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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Arranca o 13º Encontros Cinematográficos: "um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade."

Hugo Gomes, 10.08.23

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Paradise Alley (Sylvester Stallone, 1978)

A proposta é a seguinte: a 40 km da fronteira com Espanha, mais precisamente na cidade do Fundão, realiza-se um seminário para cinéfilos com o intuito de ver, discutir, debater e apreciar o Cinema, seja através de filmes variados, modernos, clássicos, cultos e ocultos. Trata-se de um seminário anual que chega à sua 13ª edição, um número associado à má sorte para os supersticiosos, mas à sorte para aqueles para quem o Cinema é uma religião única e absoluta. Referimos, sim, aos Encontros Cinematográficos, que acontecerá de 11 a 14 de agosto, na Moagem do Fundão. 

Este ano, o evento prestará homenagem à animação portuguesa, na sua fase ascendente e resgatada, e as primeiras imagens da obra (ainda em fase de montagem) “Senhora da Serra”, de João Dias (editor de alguns trabalhos de Pedro Costa), que remete-nos a lendas oriundas do interior português, com especial atenção ao misticismo da Gardunha. Além disso, o Serge Daney será o signo destes quatro dias, não apenas pela apresentação do livro "Perseverança" (editado em português pela The Stone and the Plot), mas também porque será o ponto de partida para a exibição de dois clássicos amados por este crítico e eterno cine-amante: "Hiroshima Mon Amour" de Alain Resnais e "Paradise Alley" ("O Beco do Paraíso") de Sylvester Stallone.

No entanto, não revelaremos mais detalhes sobre o programa desta intensa peregrinação cinéfila, deixaremos isso para o programador Mário Fernandes, nesta conversa que traz à baila surpresas e destaques deste “encontro entre cine-amigos”.

Na 13ª edição e com uma perspetiva / retrospectiva, o que podemos esperar dos novos Encontros Cinematográficos, para onde se direcionam e quais são as ambições deste evento?

No essencial, dar a ver um cinema diferente de uma forma diferenciada: um Encontro na verdadeira acepção da palavra, assente na partilha e não na competição. Todas as edições são naturalmente diferentes, mas creio que o maior desafio para o futuro será manter o nosso espírito identitário ou linha editorial: «posicionados ao lado dos que resistem, dos que fazem do ofício um acto de amor, dos que divergem da unanimidade premiada, das “anomalias” dos pequenos e grandes gestos cinematográficos.» [Catálogo da XI edição dos Encontros Cinematográficos, p. 6].

Ao tentarmos definir os Encontros Cinematográficos, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

Diria que os Encontros Cinematográficos são essa comunhão, não apenas entre cinéfilos. Podemos defini-los como um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade.

Celebrando o centenário da animação portuguesa, que nos últimos meses ganhou destaque, em grande parte devido à nomeação para o Óscar de "Ice Merchants" de João Gonzalez. No entanto, nem sempre foi assim, uma vez que já foi considerada um subproduto do cinema nacional. Sem questionar se concorda ou não com esta depreciação, acredita que são necessárias mais iniciativas como esta para promover e divulgar este tipo de produções? O que mais acha que deve ser feito?

O cinema de animação começou por ser uma das vanguardas cinematográficas por excelência, em linha com as vanguardas artísticas do início do séc. XX, pelo menos era esse o entendimento do Henri Langlois, que nunca teve qualquer problema em programar filmes de animação ao lado dos maiores filmes da vanguarda francesa, por exemplo. Talvez tenha sido ele o primeiro a perceber a relação visceral entre o cinema de animação e a pintura, a música, a dança, o desenho, etc. Muitos animadores são, na verdade, extraordinários artistas, além de cineastas de corpo inteiro. Desde o Émile Cohl, o Picasso da animação, ao Theodore Ushev. No caso português, penso que o filme do João Gonzalez foi fundamental para o cinema de animação recuperar uma certa “carta de nobreza”, pelo menos em Portugal, onde há grandes talentos, com um universo muito próprio e muito poético, desde o Abi Feijó ao Nelson Fernandes, entre muitos outros. Seria perfeitamente possível programar blocos de filmes de animação na televisão em horário nobre…  Falta-nos o Vasco Granja!

