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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2022, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 28.12.22

Em 2022 pude constatar a queda anunciada do cinema norte-americano, por mais que se tente rechear as nossas salas comerciais com produções à lá Hollywood, pouco ou nada saem deles para além de fórmulas, refilmagens sob selos de novidades, produtos direcionados ao streaming e super-heróis com fartura (demonstrando a sua regra equacional a servirem para universos partilhados).

Num ano em que “Avatar” chega com a soberba atitude de experiência de sala, um “Top Gun”, outra aguardada sequela, abre caminho por via do físico a possibilidade sensorial em sala, isto num ano em que a Academia decidiu promover um filme de streaming (“CODA”, que num estalar de dedos caiu no esquecimento). Se existe filme de Hollywood a merecer destaque neste ano, então Maverick e Tom Cruise (de difícil desassociação) levam a medalha. Porém, também foi o ano em que Michelle Yeoh pode finalmente brilhar nas terra-yankee graças ao frenesim entre o parvo e de genial que fora “Everything Everywhere All at Once” de Dan Kwan e Daniel Scheinert, ou das memórias cinéfilas de Spielberg em “The Fabelmans”, ou do terror de mãos dadas para com o seu legado cinematográfico - “Nope”, de Jordan Peele e “X” de Ti West

Mas este 2022 a congregação de 10 filmes foram para mim difíceis, o que automaticamente me deixa agradado com o turbilhão de novas vozes e novos movimentos que florescem por este Mundo fora, do Japão ao Irão, da França à Suíça, da Noruega ao México, da Coreia do Sul a Portugal. E falando em território nacional, destaco 12 meses recheadas em variadas e diversificadas produções; o rural novamente motor de inspiração ("Alma Viva”, “Restos do Vento), um João Botelho livre e fluido (“Um Filme em Forma de Assim”) e uma surpresa na realização (“Revolta”), já em temática de festivais [ainda sem estreia comercial], as questões identitárias e geracionais com deslumbre encanto ("Périphérique Nord”, “Super Natural”, "Frágil", “A Visita e um Jardim Secreto”, “O Que Podem as Palavras"), mas apesar desse leque de possibilidades, a minha escolha nacional cedeu à melancolia, à incerteza, ao fim da juventude retratado no misterioso “28 ½” de Adriano Mendes

Segue os dez filmes do ano, segundo o Cinematograficamente Falando e respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) 28 ½

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“Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo.” Ler crítica

 

#09) La Civil

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“Por entre guerras de cartéis, Mihai espelha uma descida infernal de uma “inocente”, um mero dano colateral, que cuja contaminação com este ambiente a transforma numa espécie de impiedoso anjo da vingança. Tudo isto lido entrelinhas, de câmara à mão, orbitando de volta à ação e sugerindo mais do que expondo. “La Civil” escapa dos lugares-comuns pela sua imposição de poder, descortinando as vozes silenciadas de uma disputa moral.” Ler crítica

 

#08) A Hero

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“Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.” Ler crítica

 

#07) In Front of your Face

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“E aí está o trunfo deste enésimo filme, um Hong Sang-soo amadurecido, elegante e delicado na sua estética (sem com isso ceder a “makeovers” radicais), que nos fala sobre vida, morte e promessas vencidas e embebidas em álcool, por sua vez de “pinga envelhecida", sem nunca descrer da sensibilidade desses mesmos temas, com quem encara o encerramento já visível do outro lado da esquina. Deste lado o cético que testemunhou um milagre, pequeno mas que basta, num cinema que sempre fora mais preocupado em alimentar o seu culto do que verdadeiramente interrogar as suas próprias emoções.” Ler crítica

 

#06) Onoda, 10 000 nuits dans la jungle

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O Cinema é também memória, não em jeito memorialista e intimista, mas antes de uma lembrança do que esta arte foi e do percurso percorrido até à sua presente forma. Embora “Onoda” seja uma produção atual, é um filme hoje impraticável pelas mais diferentes razões. Não se trata de resumir ou mencionar gestos de outros e de distantes tempos, Arthur Harari persiste numa vinheta histórica para aludir ao “coração das trevas”, abraçando a selva como a mais eterna inimiga dos Homens. Tropicalismo? Exotismo? Nada disso, esta floresta que albergará os últimos resíduo de uma Guerra desvanecida assume-se como uma armadilha, um labiríntico cativeiro, onde o tempo estagnou num cruel sigilo e a carne está predestinada à sua regressão natural. Harari cumpriu, onde muitos falharam, o de trazer de volta um Cinema físico, protetor da sua herança e com ela a possibilidade de avançar “mato a dentro”. 

