Trio de Odemira (XXI)
Elia Suleiman, Abbas Kiarostami e Aki Kaurismäki (2007)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Elia Suleiman, Abbas Kiarostami e Aki Kaurismäki (2007)
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… era uma vez, um episódio verídico …
Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?
Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social.
#10) The Teachers’ Lounge
“Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica
#09) Bowling Saturne
“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica
#08) Evil Does Not Exist
“Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica
#07) Megalopolis
“Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica
#06) La Chimera
“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica
#05) Ryuichi Sakamoto / Opus
“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica
#04) Joker: Folie à Deux
“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica
#03) All we Imagine as Light
“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica
#02) Fallen Leaves
“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica
#01) C'est pas moi
““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica
Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra
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Aki Kaurismäki reflete, como sempre refletiu, sobre a nossa atualidade, sem com isto reduzir-se a um produto do seu tempo, aliás, este mantêm-se “congelado” na sua estética reconfortante e nos “bonecos” kaurismakianos. “Fallen Leaves” é um prolongamento da sua chamada “trilogia do operário” (“Shadow in Paradise”, “Ariel” e “The Match Factory”), inserindo-se num universo que nos chega por via de um abraço em estes nefastos períodos de pós-verdade e de apatia extrema. Não se pode referir aqui um filme transgressor, ou a marcante manobra de viragem no gesto contínuo do autor finalndês, mas é nessa estabilidade que deparamos uma essência demarcada a uma fuga, de uma alternativa sugerida por via de um optimismo contagiante, sem com isto revelar-se barato e deveras sentimental. Aliás, os tais “bonecos” referidos não nos motiva a isso, e por outro lado nos súplica à nossa empatia.
Comecemos, como sempre começamos, um “when a boys meet a girl”, ele (Jussi Vatanen), operário, esse sim, transgressor das regras impostas; fuma ou não se deve, bebe quando o seu corpo pede, e deixa-se consumir por uma melancolia autodestrutiva [“histeria ártica”, mas já lá vamos]. Enquanto, ela (Alma Pöysti), ‘menina’ de bom coração, cujas intenções, por mais douradas sejam, são incompatíveis para com o seu mundo em questão, e como anterior operadora de supermercado, é despedida através de um ato de beneficência. Quando, ao invés de lançar como ordenado comida com prazos expirados mas de consumo ainda viável, carenciou alguém com dificuldades que por perto pedia auxílio. A sua empatia levou ao seu despedimento, não se pode desafiar as “leis sagradas” do capitalismo feroz. Em casa, procura comoção através da rádio, esta surge “contaminada” com relatos de guerra, seja Ucrânia ou conflito sírio, mortes e desumanidade é o que se ouve. Não são doces as palavras saídas do transmissor, muda-se de estação, eis que surge uma “canção de amor” para reconfortar “corações”.
Coincidentemente, é na música que o destino uniu estes dois indivíduos, num karaoke para sermos precisos, noite de olhares e mais tarde, convites tímidos, uma ida ao café e a sugestão de cinema. O sorriso acresce no seu rosto após ouvir esta proposta, contrariando a sua expressão seguinte, a de mera indiferença ao filme projetado na grande tela. Nós cinéfilos reconhecemos - “The Dead Don’t Die” (2019) de Jim Jarmusch - uma sátira sobre zombies e que mesmo assim continuam lá, os zombies, tripas e sangue, na tela, ou na plateia, como na realidade que os suporta. À saída, ela confessa que nunca se rira tanto na vida, nós não o vimos, mas não interessa, o riso dela é especial, algo privado, não somos dignos de o presenciar. Se preferirmos, ao lado temos dois cinéfilos “saidinhos da casca”, fazem comparações entre Bresson e Godard, o trajeto é comprido, fazem um outro filme nas suas cabeças eruditas, é outra sátira, até porque Kaurismäki não é idiota nenhum, é atento à espuma dos dias e à saliva das tendências cinéfilas. Aqui, o cinema, o carinho e o local de (re)encontro, o que mais podemos desejar de um filme rodeado de violência? Pois, a violência, que apesar de invisível, é escutada (melhor relatada), há uma aura que paira no ar, e que desgosta tudo e todos, e que mesmo assim banaliza-se, vira mundano, uma parte da fatalidade com que as nossas vidas se reduziram.