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Ice Merchants (João Gonzalez, 2022)

Olhando para a programação, não apenas deste ano, mas também dos anos anteriores, constatamos que existe muita produção portuguesa que não tem tido divulgação nem distribuição em grande parte do país. Os Encontros Cinematográficos têm a intenção de quebrar essa barreira, realçando um cinema independente (um dos poucos no nosso panorama 'industrial') ou de criar um polo criativo-artístico?

Um dos objetivos dos Encontros é, de facto, resgatar do esquecimento ou dar visibilidade a importantes obras e autores, muitas vezes fora dos circuitos comerciais ou festivaleiros. Assim tem acontecido com várias obras e realizadores do cinema português. Chegámos mesmo a organizar ciclos paralelos, como os Filmes Proibidos, onde programávamos filmes portugueses censurados pela ditadura política ou económica ou, mais genericamente, pela ditadura da estupidez. Talvez a grande (re)descoberta nos Encontros tenha sido um dos mais belos filmes de sempre, “O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra. O filme foi aqui exibido várias vezes, desde 2011, com a presença da realizadora. Escrevemos vários textos sobre o filme, entrevistas para o nosso catálogo, etc.. Para nós era inconcebível que pouca gente conhecesse essa maravilha. Como a própria Manuela Serra reconheceu em entrevistas recentes, agora que o filme já circulou pelo país e pelo mundo, foi fundamental a persistência dos Encontros Cinematográficos.

Em relação à programação desta 13ª edição, o que destacaria, seja em termos de filmes ou convidados? E já agora, sobre a recente reavaliação da carreira de Sylvester Stallone, que José Oliveira considerou um autor numa crónica do jornal Público no âmbito dos Encontros Cinematográficos?

Além do bloco dedicado ao cinema de animação, com as presenças de grandes realizadores (Abi Feijó, Regina Pessoa, João Gonzalez, Nelson Fernandes e Bruno Caetano), destaco a estreia do filme “Senhora da Serra”, de João Dias, um filme belíssimo e surpreendente, que transforma a Serra da Gardunha num palco giratório onde se debatem as grandes questões universais, como numa tragédia grega. E o filme “Terra que Marca”, de Raul Domingues, um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos, de imensa poesia telúrica, concreto e abstracto, absolutamente extraordinário, único. 

Pela raridade, o épico terreno “Uma Aldeia Japonesa: Furuyashikimura” ("A Japanese Village", 1984) de Ogawa Shinsuke. Quanto ao filme “O Beco do Paraíso”, julgamos que será uma boa revelação para muita gente. É mais um filme que urge descobrir e talvez ajudar a derrubar o preconceito que existe em relação ao Stallone. O grande músculo de Sly é mesmo o coração e, no caso deste filme, conseguiu uma realização totalmente à altura das personagens, com momentos de grande emoção. Foi, de resto, um filme muito importante para cineastas tão diferentes como Carax ou Tarantino, que escreveram sobre ele. No fundo, ao programá-lo, continuamos o esforço de recuperação de realizadores pouco consensuais, como quando organizamos retrospectivas de Michael Cimino ou Sam Peckinpah

Para lá dos filmes e dos realizadores, os excelentes convidados que irão conversar sobre os filmes, a apresentação do livro do Serge Daney (outro admirador de “O Beco do Paraíso”), a caminhada na Serra da Gardunha, o concerto dos Blue Velvet.  

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Senhora da Serra (João Dias, 2023)

A importância de iniciativas cinematográficas como esta, realizadas fora das metrópoles como Lisboa e Porto.

Em 13 edições, sem apoio do ICA e com a paixão e dedicação de 3 ou 4 voluntários, a importância dos Encontros Cinematográficos é manifesta: 192 convidados de nacionalidades diferentes, 200 filmes exibidos e discutidos, 13 catálogos com textos inéditos e entrevistas aos realizadores convidados, um livro de celebração do 10º aniversário, diversas colaborações, lançamentos de livros, concertos, exposições, exibições especiais para a população escolar, projecções descentralizadas, extensões anuais na Cinemateca Portuguesa, vários artigos nacionais e internacionais a elogiar o trabalho desenvolvido e um número crescente de participantes com algumas sessões esgotadas nos últimos anos.

