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Akira Kurosawa dirigindo Takashi Shimura em "Ikiru" (1952)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Akira Kurosawa dirigindo Takashi Shimura em "Ikiru" (1952)
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Ikiru (Akira Kurosawa, 1952)
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Foi uma jornada de 16 filmes, mas todos os percursos chegam ao fim.
A colaboração entre o cineasta Akira Kurosawa e a sua requisitada estrela Toshirō Mifune terminou com “O Barba Ruiva” (“Red Beard” / “Akahige”), a adaptação de uma série de contos de Shûgorô Yamamoto (com influências do russo Fyodor Dostoyevsky), que resultou numa das mais elaboradas (e serenas) composições do ator na parceria (recompensada com o prémio de interpretação no Festival de Veneza de 1965). Esta história, cuja espinha dorsal narra a jornada espiritual de um recém-formado médico (Yûzô Kayama) com ambições de servir um Shogun (o senhor feudal) mas que é impedido por um velho e sábio médico rural que gosta de ser alcunhado de Barba Ruiva (Mifune) é, acima de tudo, um dos apogeus do senso humanitário de Kurosawa no Cinema.
De facto, ainda que este filme de 1966 não tenha a intensa epifania de um “Ikiru – Vencer” (1952), trata-se de uma obra dotada de uma sensibilidade quebradiça e que, em consequência, exibe uma teia de moralidades em prol de alicerces pessoais da humildade e solidariedade. Os casos clínicos conduzem-nos a uma panóplia de subenredos que irão moldar o coração do jovem médico, numa cadência que parece saída dos filmes de Kenji Mizoguchi (o cineasta japonês celebrado pelos temas de dilemas e quadrantes éticos), reforçando “O Barba Ruiva” como um elaborado poema de gestos afortunados. Mas Kurosawa balança na corda da ingenuidade entre essa imperatividade e as boas ações.
Fora isso e como seria de esperar, existe um tremendo trabalho técnico, imensamente invejável e rico em detalhes que transformam cada sequência num elaborado teatro de sombras, luzes e tapeçarias como improváveis jardins. Um visual fantasmagoricamente refinado e um dos mais aperfeiçoados da sua carreira.
Para além da fim relação entre Kurosawa e Mifune (uma ruptura nunca totalmente esclarecida, mas que se especula ter surgido numa insatisfação do ator durante a rodagem), "O Barba Ruiva" tornou-se, também, o último do realizador a preto-e-branco. Seguiram-se as (des)venturas em Hollywood através de dois projetos que nunca se chegaram a concretizar sob a sua alçada – “Runaway Train” e “Tora! Tora! Tora!” -, saindo com um orgulho ferido e uma reputação infame que só recuperaria com a receção consensual reservada a "Kagemusha - A Sombra do Guerreiro", em 1980.
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Desde o western algo "fordiano" que resultou nos mais ambiciosos exercícios de jidai-geki [o subgénero de samurais e senhores feudais], passando pela literatura existencialista russa como Dostoevsky, ou, como em "Throne of Blood", a tragédia "shakespeariana", Akira Kurosawa nunca escondeu o seu fascínio pela cultura do Novo e Velho Mundo, procurando e requisitando influências e inspirações, servindo de base, sobretudo espiritual, para muitas das suas obras. Disposto como um "Macbeth" japonês, Akira Kurosawa extraiu o tormento de um general “promovido” a Shogun [o senhor feudal] por vias de uma intensa e delirante sede de poder, incentivado pela profecia de um espírito errante. Para esta “tacada” do legado de William Shakespeare, o cineasta descartou as diretivas da teatralidade clássica do dramaturgo, impondo no seu lugar os contornos do “noh”, um misto de teatro e dança tradicional.
Portanto, em “Throne of Blood” encontramos um rigor de palco e de coreografias mecânicas que transmitem uma sensação de artifício teatral, que Kurosawa aproveita e enquadra numa técnica de “olho cheio”. Este não é um dos seus filmes mais detalhados e ambiciosos em questão de "mise-en-scène", mas está entre os projetos mais embebidos nos gestos e presenças dos seus atores, nem que seja pela loucura raivosa transmitida por um imprevisível Toshirô Mifune ou da espectral Isuzu Yamada, como a alternativa da Lady Macbeth (cujo o omnipresente som do seu apertado vestido de veludo a acompanha em todos os seus movimentos).
