Egrégios Avós ...
Velha tendência, ou será antes a cerne do Cinema, o seu genuíno existencialismo? Serge Daney, na publicada entrevista-conversa de Serge Toubiana ["Perseverança"], confessava ‘procurar’ nos filmes o rasto do seu incógnito pai, diversas vezes iludido, graças à sua mãe e avó, de que a dublagem de muitas das produções, e a de um específico ator, preservavam as vocalidades da sua figura paterna. Acreditando nessa mentira, e persistentemente crendo-a como uma busca sem eira nem beira, o crítico de cinema confiava no Cinema enquanto território familiar, nela localizam os seus traços familiares, como um poeirento e esquecido álbum de fotografias.
No cinema português, diversas vezes deparei-me em tertúlias cinéfilas com reclamações a várias das produções, principalmente em foros documentais ou nos primeiros passos neste universo, o qual tendiam (e pretendiam) servir de encontro e reencontro aos seus entes familiares. Os avós ou avôs seriam o “alvo” predileto nessas buscas para lá da ficção e para lá da veia documental. Talvez esse apelo emocional conquiste, e com muito sucesso, esse público que aceita o Cinema enquanto ponto de encontro, enquanto motivador de convívio familiar, ora em jeito detetivesco (“A Toca do Lobo” de Catarina Mourão), em modo de (bem-sucedida) instalação artística (“A Metamorfose dos Pássaros" de Catarina Vasconcelos) ou na demanda “cinema verité” (“Bostofrio” de Paulo Carneiro). A estes exemplos, acrescentamos “Soldado Nobre”, a primeira longa-metragem de Jorge Vaz Gomes, conduzida por mais de 6 anos (as primeiras filmagens iniciaram em 2013, as últimas em 2019), um (ree)ncontro com fantasmas de paradeiro desconhecido.
O trajeto define-se envolto do vulto do seu bisavô. O realizador, que pouco ou nada conhece sobre este seu familiar - com excepção de que combateu na batalha de La Lys, Primeira Guerra Mundial, onde nela fez a sua derradeira morada - procura-o numa velha foto. Ali, dezenas de soldados posam firmemente em frente a uma parede de tijolos, o estado da fotografia desvirtua os detalhes da mesma, e sobretudo as características destes outrora jovens. Acreditando ser este o único retrato do seu parente, Jorge Vaz Gomes embarca numa investigação para, primeiramente, reconhecer o seu bisavô naquela mesma foto. Começa-se por três candidatos, reunidos pelas poucas e salientes semelhanças com os seus congêneres, contudo, quanto mais aprofundada a investigação se revela, mais afinidade o realizador tem com um determinado soldado desconhecido e semi-apagado do decadente registo.
“Soldado Nobre” salta de trincheira a trincheira a fim de concluir o seu objetivo. Se por um lado deseja conhecer o familiar “desaparecido” do registo, completando assim a árvore genealógica, por outro repensa a fotografia como conduta memorialista, e a desafia perante a ausência do seu objeto-estudo. Nesses termos, e evidentemente, o faz efetivamente através de uma visita ao Museu Louvre-Lens [nas imediações de La Lys], comparando o seu hipotético bisavô com a natureza dos retratos, esculpidos ou pintados dos seus artefactos históricos, mas é em específicas esculturas, silhuetas sem cabeça o qual depara uma relação direta com aquela pessoa-objeto. Jorge Vaz Gomes não inventa a “roda” nesta referida tendência, parte de uma foto, como tantos fizeram, e limita-se ao universo daquela mesma. Os “subúrbios” daquele pelotão, contextos históricos e geopolíticos, ou até mesmo o descortinar do papel de Portugal na Primeira Grande Guerra, ficam para outra altura. Não nos vemos em pedagogias, apenas em autognoses.
Mais criativo e acima de tudo mais abrangente no seu “abraço” histórico, “Interdito a Cães Italianos” (“Interdit aux chiens et aux italiens”), uma animação stop-motion coproduzida entre Itália - Portugal - França- Suíça. Aqui, Alain Ughetto persiste em conhecer o seu avô e a restante linhagem familiar num registo autodocumental [um documentário sobre o seu próprio processo fílmico]. É um filme, felizmente, em constante desenvolvimento, e sem vergonha em esconder esses “andaimes", aos nossos olhos as figuras de "plasticina" formam personagens e essas personagens possuem memórias alicerçadas de “outrens” (uma possessão). É todo um processo, ora lúdico, ora repescatório de uma História recente, com Luigi, o avô e protagonista animado, homem de mil façanhas e de mil peles, atravessando fronteiras e esquadrias bélicas para que uma família possa, por fim, ser formada (e formalizada), tudo isso narrado pela avó de Ughetto, Cesira, também ela convertida em “boneco”, num pleno e imaginário diálogo com um realizador-criador onipresente.
Homenagem, dirão muitos, malabarismo técnico, dirão outros, mas fora esse lado memorialista, “Interdito a Cães Italianos” (título alusivo a uma mensagem discriminatória à porta de um café francês) é a condensação de um século, o XX para sermos exatos, e as atribulações ocidentais, numa Europa dividida e “engolida” por movimentos fascistas e declarações de guerra concretizadas. Elemento narrativo latente na construção e resumo de uma árvore genealógica, Ughetto utiliza o seu talento de forma a descobrir a sua família, seja no conto e reconto das suas aventuras e desventuras, e dessa maneira redescobrir a si próprio.
“Soldado Nobre” e “Interdito a Cães Italianos”, dois exemplos recentemente estreados de como o cinema continua a falar dos avós, e tratá-los como a sua força criativa e artística.