 

#05) Azor 

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““Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital.” Ler entrevista ao realizador

 

#04) Un Monde

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“Não olhemos para as crianças como um poço de inocência, mas antes como “peregrinos” que desbravam “novos mundo”, claramente “novos” diante dos seus respectivos olhos, e é esse “mundo, a palavra transportada do título original (“Un Monde”) que Laura Wandel concretiza um tratado experiencial num biótopo a nós familiar, e igualmente distante.” Ler entrevista com a realizadora

 

#03) Vortex

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O tempo destrói tudo”. Gaspar Noé "pavoneou" esse lema ao longo da sua filmografia, todas elas indiciadas no ato de provocar. Enfim, o tempo ameaçou destruir, até porque Noé, perante uma  hemorragia cerebral que o quase levou às “portas da morte”, desliga-se dos aspectos xamânicos e místicos, ou da crueldade exaltante em ira, que testemunhamos nos seus filme para se partir numa claustrofobia formal e existencial. Protagonizado por Dario Argento, demonstrando-se decadência física (ontem, um “maestro” do terror, hoje, uma vítima do terror pendular da sua expirável “carcaça”), “Vortex” veste-se de negrume desumano, discreto, e acutilante a um quotidiano vencido, corpos arrastam-se e mentes dilaceram perante o voraz apetite do tempo. Em jeito de “split-screen”, amantes que depois do seu coro distanciam, mais e mais, até que os vestígios do seu último sopro temporariamente instalam-se nos lençóis usados. Morte, fim, nada de digno, nada de romântico, Gaspar Noé parece saber do que fala.

 

#02) The Worst Person in the World

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The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. Ler crítica

 

#01) Drive My Car

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“Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.” Ler Texto

 

Outras menções: Everything Everywhere All at Once, Nope, Top Gun: Maverick, Memory Box, Flee, The Girl and the Spider

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

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"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

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"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Um brinde! Porque "28 ½" não é para todos

Hugo Gomes, 15.02.22

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Ninguém se esquece do primeiro verão, do primeiro beijo, do amor estival do qual se cria expetativas de longo prazo (ou sem prazo algum), nem mesmo do olhar juvenil, cheio de positivismo e cor, que, sem culpa alguma, possuímos. “O futuro será brilhante”, é desta forma que o nosso consciente, ingénuo e enganado, nos prende a um corpo passageiro. 

O Primeiro Verão", acima do trabalho hercúleo de Adriano Mendes (realizador, argumentista, ator, editor, diretor de fotografia e editor de som), é um filme sobre isso mesmo, desse otimismo que inocentemente abraçamos, que nos levam a crer em juras amorosas para esta eternidade e mais um dia ou da mera imortalidade. Nada é decadente, tudo é estático. Até que, alguém (ou alguma coisa) provou com diferença a Mendes, ou talvez tenha sido a própria Vida (colocamos maiúsculas para salientar a sua entidade), e todas as mudanças que isso acarreta. Logo, o sol brilhante, os constantes risos e brilhos no olhar que bem testemunhamos em “O Primeiro Verão” são substituídos pela soturnez de “28 ½”, e essa mudança drástica (apesar do hiato de seis anos entre a primeira longa e este novo filme [estreado no Indielisboa de 2020], sentíamos as saudades daquele mundo) é exercitada na figura de Anabela Caetano (a protagonistas das duas histórias que tão bem poderiam ser a mesma pessoa). 

