, Hadas era uma atriz capaz de trazer veracidade às emoções. Era isso que pretendia. O curioso é que durante a rodagem, ela foi discretamente me perguntar: “Gianni, quem é a Nossa Senhora?” [risos].

E o facto dela não saber quem era a Nossa Senhora, tornou-se um detalhe muito importante para a construção desta personificação. É normal este desconhecimento, visto que a figura da Nossa Senhora não surge na religião hebraica, porém, esta situação foi importante para trazer uma abordagem mais livre da “personagem”, e não apenas restringindo-a um símbolo religioso.

E como explicou a ela quem era a Nossa Senhora? Fiquei curioso [risos].

Tecnicamente, é a Mãe de Deus. Mas também … tecnicamente … não sabe bem quem é o pai. Porém, o marido dela, José, aceita a situação. Por isso, é uma família bem moderna, mesmo sendo antiga, e muito humana.

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A reação dela?

Percebi.” [risos]. Hadas Yaron vem de um sítio bem especial, que é Telavive, Israel, o qual sente na pele o conflito religioso. E por isso, ela despreza qualquer forma de extremismo religioso. Todavia, ela percebeu que a figura que lhe propunha poderia ser transcendente da somente doutrina religiosa.

Deixe-me perguntar algo. Gianni, é um homem religioso?

Não. Não acredito em Deus. Respeito quem tem crença, mas simplesmente não acredito. Para muitas pessoas, tal faz uma certa espécie. Eu tenho uma amiga-atriz que contou uma história da sua infância, em que a sua mãe descobriu que ela não acreditava em Deus, sendo que esta deu-lhe um sermão, achando impossível existirem pessoas sem crença. A minha amiga respondeu: “Mãe, eu acredito em Deus. Eu acredito no Al Pacino“. [risos]

E como uma pessoa não religiosa, como é para si a importância da religião nas questões morais?

Penso que a religião é uma espécie de conto. A Bíblia foi o primeiro “Avengers” da História, e teve um discreto sucesso. Pessoalmente creio que a força da Religião está no poder da história, e as figuras religiosas que temos desde a nossa infância têm um potencial, e esse potencial é o que leva a história que estas representam. E a figura da Nossa Senhora aborda questões que são muito fortes e muito relacionadas com o quotidiano. Isso coloca várias questões, quer aos religiosos, quer aos laicos. (…) Hoje, com a vida que levamos, na qual estamos constantemente distraídos da nossa própria existência, já não temos mais em consideração os mistério da vida e da morte. E também um discurso de verdade. No filme, a Nossa Senhora traz um discurso de verdade.

Imagino que hoje, se a Nossa Senhora aparecesse diante de nós com um recado de extrema importância, éramos capazes de ignorá-la em prol de uma partilha de Facebook.

Costuma-se dizer que numa segunda vinda de Jesus Cristo, ele seria novamente crucificado, tendo em conta o Mundo que hoje vivemos.

Acredito que na situação atual de Itália, se Jesus Cristo regressasse não conseguiria sequer entrar no país. [risos]

Julgo que se "Lúcia Cheia de Graça" fosse produzido nos EUA, seria um “faith based movie” (filme de fé). Aliás, quando a Lúcia começa a ver a Nossa Senhora recorre a um psiquiatra, e nunca a um padre ou exorcista.

Sim, tentei salientar, que apesar dos elementos, ‘Lucia’ não é um filme religioso. É um filme sobre a procura da verdade, qual seja a forma.

E como reagiria se o filme fosse vendido como um filme de fé?

Não sei bem como reagiria. Seria, de certo, uma desonestidade se isso fosse feito.

Em relação aos debates de Cinema vs Streaming, o que tem a acrescentar?

Conheço um sitio belo, que guarda memórias de um século de História. Esse lugar chama-se Cinema. E o mais próximo disso são os nossos sonhos. Porém, tudo muda, nada é imutável. E não seremos nós a colocar-nos no meio de uma mudança tecnológica ou simplesmente das nossas vidas e da forma de ver audiovisual. Mas também acredito que teremos sempre necessidade de um refúgio escuro ornamentado por imagens gigantes, das quais não conseguimos esquecer: uma sala de Cinema.

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E se a Netflix propusesse produzir o seu filme?

Depende. Acredito que daqui a algum tempo os filmes da Netflix terão estreias simultâneas, na plataforma de streaming e em sala de cinema. Será uma mudança das suas políticas. Mas a diferença não está na Netflix, nem em outros serviços. Está no poder que as histórias possuem e que merecem ser contadas em qualquer ecrã. Até porque, quando tinha 10 anos, alguns dos filmes que marcaram a minha vida, vi na TV.

Novos projetos?

Estou a trabalhar num novo projeto, mas sou pior que as mulheres grávidas, e como ando nisto há 3 meses, prefiro não dizer nada.

Burguesias como bolos sortidos

Hugo Gomes, 18.05.17

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Para Arnaud Desplechin, em algumas das suas notas de recomendação, “Les Fantômes d'Ismaël” é um ensaio fílmico sob o olhar atento à natureza do pintor Jackson Pollock, nuances e teores todos eles divergentes que se fundem, dando lugar a um só organismo, complexo, mas um só. Infelizmente, o que o realizador diz não se escreve, porque este seu novo filme, que tem a honra de abrir a 70ª edição do Festival de Cannes, é uma quimera defeituosa.

Uma obra que não faz jus ao seu criador e que conduz o espectador a um espelho deformado que distorce todo o elo narrativo da fita. Saímos com a sensação de termos assistido a 5 filmes diferentes, passando pelo policial com leves “piscadelas” a Le Carré, ao romance parisiense, e até ao humor involuntariamente burlesco. Infelizmente, Desplechin não desenvolve uma coluna vertebral consistente, nem sequer tenta transvestir a palete de cores, pois nenhum dos tons se mistura verdadeiramente. O que este se dispõe é, através dos mais variados lugares-comuns, a apresentar um elenco francês all-star, onde nenhum deles verdadeiramente entrega, para além dos seus reconhecidíssmos egos, um filme que não esteja em pleno estado de malabarismo, não seja pretensioso e igualmente despersonalizado.

Pollock tinha personalidade, aliás, tal talento é reconhecido nas suas mais variadas pinturas expressionistas, e em todo o caso era um artista em constante fase de superação. Desplechin não. Ele é um burguês que explicita cinema burguês sem nada de novo para embicar com o vento. Do mesmo jeito que usufrui das transposições para trazer um artificialismo visual (talvez o melhor que o filme tem para oferecer), ou da oportunidade que tem para citar Bob Dylan e o seu “It Ain’t me baby”.

Bem, como alguém já dizia … peças separadas, sem conexão, nem infusão. Será este o pior filme de Desplechin?