Kurosawa compôs a sua definição de “teatro filmado” num misticismo inabalável e criativamente simbólico. As batalhas, que ocorrem fora do ecrã e cujos resultados são proclamados por mensageiros atribulados e aflitos servindo de anúncio para a nossa tumultuosa tragédia, revelam um cuidadoso espetáculo de palco que resultou num dos filmes mais espirituosos da carreira do cineasta.
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Afastado do tom dramático e de feroz violência que o acompanhara nos contos de honra coletados em "Seven Samurai" (1955) e no tratamento shakespeariano de “Throne of Blood” (1958), Akira Kurosawa estreou-se em 'widescreen' com a aventura feudal “The Hidden Fortress”.
O filme viria a abraçar o espírito igualmente heroico dos sucessos do realizador, da mesma forma que convidava ao humor e ao crescendo 'karma' de um par de larápios sem eira nem beira (Minoru Chiaki e Kamatari Fujiwara), com os quais esta jornada parte e finaliza. Em segundo plano, o subenredo de uma princesa prometida (Misa Uehara) e de um ouro destinado ao ressurgimento de um império escondido num Japão em permanente conflito tribal, percorrido passo-a-passo com a malapata destes improváveis protagonistas, nem sequer afáveis ao espectador ou aptos para epifanias morais.
Como já parece ser habitual nos grandes êxitos de Kurosawa (até à data era a sua mais bem-sucedida produção, estatuto apenas ‘quebrado’ com a chegada de "Yojimbo" em 1961), esta mudança de perspetiva ‘contagiou’ um certo cinema ocidental de ação, com destaque para o assegurado por George Lucas na criação do primeiro “Star Wars” em 1977 (não somente na princesa crucial para o destino de um império como também nos dois pseudo-protagonistas, que seriam traduzidos para os andróides C-3PO e R2D2 na saga intergaláctica).
Porém, se a mudança de tom o menorizou em termos críticos comparativamente às suas anteriores criações, o que não deixou dúvidas foram aos alicerces de espetáculo aqui evidenciados, demonstrando a destreza e o perfeccionismo pelo qual o cineasta nipónico era fervorosamente louvado, com sequências ambiciosas que consolidavam a ação armada e cavalgante com centenas de figurantes, ora toscos, ora sincronizados. Para além disso, as paisagens naturais utilizadas como parceiros de viagem trariam um realismo geográfico de mãos dadas com um exotismo algo inóspito.
Desta forma, Kurosawa abraçava o subgénero “jidai-geki” (designação dada aos filmes nipónicos de época, muitas vezes de samurais) polvilhando-o com “pozinhos” de western fordiano, numa espécie de permanente jogo de antípodas. Era o circo cinematográfico à moda do Sol Nascente, e com que espectacularidade este se apresentava!
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No final dos anos 1960, as produções de grande escala de um rigoroso e perfeccionista Akira Kurosawa converteram-se em registos obsoletos e dispendiosos, enquanto surgia um punhado de novos cineastas com a capacidade de fazer com menor custos e saciando a procura intensa de sexo e violência por parte de um novo tipo de espectadores. Com isso, o realizador virou-se para Hollywood, com resultados desastrosos e sem frutos que apenas lhe causaram danos à reputação. Face a essa mudança radical, Kurosawa juntou-se a outros três cineastas da sua geração – Kon Ichikawa, Masaki Kobayashi e Keisuke Kinoshita –, formando o coletivo “O Clube dos Quatro Mosqueteiros”, como apoio para todos produzirem e conceberem as suas obras de livre vontade e sem dívidas criativas para com uma indústria que lhes colocava entraves.