E, claro, a qualidade dos convidados que têm passado pelos Encontros Cinematográficos do Fundão: Victor Erice, Pedro Costa, Billy Woodberry, Manuela Serra, Pierre-Marie Goulet, Andrea Tonacci, Peter Nestler, Miguel Marías, Chris Fujiwara, Luís Miguel Cintra, Virgínia Dias, Pablo Llorca, Adolfo Luxúria Canibal, Bruno Andrade, Patrick Holzapfel, Andy Rector, Mercedes Álvarez, Rita Azevedo Gomes, Pierre Léon, Vítor Gonçalves, Paulo Faria, Manuel Mozos, Mike Siegel, entre muito outros.  E, sem dúvida, os Encontros também contribuíram para a fixação de cineastas no concelho do Fundão, como o próprio João Dias, realizando nesta região muitos dos seus filmes que depois viajam pelo mundo.

 

A entrada é livre. Ver toda a programação aqui.

“Nada conheces sobre Hiroxima”

Hugo Gomes, 01.12.21

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A renúncia de Alain Resnais em um novo tratado de ocidentalização perante as imagens de horror culminou no nascimento do cinema moderno através do seu “Hiroshima Mon Amour” (1959), filme que viria conquistar os mais eternos amantes e alteraria o rumo de que as imagens poderiam naturalmente prosseguir. Hoje, não só tido como o celebrado homem por detrás da poesia tecida em tempo real com o mencionado filme, Resnais foi também um realizador plenamente interessado na linguagem progressiva e radicalmente moderna, afastando o dispositivo cinematográfico do mero contador de história, e sim, do abalo de consciências e sensibilidades (isto até se vergar pela hibridez do teatro). 

Com "Hiroshima'' o caso poderá ser resumido pelo primeiro ponto, e não fiquemos por aí. Já experiente em documentários curtos, o realizador subjugou-se a falatórios pela construção das imagens extraídas do Holocausto, uma experiência ética de como as representar e apresentar ao mundo, resposta a Adorno e as suas preocupações de primeiro ego - “depois de Auschwitz, como fazer poesia”. O filme em questão foi “Nuit et brouillard” (1956), e a partir daí, tendo em conta o resultado, Resnais obteve um outro financiamento, novamente direcionado para o lado documental. 

Desta feita, partindo para o Japão, mais concretamente para a cidade-fénix Hiroxima, recolheu, quer dos arquivos (os horrores imediatos ao “incidente” nuclear), quer do ‘agora’ (o aproveitamento do desastre como fonte turística e pedagógica, e a vida citadina pós-bomba). Com esta coletânea, o sentimento geral foi o de criar uma réplica a “Nuit et brouillard”, o que incomodou Resnais, que por entre o captado comboio turístico que convida “estranhos e estrangeiros” a passear pelas ruínas dos horrores, cedeu à sua epifania. A exploração da miséria, e sobretudo uma abordagem de ocidentalização às dores dos outros, mais tarde para serem exibidas em festivais com clara receção de aplausos e elogios vários. Desta forma, Alain Resnais não quis entregar ao Mundo mais um exercício de distância, e através disso fintou os seus próprios fundos. Contacta a escritora Marguerite Duras para conceber um guião ficcional, e contrata atores profissionais para encenar essas suas dúvidas no grande ecrã – Emmanuelle Riva e Eiji Okada

O resultado pode ser resumido nos seus primeiros 20 minutos; dois corpos distintos, suados que acariciam, proclamando gestualmente juras de amor, mas por entre o calor dos amantes, que convém sublinhar ela, atriz francesa, ele, arquiteto japonês, despoleta um diálogo de contradições. Enquanto ela, de maneira ocidentalmente arrogante esquematiza os seus conhecimentos pela tragédia e pela cidade com um enorme absolutismo, ele impede-a de persistir nessa presunção - “Nada conheces sobre Hiroxima” – isto, intercalado por imagens documentais e encenadas dos horrores e do pós-horrores, do mundo sarado que deseja esquecer, ou melhor, esconder. O mundo nunca mais foi o mesmo depois de Hiroxima, o “evento” como o filme, o inaugural ensaio do cinema moderno, do cinema consciente e do cinema de proximidades e distanciamentos. 

Como é possível fazer poesia depois de “Hiroshima Mon Amour”? 

