A última continência a Rambo
Podemos obrigar um "Rambo" a reformar-se? Será possível, após tanto investimento para produzir a mais perfeita arma de guerra para, solicitar no final o seu afastamento, como uma peça descartável num mundo que já não lhe pertence?
Em 1982 e pegando nos ecos da Guerra do Vietname e nas feridas ainda por sarar numa nação orgulhosa, surgiu um improvável símbolo antissistema e sobretudo anti-bélico - John Rambo - interpretado por um Sylvester Stallone já consagrado como Rocky Balboa: um estranho à deriva num país que já não reconhece e, pior de tudo, não o reconhece. Dirigido por Ted Kotcheff e inspirado no livro David Morrell, “The First Blood” constituiu num improvável sucesso que o encaminhou por trilhos que não era suposto ter seguido. Stallone, durante um colóquio especial na 72ª edição do Festival de Cannes, referiu que a personagem não se integrava concretamente em nenhum lado político, apenas representava as repercussões que o conflito do Vietname tivera nos EUA, sentindo-se por isso embaraçado pela declaração assertiva do então presidente Ronald Reagan de que John Rambo era republicano.
É através desse equívoco que o sucesso do primeiro filme se transformou numa trilogia em que a personagem foi imposta como um protótipo heroico que reúne as melhores qualidades norte-americanas (vale a pena referir que até foi produzida mesmo uma série de animação dirigida aos mais novos). Passados 20 anos desde a última missão (aquela em que John Rambo defendia os talibans perante as forças soviéticas!) e após a ressurreição de outra das suas icónicas "personas" - Rocky Balboa - num homónimo filme que fazia jus ao seu legado, Stallone regressou ao veterano com "John Rambo" (foi esse o título oficial), que, apesar do seu agressivo maniqueísmo, se aproximava da fonte original, apresentando um envelhecido ex-militar na esfera dos conflitos armados na Birmânia (Myanmar).
Mas a história do veterano, afinal, não acabou ali: John Rambo mudou-se da Tailândia para o rancho da família em plena terra natal, a poucos quilómetros da fronteira mexicana. E os fantasmas das guerras passadas continuam a assombrá-lo, acabando por vir ao de cima após a tragédia chegar ao seu território. É fácil encontrar em “Rambo: The Last Blood”, a aplicação do dilema de uma máquina de matar que nunca descansa perante um “caldeirão em ebulição”. E tal como o quarto filme, é o festim macabro e direto como aditivo da ação que se sobrepõe ao enredo anorético. Apenas o olhar descontroladamente raivoso de Stallone nos leva aos esperados picos de loucura pós-Vietname.
Infelizmente, John Rambo continua vítima do equívoco perpetuado por Reagan: as suas cicatrizes são confundidas com atos patrióticos e a semiótica faz das suas quando o vemos “massacrar” mexicanos de cartéis (os “bad hombres” que Trump cita constantemente). Isto não quer dizer que o quinto filme seja uma declaração pró-Trump, mas é um maniqueísmo sem esforço que entra em confronto com os tempos que correm, numa altura em que, por exemplo, “Sicario”, não nos sai da cabeça. O final é exemplo disso, traindo-se a si mesmo, depositando o coração na literalidade dos mortíferos gestos, que não são mais do que epifanias de uma nação em perfeita luta contra o resto do mundo.
A tudo isto junta-se a realização desinspirada de Adrian Grunberg (“Get me the Gringo”), que converte esta produção em algo desajeitado e demasiado fechado (há algo de claustrofóbico neste México filmado quase inteiramente em planos fechados). “Rambo: A Última Batalha” é costurado em tecidos da década de 80, numa ação sem pretensões e longe das reflexões inerentes ao patriotismo. Tendo em conta o cinema de hoje, é pena que tenhamos que nos contentar com tão pouco. Ver Rambo a ser somente a aniquilação fabricada pelo Estado norte-americano é reduzir todo um legado a nada. Fica a continência... seguida pela retirada.