Sim, a anterior razão de vida de Adriano Mendes na obra inaugural é o impasse melancólico nesta nova estância, uma jovem cujo título revela a sua idade [mais próxima dos 30 do que dos 20], e tal como muitos jovens que deixaram há muito de serem jovens (perdendo o estatuto de promessa), é confrontada com o cinzentismo daquela vida pós-objetivos, pós-sonhos, pós-fantasias e pós-romances idealizados. O que fazer? Sorrir, talvez por indiferença ou talvez por defesa, num longo jantar de convívio, aquele exato momento que poderia ser uma troca cultural é antes um desafio à sua atuação social - “sermos os melhores anfitriões possíveis e nunca exibir as nossas frustrações perante os outros." 

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Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo. 

Esses sentimentos, meus amigos, são apenas sinais. Sinais de que chegamos à “próxima paragem”, à fase adulta, ao início da maturidade que muitos esperam que atinjamos. Mesmo assim, é na maturação que “28 ½” afasta-se, a passos largos, de “O Primeiro Verão”. Adriano Mendes já não acredita em “encenações em frente ao espelho”, ao invés disso, acredita que tudo é passageiro, incluindo a nossa existência.

Já falta pouco para os 30 ...

Hugo Gomes, 05.09.20

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Em 2014, Adriano Mendes estreava na secção Novíssimos um pequeno e genuíno filme chamado “O Primeiro Verão”. Realizador, argumentista, protagonista, editor de som, um trabalho hercúleo que resumiu numa experiência estival de paixões e afetos tecidos pela atriz Anabela Caetano. Seis anos depois, regressa ao Indielisboa com uma segunda longa-metragem, mais madura e isenta do positivismo jovial. Em "28 1⁄2", Anabela Caetano não é mais a doce razão de sorrir de Adriano Mendes, é antes disso uma jovem no limiar da sua juventude, tendo de resistir às adversidades do qual nunca esteve preparada. Um filme na porta da maturidade, um ensaio de defraudações cujo sorriso é uma mera miragem. O mundo é impiedoso, bem nós sabemos, e Adriano Mendes parece saborear isso mesmo, essa crueldade silenciosa.

E agora? O que vem depois do "Primeiro Verão"? Em conversa, Adriano Mendes vive os seus "28 ½"

Hugo Gomes, 03.09.20

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Aconteceu em 2014, na secção Novíssimos onde foi nos apresentado um curioso filme intitulado de “O Primeiro Verão”, um fruto de amores passageiros erguido com uma dedicação quase hercúlea por parte do seu assinante Adriano Mendes; realizador, argumentista, protagonista, editor, diretor de fotografia e responsável pela edição de som.

No ano seguinte, a produção concretizou uma estreia comercial, algo tímida diga-se por passagem. A partir daí, pouco ouvimos falar de Adriano Mendes. Por onde andava o árduo apaixonado por cinema?

A resposta surge quatro anos depois no mesmo espaço que o apresentou ao “mundo”. Mais maduro e com direito a lugar cativo e especial na programação da 17ª edição do Indielisboa, Adriano Mendes apresentará “28½”, nesta sexta-feira (04/09, pelas 18h45 no Grande Auditório da Culturgest), uma invocação de uma juventude enganada por promessas e consequentemente disso, vivendo num impasse existencial. Ainda retornando a este universo, junta-se a atriz Anabela Caetano, a “menina” de admiração de “O Primeiro Verão” converte-se na jovem mulher que desejamos “resgatar”.

Conversei com o realizador sobre o seu novo projeto, o regresso há muito solicitado e o processo criativo do mesmo.

Com a ‘óbvia’ questão de “como surgiu/nasceu este projeto?”, gostaria de complementar, visto que “O Primeiro Verão” data de 2014, qual foi o seu paradeiro/projetos neste hiato de 6 anos? E tendo em conta que “O Primeiro Verão” foi duplamente premiado no IndieLisboa desse ano, que dificuldades enfrentou nesta sua passagem da primeira longa-metragem até à segunda?

A ideia base para o projeto "28 1⁄2" surgiu em 2014. De forma resumida, partiu da vontade de criar um filme na cidade, que explorasse o caminho para os trinta anos de idade e tendo presente a relação entre essa idade e uma geração mais nova. Foi sendo desenvolvido a partir de ideias com as quais me cruzei, coisas que vivi, outras que me contaram. E, a realidade, a ficção e o tempo permitiram edificar cada peça, num processo de muita paciência e perseverança.

