Livraria Linha de Sombra
“Foi em 5 de janeiro de 2015 que a Cinemateca apresentou uma grelha habitual e atual, de cinco sessões diárias, com isto permitindo a exibição de mais filmes, trazendo mais diversidade e incentivando mais público. E também essa feliz data coincidiu com a abertura da livraria.” referiu João Coimbra Oliveira, o conhecido “livreiro” da “Linha de Sombra”, aquele que é para muitos uma livraria, para outros um canto de “perdidos e achados" de pérolas cinematográficas, em modo literário. Por entre as prateleiras recheadas e as bancadas sempre renovadas com lançamentos e relançamentos, Coimbra Oliveira faz do espaço, uma segunda casa a cinéfilos errantes ou os “da casa”. Sempre cordial e auspicioso aos mesmos que anseiam encontrar ali o há muito pedido livro ou apenas meter dois “dedos de conversa” - “Vais ver algum filme hoje?” - é sempre desta forma que a longa tertúlia começa, mas naquela altura o incentivo era outro, o lançamento do livro de Alain Bergala (“A Hipótese de Cinema”), historiador e crítico, que como o próprio indicou, interessado na educação através do Cinema e o uso da Sétima Arte para moldagem de “pessoas melhores” na nossa sociedade. Contudo, não cheguei àquele compartimento com intuições de adquirir uma nova cópia do mais recente volume do catálogo da Cinemateca ou o mítico “Esculpindo Tempo” de Andrei Tarkovski, mas antes esmiuçar sobre o papel da de cognome Casa do Cinema ao longo destes tempos, e principalmente a sua relação com os mais jovens, os possíveis cinéfilos-herdeiros.
A livraria “Linha de Sombra”, integrada no edifício da Rua Barata Salgueiro, serve-se como um dos satélites ao ecossistema próprio da Cinemateca, o Museu de Cinema que tem resistido aos tempos incertos da pandemia. “Foram no total de 100 dias que os cinemas estiveram encerrados no primeiro ano de pandemia. Foi uma situação dramática para todos.” relembra João Coimbra Oliveira enquanto arruma as prateleiras periféricas do balcão. “Já no segundo confinamento, estivemos 60 dias fechados, até passarmos a sessões reduzidas. Hoje, já estamos a aproximar a invejável grelha do passado, a das cinco sessões diárias.”
O drama vivido pela Cinemateca em 2020 não foi exclusivo, a interdição imposta pelas medidas de prevenção e combate à Covid19 atingiram os cinemas em geral, e não apenas no nosso país. Mas enquanto estas salas comerciais lidavam igualmente com os adiamentos dos lançamentos e produções cinematográficas, a Casa do Cinema apenas estava impedida de funcionar, programação, neste caso filmes não é o que faltava à instituição. Mas a pandemia não foi totalmente prejudicial, o próprio “livreiro” refere a uma espécie de renascimento na Cinemateca em paralelismo com o surgimento de um novo tipo de cinéfilo. “Com a pandemia, as plataformas de streaming tornaram-se mais que uma alternativa ao consumo de cinema. Criou novos hábitos, mas não foram só ‘coisas’ desastrosas, as plataformas aproximaram as pessoas dos filmes e por efeito aos livros. (...) Outro fenómeno indiciado na reabertura da Cinemateca pós-pandemia, é o surgimento em força dos jovens, muitos deles motivados pelas escolas de cinema do nosso país. A FCSH, a Escola Superior de Cinema e Teatro, a Lusófona, e outras. E outro ‘sucesso’ de público aqui no espaço foram as sessões de cinema brasileiro, que apelaram muitos jovens, surpreendente."
Questionando sobre os fatores que levaram a este crescimento de público mais jovem, João Coimbra Oliveira apontou o “trabalho das redes sociais” e a importância do “bar como ponto de encontro e convívio", assim como prolongou nas vitórias trazidas de uma “outra direção de programação [Nuno Sena], que possibilitaram uma abertura às demandas da sociedade e um respeito duplo, quer à memória e cinefilia de João Bénard da Costa [respeitado diretor da Cinemateca, para além de ter sido um ávido cinéfilo e curador, é hoje visto como a figura-mestra da casa], quer na formação de novos públicos.” Acrescenta ainda, que o tal incentivo jovem não é dever exclusivo da Cinemateca, as escolas de cinema, o Estado e outros, tem como obrigação remexer no “bichinho cinéfilo” dos “verdes anos” e sobretudo “motivá-los à valorização de uma experiência estética de ver filmes em sala”.