“Fallen Leaves” aponta para o abandono da depressão e soluciona-se com suplementos a essa realidade: ele ‘despacha’ o livro de Marko Tapio, “Arktinen Hysteria” [“Histeria Ártica”, eis o prometido, sobre um estado mental melancólico, comumente atribuído a esquimós, mas expandidos a habitantes do Norte], oferece ao amigo com as promessas de que este seja convertido numa história de embalar para crianças, ou da leitura de Superman, primeira edição atenção, como distração aos conflitos bélicos em países não tão distantes (“Waiting for Superman”, ou neste caso, requere-se).
Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.
Portanto, saímos nós da sala, deixemos estes "bonecos" serem devidamente felizes, "agarrando-se" às suas imperfeições, às suas lógicas, às suas devoções. Felizes sós, felizes juntos.
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Kaurismäki não inventa a roda, aliás, no seu cinema não existe mais nenhuma roda para ser inventada ou reinventada, é cinema confortável, porém, daqueles que nos faz falta, que nos fala do Mundo atual sem os tratar por "tu". No fundo, tanta violência ao nosso redor, que somos obrigados a manter-nos nos nossos próprios "fortes".
Que filme mais esperançoso para terminar o ano!
"Fallen Leaves" chega aos cinemas portugueses a dia 11 de janeiro
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Tentei entender o porquê de Aki Kaurismäki ser dos melhores cineastas contemporâneos a abordar a crise migratória na Europa, a resposta parece ter sido encontrada no seu pragmatismo, seja formal, seja performativo, e na igual maneira com que o realizador secundariza os trajetos das suas personagens, estas, não motivadas pelos seus desejos, mas sim pelo senso de oportunidade.
Exemplifico com um dos filmes considerados menores da sua carreira - “Shadows in Paradise” (1986) - e faço através de duas sequências, algo naives ou puramente fúteis (assim parecem) deste enredo secular de “boys meets girl / girl meets boy”. A primeira, tendo com a nossa “girl”, Kati Outinen, dirigindo-se a uma residencial a fim de pernoitar a noite. O recepcionista é nada mais, nada menos que um peculiar Kaurismäki de cigarro na mão, que após lhe informar sobre as condições do quarto, acrescenta em tom de de rodapé que o estabelecimento encontra-se lotado. “Porquê que não disse isso logo”, lhe dirige furiosamente Outinen (apesar de nem notar com a sua interpretação kaurismakiana), rompendo a cena e partindo para o apartamento de Matti Pellonpää, o nosso “boy” Nikander, o protagonista, o “homem do lixo” com sonhos falados em inglês (dessa maneira servem as suas aulas linguísticas, preparação para um eventual exodus).
A narrativa prossegue, o casal ali formado, e convém sublinhar, plenamente desinteressado em romances ‘bacocos’ ou satisfações pessoais, parte para um prometido jantar romântico num restaurante de alto-gabarito, à porta do mesmo, a comité de boas-vindas informa sobre a indisponibilidade das mesas. Como alternativa de última hora, a dupla faz de uma rulote o improvisado "bagulho do amor”. A vida é curta, ressente-se na canção que ecoa a poucos segundos da entrada dos créditos finais, nesse momento, o “homem-do-lixo” e a “loira enfadada”, partem num cruzeiro para a Tailândia, sem preparativos, nem planeamentos. O mar sempre esteve na mirada deles, a praia converteu-se neste conto à la Kaurismäki no motivador pouco casual do seu alienado romance.