Os dois filmes foram construídos com um enorme acumular de funções, em que estive sempre presente nas diferentes frentes. Isso fez com que os processos fossem morosos, mas em que a liberdade criativa é total.

Em paralelo, trabalhei como assistente de montagem de som no filme “Montanha” de João Salaviza e na pós-produção de som do documentário “Turno do Dia” de Pedro Florêncio. Além disso, trabalhei em videoclipes e vídeos institucionais.

Felizmente, este projeto teve apoio do ICA à finalização, que foi essencial para conseguirmos entrar em pós-produção. Todas as pessoas e instituições que colaboraram na pré-produção e produção fizeram-no de forma totalmente graciosa. A diferença entre o primeiro e o segundo filme é que, sobretudo para comunicar com as instituições que nos apoiaram, já tínhamos um filme para apresentar e isso ajudou a que a colaboração se concretizasse.

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Anabela Caetano

De resto, as dificuldades parecem sempre gigantes, desde a primeira curta-metragem que fiz quando era criança até esta segunda longa-metragem. Sinto a dificuldade como fator inerente ao processo criativo. A sobrevivência, essa sim, afasta-me às vezes desse centro criativo, mas tenho aceitado cada passo com enorme gratidão.

De “O Primeiro Verão” a “28½”, pude constatar, não só uma evolução técnica e criativa, mas como uma alteração na sua visão quanto ao percurso das suas personagens. Na sua primeira longa, existiu uma certa ingenuidade, otimismo e positivismo como lidava com o quotidiano, materializado num ‘amor de verão’. Aqui, há uma angústia constante, uma precariedade de sonhos, principalmente na protagonista desamparada que lida com uma juventude a passo de corrida. Sentiu essa mudança em si, no referido hiato de 6 anos?

Enquanto autor, a ideia para a construção de filme passa pela escolha de um caminho que me interessa explorar. Em “O Primeiro Verão” pretendi aceder ao momento da paixão. As personagens e os momentos foram criados em torno dessa viagem de início de uma relação entre duas pessoas que não se conhecem e que passam a ser íntimas. No “28½”, a escolha foi situar a personagem principal num momento da vida em que parece ser difícil agarrar-se verdadeiramente a alguma coisa. Um intervalo. Nenhum dos dois filmes são um espelho da minha vida, embora faça por conterem as minhas sensações e impressões do mundo, aquilo que me inquieta e que me interessa. Sendo um filme de autor, e tendo a vontade de me aproximar profundamente das pessoas/personagens, parece-me natural que se sinta uma ligação direta com a minha vida.

Quanto à Anabela Caetano, esta sua relação com a atriz e o processo de trabalho dela orientado pelo realizador. Comento que entre “O Primeiro Verão” e neste seu “28½” existe uma clara maturação de Anabela enquanto atriz, é mais evidente durante este filme.

No primeiro filme aprendemos muito sobre como pode funcionar a nossa dinâmica de trabalho. Nos dois projetos foi um processo muito colaborativo. Neste segundo filme decidi trabalhar outra energia da personagem, outra forma de estar na vida. A Anabela apropriou-se disso e tornou-se tangível.

Sobre o título "28 1⁄2", da minha parte senti uma espécie de alusão ao 8½, de Federico Fellini.

Para além da rima gráfica e fonética entre “” e “28½”, as ligações podem ser tantas como em qualquer outro par de filmes que, à partida, nada parecem ter em comum. O título surgiu no final da rodagem e depois de uma primeira montagem. Consciente do peso desta escolha, decidi arriscar por servir aquilo que nos pareceu justo para o título.

Como nasceu aquela sequência do comboio (experiências próprias, ideias, etc.) e porquê contextualizá-la no filme?

A cena emerge no filme como as coisas inesperadas nos aparecem na vida. A ideia base surgiu a partir de um conjunto de vivências próprias. A cena em si, foi uma construção muito morosa, muito trabalhada e debatida desde a fase de pré-produção até à mesa de montagem.