John Ford dirigindo "Stagecoach" / "Cavalgada Heróica" (John Ford, 1939)
De seguida, Coimbra Oliveira agarra num livro de capa azul intitulado de “O Cinema Não Morreu”, um objeto da autoria do coletivo “À Pala de Walsh", site ainda hoje em voga e com mais de 10 anos que resultou numa “reunião entre blogues (...) de cinéfilos que visualizavam filmes em outro formato, o do ficheiro, e que tem um papel recorrente na divulgação da programação da Cinemateca e instigação aos hábitos de cinema em sala, contrariando as suas origens virtuais.” Pousando o livro na sua devida coluna, dirige-se ao balcão onde retira uma colectânea de folhas de sala. “Eu guardo as folhas das sessões da Cinemateca que assisto. Como podes ver, estes pedaços de papel são como diários, sei exatamente onde estive e que filme vi na determinada data e hora, mas fora isso, estas folhas de sala, escritas maioritariamente pelos nossos programadores, têm sido fundamentais nessa questão educativa.” Após isto, guardo com carinho e cuidado o “monte” na oculta estante do balcão, a deixa para me instalar numa outra conversa.
Saio da livraria e percorro a esplanada que não é mais que o pátio que faz fronteira entre “A Linha da Sombra” e o Bar “39 Degraus”, outros dos anexos da Cinemateca. Café para alguns, bar de cocktails para outros, restaurantes para os que assim queiram, dirijo-me para uma das mesas do seu interior na companhia de Luís Mendonça, um dos programadores da Cinemateca, aliás dos mais recentes neste ramo. Começo por lhe questionar sobre a situação atual da relação dos jovens com a Cinemateca, o qual me responde não sentir maneira nenhuma decréscimo de “afluência de público jovem. Sinto um decréscimo em geral, fruto da pandemia, entre outros fatores. Mas o público jovem tem sido fiel à Cinemateca, enchendo sessões, sobretudo com grandes clássicos - algo que pudemos verificar recentemente, com a milésima projeção de “Johnny Guitar”, “Laranja Mecânica” ou até propostas mais ousadas, como a sessão na esplanada de “Evil Dead”. Os mais jovens têm marcado presença e, ficamos com a sensação, quando vêm uma vez, facilmente se fidelizam ao lugar e à programação. A mensagem da existência da programação da Cinemateca é que nem sempre lhes chega.”
Por entre goles de cerveja sob pressão e nos holofotes de estrelas como Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Giulietta Masina e Richard Burton, inserido em históricos cartazes que decoram as paredes do local, Mendonça revelou que os jovens tem sido uma das suas prioridades enquanto programador, até porque fora disso, co-fundou o referido site “À Pala de Walsh”, que se tornou um dos motores de uma nova geração cinéfilos ferrenhos, e leciona a cadeira de Documentário na FCSH, ou seja, habituado a partilhar a sua paixão com o Cinema com outros. “É um dos objetivos da equipa de programação: captar público novo. As maneiras de chegarmos lá é que são discutíveis e variáveis. Sessões de grandes clássicos podem atrair mais público adolescente ou jovem adulto do que de filmes mais, digamos assim, contemporâneos. O cuidado que tenho, como programador, passa por, em cada ciclo, procurar programar algumas “referências universais” e juntar a estes títulos filmes que eventualmente não são tão chamativos para o público mais jovem. Parto muito, e confesso que intuitivamente, da minha própria experiência de descoberta do cinema “do antigamente”, a partir de filmes contemporâneos que me permitiam abrir essa porta para o passado. “Anexar” o clássico ao moderno pode ser uma boa estratégia, mas sem esquecer - nunca! - de programar os grandes clássicos. Há sempre um público particularmente ávido pela descoberta de filmes que nós, cinéfilos, já vimos mil vezes. E esse público costuma ser jovem.”
Tomando mais um gole e em jeito de provocação pede para registar a seguinte declaração - “Há que passar a ideia de que não é só de ‘Cavalgadas Heróicas' que a Cinemateca é feita. Também passamos cinema dito “moderno”, ou de culto como quiserem chamar. E atenção, desde que aqui estou deparei-me com sessões passadas de filmes que não imaginaria que a Cinemateca tivesse projetado. Falei-te do “Evil Dead”, o original, que programei, mas anteriormente, por razões inexplicáveis, a sequela integrou a nossa programação. Há folha de sala que comprova isso. (...) Programar os grandes clássicos - há sempre alguém que ainda não viu e foi deslumbrado por um Citizen Kane ou Vertigo - é algo que não pode ser descurado ou desmerecido pela equipa de programação. De resto, a Cinemateca pode programar ainda mais filmes ou autores que comuniquem mais diretamente com ‘a malta jove’, como diz o Herman. Não digo que vá apostar em breve num ciclo Larry Clark ou - mas era igualmente bom… - um ciclo John Hughes ou lançar um programa sobre a adolescência - idem… -, mas talvez possa diversificar a sua proposta, em termos de géneros, apostando naqueles que são, tradicionalmente, os mais populares, como a ficção científica, o terror e a comédia. Estamos a trabalhar nisso.” Segundo um programador da Cinemateca, jovens têm assistido com regularidade os espaços da Cinemateca. De onde virá esse fascínio?