O primeiro (e último) elemento a ser beneficiado desta cooperação foi o próprio Akira Kurosawa com aquela que seria a sua estreia a cores, algo há muito desejado pelo cineasta, com formação como pintor e cujos elaborados “storyboards” têm sido reconhecidos como pequenas grandes peças de arte. O projeto que concretizaria essa ambição foi “Dodeskaden”, que traduz literalmente uma onomatopeia dos comboios a vapor (“Pouca Terra”). A adaptação de oito dos quinzes contos do livro “Uma Cidade sem Estações”, de Shûgoro Yamamoto, é uma narrativa entrelaçada e coletiva de um bairro de lata, onde o miserabilismo dos seus habitantes ostenta doses de trágico e de mirabolantemente comédia.
O “pouca terra” do título expõe uma imaginária ferrovia na qual um jovem autista convencido que é maquinista de um comboio nos leva, enquanto espectadores, por paragens insólitas de personagens caricatas e pontuadas pelas suas... "anomalias". O regresso será também por via da boleia desta viagem invisível, mas até lá, seguimos as diferentes histórias que cruzam estas “barracas” ou a falta delas, desde as mais hilariantes, como a de um par de amigos que se emborcam em álcool e “acidentalmente” trocam de casa e mulheres, até aos destinos mais nefastos, como a criança-mendiga “morta de fome” a sucumbir aos devaneios do pai, que por vias da imaginação constrói a casa dos seus sonhos.
“Dodeskaden” representa um olhar passivo para esta miséria onde os destinos desafortunados destas personagens nunca adquirem um efeito de honra ou justiça. Akira Kurosawa perdia a sua crença nas altas virtudes da Humanidade, e injustamente, perante a sua estreia "colorida" (as cores berrantes e plastificadas trazem consigo um artificialismo onírico), foi acusado de perpetuar o embelezamento da dor de outrem, de capitalizar e vender como arte a miséria.
Este filme foi o seu grande "fracasso" artístico e comercial a que só o tempo daria dignidade: esta é uma corrente de contos de derrotados, impotentes e conformados com as suas ridículas existências. Não existem aqui as epifanias e legados conquistados de “Viver – Ikiru” ou do senso de dignidade e de justiça dos seus ensaios feudais “Seven Samurai” ou “Yojimbo”, apenas uma passagem lateral por tudo isso.
Depois deste filme, Kurosawa tornou-se um cineasta derrotado, mas as suas "derrotas" traduzir-se-iam em projetos ainda mais gloriosos...
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Espreitar o Ocidente sob a lente oriental foi um dos "modus operandi" de Akira Kurosawa na sua jornada pelo estatuto de “maior dos cineastas japoneses”, como se constata pelos diferentes géneros profundamente americanos que “contaminavam” as suas incursões populares até às inspirações literárias e dramatúrgicas, que iam de Shakespeare a Dostoyevsky e até Tolstoy, de onde origina parte deste “Viver – Ikiru”.
Este filme de 1952 tem como contexto o "boom" socioeconómico do Japão pós-Segunda Guerra Mundial, olhado como a primazia da burocracia, e o impacto que este sistema tinha (e tem) na vida social e pessoal dos seus cidadãos. Fora das bandejas neorrealistas e de foro político-social, “Viver” é a história de um velho funcionário público que de sábio nada tem: Kanji Watanabe (Takashi Shimura, um dos colaboradores recorrentes de Kurosawa) está reduzido a uma mera secretária cujo grande orgulho é o de nunca ter faltado, um dia que seja, ao seu serviço durante 30 anos, mas que altera radicalmente a sua perspetiva de vida após lhe ser diagnosticado um cancro no estômago. A forma como este ancião viúvo encara essa notícia e os dias que lhe restam varia ao longo da narrativa, partindo numa autodestruição entre bebidas, festas e mulheres, para chegar à redenção quando se envolve na conceção e construção de um parque público.
Tal como Kanji Watanabe deambula no pêndulo da sua vida, "Viver" tende a moldar-se conforme a ocasião: começa como uma abordagem emotiva e pessoal, com a voz off que antecipa o seu destino, enquanto uma segunda parte é conduzida por relatos de terceiros que tentam apurar como foram os seus derradeiros momentos (um exercício muito ao estilo do seu anterior e incontornável “Rashomon: Nas Portas do Inferno”). Quanto mais próximo do "kanji", que se traduz por "fim", o filme retrai as suas garras quanto às críticas à própria estrutura burocrática, libertando-se pelo drama humano, nas decisões estéticas de Kurosawa para transmitir o estado de espírito do ancião (a neve adquire um manto poético que cobre a Morte) e o expressivo Takashi Shimura a condensar toda uma vida descartável que debate, em modo de epifania, a sua miserável existência.