Gosto muito de me desafiar e de desafiar o espectador. A minha intenção não é ser politicamente correto, embora sinta que tenho alguns pilares éticos que me levaram a ter força para desenvolver a cena, tendo consciência das portas que estou a abrir. Parece-me muito importante despertar, colocar questões, inquietar. No cinema, não pretendo dispor o mundo em gavetas. Essa sequência é representativa dessa vontade.

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Adriano Mendes

Nesta sua segunda longa-metragem, decidiu não ‘entrar’ enquanto ator.

Penso que nunca foi uma questão, foi claro e intuitivo dado o que se pretendia trabalhar e a forma como queria encarar o filme.

Como aborda o cinema português atual? Como este se prepara nos tempos austeros que se avizinha, segundo as premonições? Novos projetos e previsões para a carreira deste filme?

Em relação ao cinema feito em Portugal, gostava muito que fosse possível dar mais espaço ao cinema dito de autor. Tanto na educação cinematográfica, como na criação, na distribuição, etc. Gostava também que os concursos das entidades financiadoras e as entrelinhas estatais fossem mais abertos às diferentes formas de fazer cinema.

Previsões não tenho. Vamos continuar a trabalhar para que este filme possa ser visto. Neste momento temos um novo projeto a nascer e será esse o meu foco de trabalho nos próximos anos.

Paixonetas, vivências e outros afins

Hugo Gomes, 26.04.14

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O Primeiro Verão” é curiosamente a primeira longa-metragem de Adriano Mendes, um verdadeiro polivalente no ramo, já que para além de realizador é ainda o argumentista, um dos protagonistas e até mesmo o compositor da banda sonora. Para além disso, devo salientar o trabalho conjunto de uma equipa preparada para tudo, para empregar qualquer tarefa dentro da produção de um filme. Talvez seja isso que o cinema português merece – boa vontade e claro, bom material para trabalhar.

Quanto ao filme propriamente dito, é verdade que temos aqui uma obra nervosa em atingir o seu território, não conseguindo evitar as suas fragilidades e limitações. Em “O Primeiro Verão” podemos enumerar alguns riscos, mas acima de tudo alguns indícios de cinema e mais, uma forma de manusear tais indícios. Tal como o título indica, “O Primeiro Verão” decorre inteiramente nessa mesma estação do ano. O filme acompanha Isabel (Anabela Caetano), uma jovem adulta da Sertã que durante uma aula de condução conhece Miguel (Adriano Mendes) e que a partir daí nasce uma bela amizade entre eles que instantaneamente se converte num romance conturbado pelo processo “coming-of-age”.

Trata-se de uma obra naturalista, narrativamente lenta e de espírito contemplativo. Porém, é nos seus planos limitados e fechados que encontramos o seu teor, ou seja, o de lançar o espectador ao efeito de sugestão. Adriano Mendes não transforma tal história em mais um conto adolescente, ao invés, transcreve memórias sob espaços brancos. Espaços esses, sendo aquilo que a câmara não “apanha” e que o espectador preenche com a sua própria reminiscência. Para todos os efeitos esta é uma obra adequada para o confronto emocional com as memórias passadas, uma adolescência já consumida por parte dos mais velhos. Quanto aqueles que vivem à flor da idade, este é um reflexo do seu quotidiano sem efeitos novelescos.

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Nos desempenhos destaca-se a naturalidade das personagens secundárias (muitos deles “não-atores”), a conduta da jovem Anabela Caetano e o cão, a verdadeira essência dramática de um filme que possui um conflito demasiado tardio. Contudo, é nesse retardamento da ênfase dramática que consiste a grande fragilidade do "O Primeiro Verão" que, como resultado, cai sob um moroso processo de contemplação até conseguir por fim atingir os seus fins.

Ainda assim, e como primeira obra de longa duração, Adriano Mendes consegue algo que pode ser descrito como uma experiência, uma lembrança abundante sob a forma cinematográfica. Um filme que verdadeiramente nos remete ao fim da adolescência como muitos bem conhecem.