Guiado pelas palavras de Coimbra Oliveira, sobre o trabalho das escolas nesse ramo, contactei Pedro Florêncio, professor de História de Cinema da Faculdade de Ciências Sociais Humanas da Nova, que durante as suas aulas é habitual existir tempo para uma palestra sobre a importância do cinema em sala, e principalmente a Cinemateca como abrigo dessa experiência. Sentirá bem sucedido com essa hercúlea “missão”, o de devolver o status místico do Cinema a um público, supostamente, mais conectado ao streaming? Apesar de constatar um crescimento do público jovem na Cinemateca “contra todas as probabilidades e previsões, a pandemia veio acentuar uma "fome" (...) que raramente constatei de forma tão evidente. Mesmo quando poucos, é evidente que são dos "bons"”, quanto aos resultados do seu empenho: “Só o poderei saber daqui 10, 15 ou 20 anos, que é o tempo necessário para que se tornem visíveis os efeitos mais poderosos que a Cinemateca demora a ter nas pessoas que a começam a "namorar". Para já, posso dizer que é com muita alegria que por lá tenho encontrado quase sempre um ou dois ex-alunos de História do Cinema, seja qual for o teor da sessão. É um bom sinal que indicia "o início de uma bela amizade.”
The Evil Dead (Sam Raimi, 1981)
A verdade, é que alguns dos seus alunos falam e indicam a experiência à lá Cinemateca possível pelo professor, garantindo positivamente um regresso àquelas salas e um desejo de “frequentar ciclos”. Estaremos na iminência de futuros cinéfilos a preencher as cadeiras da sala Félix Ribeiro ou Luís de Pina, ou até fazer compras na Linha da Sombra? “Não consigo antecipar que papel irá ter, mas posso dizer que é um papel mais importante do que nunca, justamente por pôr em prática uma série de valores que se distinguem e até se opõem à experiência doméstica, privada, despolitizada, a-histórica ou tendencialmente compulsiva do cinema, experiências de mero consumo ou de comprazimento estéril quando não se desenvolvem dialogicamente no espaço e no tempo, que as plataformas de streaming ou de cotação (Letterbox, MUBI) tendem a estimular e massificar, apesar de todas as outras coisas positivas que trouxeram à relação com o cinema, nomeadamente ao nível do acesso. As Cinematecas, no entanto, preservam e pensam valores totalmente opostos a esses, sem necessariamente os renegar, sendo por isso mesmo, pelo menos idealmente, muito mais do que um mero santuário de arquivos ou um museu em que se promove a lembrança de filmes datados ou formas de experiência ultrapassadas. São, pelo contrário, um lugar privilegiado para que o cinema possa continuar a ser pensado de acordo com o seu infindável horizonte de possibilidades, por um lado, e para que novos espectadores possam continuar a ser (trans)formados, por outro.”
Quanto ao papel das Escolas de Cinema na formação desse público, Florêncio refere um auxílio, mas não uma necessidade visto que a própria Cinemateca “é ela mesma uma Escola de Cinema para todas as pessoas, independentemente do vínculo académico, do nível de especialização ou do melhor ou pior gosto de que estão munidas. A Cinemateca é, por definição, um projecto essencialmente democrático, por mais que continue a ser conotada com um certo elitismo cultural. No entanto, trabalhar essa dimensão democrática, verdadeiramente popular e aberta à "cidade" - aqui refiro-me a "cidade" enquanto "mundo" ou "casa" de todos nós - é uma tarefa da Cinemateca e somente de quem a gere. As Escolas de Cinema (e não só, mas também as de Artes no geral) devem, a meu ver, fazer muito mais do que simplesmente sugerir aos seus alunos que visitem a Cinemateca. Considero mesmo que devem procurar estabelecer (no limite, insistir e forçar) parcerias de todo o tipo com a Cinemateca, pois o que está em causa nessa relação não é só um incentivo ao "consumo" de Cinema, mas muito mais um incentivo à relação com a própria cidade através das imagens e do recolhimento num lugar único. Acho que as Escolas (volto a frisar: de Cinema mas não só) devem procurar pensar essa relação de ocupação e apropriação da cidade no sentido mais político do termo, pois as cidades foram idealizadas para nelas podermos circular e conviver em comunhão nos seus lugares mais democráticos por definição, como é o caso de uma Cinemateca. Por mais solitários e individualistas que sejamos, as cidades e o cinema em sala têm em comum o poder de rejuvenescer quem as frequenta, tanto quanto têm a qualidade (e a necessidade) de ser rejuvenescidas por essas mesmas pessoas que as ocupam e habitam. Os grandes filmes da História do Cinema, como por exemplo "O Homem da Câmara de Filmar", são sobre isso mesmo.”