"Viver – Ikiru" não é apenas uma obra para se ver, mas sim, ao contrário do que fazia o seu protagonista, para se viver. Se possível, no grande ecrã...
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Entre as grandes obras-primas de Akira Kurosawa, “Yojimbo, o Invencível” é uma ópera minimalista de calculista agressividade. Ainda hoje, é inesquecível a entrada deste Ronin [samurai sem dono] interpretado por Toshirô Mifune no vilarejo sem eira nem beira, fantasmagoricamente recolhido aos seus mais profundos temores. A cada passo, a banda sonora composta por Masaru Satô acompanha-o na cadência de um convite amargo e de longe, um cão rafeiro, trazendo nas suas “bocarras” uma mão amputada, reforça o "ultimato": o aviso foi feito e a partir disto nada será como dantes, nem mesmo para o cinema ocidental.
De um modo geral, Akira Kurosawa voltava a "apropriar-se" do Ocidente para o recitar em vestes orientais e a seguir resultar um "manual de influências": se “Seven Samurai” se tornou um dos filmes mais relembrados e imitados nas odes da ação e aventura, “Yojimbo”, de menor escala, viria assumir-se como o ingrediente fulcral para o western spaghetti, quando foi "roubado", palavras do próprio mestre japonês, pelo realizador italiano Sergio Leone no seu “For Few Dollars” (1964), que definiria a estrutura das produções italianas baratas que repescavam os elementos do western americano com ventos da glória e discursos de patriotismo e lhe incutiam um teor selvagem, sangrento, sujo e imoral.
Admirador convicto do classicismo idiossincrático de John Ford e das suas “coboiadas”, o cineasta japonês engrena um duelo por entre a poeira e o sol nascente, recorrendo a uma desconhecida figura errante que paira numa cidade marcada pela violência e corrupção. Esta é uma lavagem ambígua da jornada heroica do cinema americano, dos pistoleiros de honra sempre “guiados” das boas morais segundo as condutas de Hollywood. Aqui, o que resta de John Ford é despojado num sangrento conto de um anti-herói sem passado que aplica a sua justiça com estratagemas duvidosos sobre malfeitores para receber várias recompensas.
Por outras palavras, “Yojimbo” é uma busca pela essência do "jidai-geki", o subgénero de filme de samurais, com a temperatura reconhecida dos "westerns fordianos", despidos e encorajados numa crítica de "pescadinha de rabo na boca" aos seus alvos fílmicos (a constante presença do revólver nas mãos de um dos seus adversários é exemplo desse olhar inquisidor). Aqui, Mifune compõe um personagem que o espectador pouco ou nada sabe para confiar nos seus questionáveis feitos heróicos.
Mais tarde, Kurosawa revelaria que as veias do cinema "noir" inspiraram a criação deste “yojimbo” [guarda-costas], sobretudo pelo cinzentismo das suas vontades, pensamentos e a sua função na história, citando como exemplo "The Glass Key”, de Stuart Heisler (1942). E embora não seja correto afirmar que a personagem sem-nome de Mifune seja um dos primeiros anti-heróis no cinema, não é delírio vê-lo como um dos modelos principais para outros que apareceram a seguir e é reciclado até hoje num cinema mais cínico e sem fé em heróis à americana.
Uma curiosidade: "Yojimbo, o Invencível" foi o maior sucesso de Akira Kurosawa no seu país, que faria logo no ano a seguir a sequela “Sanjuro”, que alteraria para sempre o próprio subgénero "jidai-geki" e a forma de encararmos as fatalidades no universo dos samurais.
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Yojimbo (Akira Kurosawa, 1961)
Wild at Heart (David Lynch, 1990)
Island of the Evil Spirits (Masahiro Shinoda, 1981)
Eurotrip (Jeff Schaffer & Alec Berg, 2004)
The New York Ripper (Lucio Fulci, 1982)
Female Prisoner Scorpion: Beast Stable (Shun'ya Itô, 1973)
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