Aquela vida, na Finlândia cinzenta, não lhes serve de maneira alguma, são seres deslocados, desesperadamente evadidos do seu território, e da outra margem oceânica, hipoteticamente falando, imaginam o que poderá ser o outro lado da esperança. Kaurismäki, hoje residente em Portugal, sempre se sentiu atraído pelo horizonte fora em busca de outros sonhos, porém, são as alternativas que o verdadeiramente preenchem. Em matéria de “refugiados”, partindo por desespero ou em esperança, algo melhor que os trará, uma ilusão, ou antes uma desilusão, apenas apaziguada com a secundarização das suas vidas. Não existe nada de “fancy” no cinema de Kaurismäki, apenas o aceitável no irremediável. Plano B aqui vamos nós!
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Le Havre (Aki Kaurismäki, 2011)
O ano de 2022 não está a ser particularmente fácil para a memória cinéfila. André Wilms deixou-nos, ator francês que entendemos ser mais do que isso, um ator europeu, uma “face” sem fronteiras, foi um dos santos padroeiros do finlandês Aki Kaurismäki que tão bem condensou essa transcendência, fazendo-o protagonista da não-conclusiva “trilogia portuária”. Havia um gosto de vê-lo enquanto entusiasta das gerações que o procediam. Pena que o seu último filme tenha sido o “Le Sel des Larmes” de Garrel, mas ao menos, proferiu numa tirada, subtil e figurativa, traduzir todo o cinema do “bloqueado francês” em mobília. “Em questão de mobília [substituir por cinema], já tudo foi inventado.” Velho sábio, este Wilms.
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Centro Histórico resulta como mais um "filho" do Programa Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura (o outro foi 3x3D, que reunia Peter Greenaway, Jean-Luc Godard e Edgar Pêra), e um dos principais espelhos do seu intuito primário, o invocar das "histórias que a cidade tem para contar". Neste filme coletivo foram reunidos quatro realizadores, os portugueses Pedro Costa e Manoel De Oliveira, o finlandês Aki Kaurismaki e o espanhol Victor Erice, todos eles debruçando os seus estilos narrativos na cidade "génese" de Portugal, uma experiência sob tubo de ensaio cénico.
Assim começamos com o segmento "O Tasqueiro" de Kaurismaki, um exercício de humor melancólico tão próprio do autor que nos remete a um taberneiro com problemas de iniciativa. O realizador de Le Havre consegue em pequeno tempo de antena invocar um espírito lusitano abalado pela austeridade, que não se encontra presente no cenário exposto mas na inerência das suas personagens. Que tão bem que os “bonecos” produzidos por Kaurismaki ficam na realidade portuguesa do século XX!
Pedro Costa é o primeiro português a entrar em cena com “Sweet Exorcist”, um segmento que afasta-se claramente do contexto do projeto, mas que aproxima à marca do tão prestigiado autor. É, como o título indica, um exorcismo recorrente a espíritos malévolos, estes oriundos de um passado não tão distante, a Guerra Colonial. Ventura (ator-personagem fetiche dos últimos devaneios de Costa) defronta essas assombrações que o vão cercando numa perpétua claustrofobia: "viveste muitas mortes Ventura".
Já no terceiro tomo, “Vidros Partidos”, o espanhol Victor Erice centra-se nas memórias de uma fábrica ao abandono, os fantasmas divagam por entre os quadrantes deste realizador "medium", que comunica com os espíritos por quem o tempo abandonou. Assim, Manoel de Oliveira, o nosso português mais que tudo na cinematografia lusitana, tem a honra de fechar o Centro Histórico com a piada turística sob a coordenação do seu neto e ator-fetiche Ricardo Trêpa, “O Conquistador Conquistado”, repensando na cidade-mãe como a atual subjugadora de um longo negócio chamado turismo. E é através do monumento em honra do seu padroeiro - D. Afonso Henriques – que chegamos à genésis de um país que irá viver "muitas mortas" (citando o trecho de Costa).
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