#Neverforget

Hugo Gomes, 28.01.20

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Ontem, dia 27 de janeiro, comemorou-se os 75 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz.

Um dia para relembrar e nunca esquecer que experienciamos o Holocausto, hoje cada vez mais fomentando como uma “mera opinião politica” alicerçado a uma certa ideologia que se infiltra nas sociedades ocidentais. Mas não seguiremos por esse caminho tenebroso, a memória é aqui a nossa moral. O “Shoah”, essa palavra sem tradução atribuída de forma a assinalar e distinguir, assume-se como a garantia de que tais trevas não se repetirão. Infelizmente, o “andar da carruagem” segue em direção desses mesmos erros passados.

No cinema, a memória mantêm-se viva, quer no registo documental, quer na ficção, de forma a garantir o “Never Forget” (nunca esquecer).

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Nuit et brouillard (Alain Resnais, 1956)

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Kapô (Gillo Pontecorvo, 1960)

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German Concentration Camps Factual Survey (Sidney Bernstein & Alfred Hitchcock, 2014) 

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La vita è bella (Roberto Benigni, 1997)

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Shoah (Claude Lanzmann, 1985)

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Treblinka (Sérgio Tréfaut, 2016)

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Denial (Mick Jackson, 2016)

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The Boy in the Striped Pyjamas (Mark Herman, 2008)

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The Schindler's List (Steven Spielberg, 1993)

O meu Cinema é feito de Mulheres!

Hugo Gomes, 09.03.19

Não é só o dia 8 de Março que as mulheres devem celebradas, aliás, o dia da Mulher deve ser, sobretudo, normalizado. Todos os dias são dias de mulheres, e todas as mulheres fazem parte dos nossos dias. Como tal, eis o meu contributo, as mulheres especiais que integram o meu Cinema … digo por passagem, que são somente algumas.

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“Vocês Ainda Não Viram Nada” … e ao mesmo tempo viram tudo

Hugo Gomes, 06.10.14

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Com o seu penúltimo filme, Alain Resnais, como se presenciasse a sua eventual morte, evoca fantasmas para um último reencontro com a melancolia e a tristeza que forma o teatro. O resultado é um ensaio artístico da interpretação, culminando e dissecando a condição de ator para uma última estância, por vias de um exercício de estilo através de uma reinvenção trágica de "Eurydice", da autoria de Jean Anouilh.

Um funeral encenado, tão pessoal e fantasmagórico cuja beleza que transborda é, por si, inegável. Espíritos eruditos que culminam a arte em prol de uma forma poética de narrativa, cada vez mais fundindo, como peças de serralharia, a veia teatral com a beleza artificial do cinema. É aquele tipo de cinema que deixaria orgulhoso o próprio Manoel de Oliveira de “Mon Cas” / “Meu Caso” (1986), segundo este – "quando mais perto o cinema está da realidade, mais longe estão da arte". Neste caso, a arte é a sua coluna vertebral e o que encontramos aqui não são devaneios egocêntricos, nem a liberdade de expressão direta dos recantos mais obscuros da alma de um artista, mas sim a própria alma, a dedicação e a paixão de um autor que tão bem sabe "fabricar" híbridos e lhes aufere vida.

“Vous n'avez Encore Rien Vu” (“Vocês Ainda Não Viram Nada”) é das suas recentes criações experimentalistas, uma obra de exata precisão no seu timbre artificial que por momentos nos faz acreditar no cinema não como uma narrativa ficcional e novelesca, mas como um estimulante da nossa imaginação. É quase como um auto-tributo, Resnais requer a presença dos seus "heróis", atores verdadeiros a demonstrarem que são atores e não as personagens do momento, a interpretar nas suas próprias peles, ao mesmo tempo que exibem os multifacetados esconderijos intrínsecos (e que belos empenhos se dignificam a mostrar). Poderia ser perfeito esta espreitadela por entre as cortinas vermelhas, mas o final deixa quase tudo a perder, dando um sentido àquele artificialismo que havia concretizado desde então.

Exceto isso, temos uma bela melodia sobre a morte, o legado e o esquecimento, o cinema e o teatro de mãos dadas para mais uma vez sobressair das suas amarras, da narrativa convencional e desafiar, não a mente, mas a sensibilidade do seu espectador. Ouçam o canto dos defuntos. Que bela melodia fazem!