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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

As aventuras do suiço na Lisboa, menina e branca

Hugo Gomes, 12.09.22

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O ator Bruno Ganz, o assistente de câmara José António Loureiro, o diretor de fotografia Acácio de Almeida e Alain Tanner, durante a rodagem de "Dans la Ville Blanche" / "A Cidade Branca" (1983)

Não! Não vou esquecer de trabalhos como “La Salamandre”, “Jonas qui aura 25 ans en l’an 2000” ou “Une Flamme dans mon coeur”. Não se pode negar a sua importância em atribuir uma alma a uma cinematografia, até então, praticamente inexistente [cinema suiço, e o prefixo de “novo”], nem sequer da forma como nós, cinéfilos, o ignoramos em recentes anos [“mea culpa”]. Não posso sequer esquecer desses seus trilhos, porém, não consigo deixar de ser levado pelas ruas de Lisboa, pela colina banhada pelo Rio Tejo e do marinheiro que se sentiu encantado pela sereia lusitana sempre que se menciona o nome Alain Tanner. Sim, “Dans la Ville Blanche” poderá não ser a sua obra maior, mas é de facto o seu mais reconhecido e apaixonado trabalho, e possivelmente um dos primeiros olhares “estrangeiros” a captar a essência melancólica da capital na ficção [“um dos”, para não esquecermos igualmente das aventuras e desventuras de Wim Wenders em bares decadentes do Cais Sodré durante o “Estado das Coisas”, concretizado um ano antes]. E não sei se existe maior homenagem à sua memória que vislumbrar Lisboa, mesmo que mudada dessas vestes brancas, e procurar no seu desencanto, o encanto que conquistou um suiço em passagem, devidamente impressa em película. Alain Tanner, quando a Lisboa, cidade e moça, transformou em refúgio de sonhos e de ambições.

Alain Tanner (1929 - 2022)

"Objetos de Luz": da luz nascemos, da luz morremos

Hugo Gomes, 28.08.22

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Da última vez que Acácio de Almeida assumiu a realização, foi há 47 anos num acontecimento cinematográfico denominado de “As Armas e o Povo”, a colheita de emoções e a transição de um país novo vivendo as orgásticas comemorações do 25 de Abril e do primeiro 1º de Maio. Mesmo “não creditado" ele esteve lá, porém, apesar do longo hiato, de Almeida não esteve longe do cinema, pelo contrário, bem perto, presente e criativo. Não é por menos que se tenha vangloriado o estatuto de lendário diretor de fotografia da cinematografia portuguesa, o seu percurso é também uma recolha de experiências, impressões e dedadas digitais. 

Em Acácio de Almeida existe um cinema seu, tão seu como dos que assinaram os créditos de realização. Portanto, é com 47 anos em “segundo plano” (as aspas importa para desfazer o literal sentido, como se no cinema existisse hierárquicas artísticas, apesar de encontrarmos nela uma pirâmide composta por capitães e sargentos, assim como praças, já dizia Joaquim Pinto em “E Agora? Lembra-me”), entre Macedo a Oliveira, Cunha Telles a Azevedo Gomes, Villaverde a Costa, ou Silva Melo a César Monteiro, que regressa com uma direção da sua (co)autoria. Só que não é um filme. Quer dizer, é um filme, uma metragem, uma expressão traduzida em imagens anexadas a palavras, é um trabalho como manda a bitola cinematográfica, não vamos destroçar o Cinema como algo padronizado. O que realmente quero dizer é que Acácio de Almeida elabora ao longo de 60 minutos uma reunião, quer de amigos, colaboradores, rostos e mãos que lhe teceram o cinema tão dele como nosso, e através desse círculo de “conhecidos”, começou a falar. Ou talvez seja a deambular, pelos seus pensamentos, as reflexões de cinema que “pintou” e mais do que isso, na combustão desse seu universo - a Luz. 

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Trabalhar a luz, é como trabalhar os signos da vida. É ser Deus por um dia, ou melhor, por uma rodagem. É questionar a nossa existência. É ceder ao reduzido da nossa insignificância. Para Acácio de Almeida, não somos mais que “Objetos de Luz” (o título revela mais do que a designação), filhos da escuridão apenas contornados pela sua antítese: “O que somos nós em relação à luz? Qual o elo que nos liga a ela?” Perguntas lançadas ao abismo, posteriormente respondidas com a confirmação do óbvio - “somos feitos de luz”. Mas a jornada até essa resposta indefinida é um questionamento da Ordem do Cinema, a dita e simbiótica corrente de todas as partes, não é mais que uma ilusão. A Luz é o centro de tudo, como do fim dos mesmos, e Acácio de Almeida pensa em luz. 

O filme (aí está a minha contradição) é inicialmente o arranque desse filosofar, presentes em encenações (Manuel Mozos, o nosso “zeitgeist” era cameo mais que esperado) ou de constatações (Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra a constatar que o tempo avança, a juventude morre e só a luz que projeta essas “memórias” imagéticas de um passado “lucidamente” imortalizado). Acácio de Almeida brinca por momentos com a sua filmoteca, mas cede ao bucolismo como via de criar um filme seu concretamente enquanto interroga o seu espaço (“O cinema é uma prisão, a prisão da memória. Aprisiona para libertar (...) fusão de tempo e de espaço. Actos de transfiguração”). 

Objetos de Luz” (não esquecer o outro “lado da laranja” - Marie Carré, a atriz, que certa vez banhou-se na luminosidade de “Agosto”, quer de Acácio’, quer de Jorge Silva Melo - também assumida como realizadora aqui) soa-nos como um espólio de ideias, e poderia ser um legado deixado, um livro que encontra sentido em filme, pronto a ser projetado através, disso mesmo, da luz. Talvez seja por isso que faça sentido nesse formato, ao contrário de uma página de papel, o filme revela-se na casa de Acácio de Almeida. A sua luz, a sua escuridão, o seu contraste e a sua criação.

Raiva de filmar!

Hugo Gomes, 01.11.18

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A evidência de uma luta entre classes em “Raiva” remete-nos sobretudo para o dispositivo de Manuel da Fonseca e o seu romance “Seara de Vento” (publicado em 1958) em consciencializar um povo para os seus mais profundos desejos políticos. Esta nova ficção de Sérgio Tréfaut, a segunda longa-metragem desta linguagem desde “A Viagem a Portugal” (2011), é um objeto curioso e subtilmente absorvido pela sua reconstituição histórica, quer a nível cénico ou até mesmo atmosférico (com graças à belíssima fotografia do veterano Acácio de Almeida).

Nessa demanda pela adaptação, o realizador opta pela raiz da matéria-prima, o neorrealismo tão em voga na década de 50, quer na literatura, quer no teatro e até cinema (os falhanços de Manuel Guimarães, realizador que de maneira nenhuma parece não conseguir reavaliar-se), Como tal, “Raiva” é puramente simbólico e possivelmente dependente desse mesmo simbolismo, o que o configura como um ensaio de ideias, a “mensagem” que o próprio Tréfaut revelou não interessar como foco propagandístico ou didático. É um filme de imagens (termo que neste momento o leitor troça o escriba devido ao óbvio da caracterização), porque são estas, despojadas da dramaturgia cinematográfica ou ditada pela mesma, que realçam toda uma veia narrativa, dentro e fora do filme. E salientando essa ausência de ênfase e epifania, Tréfaut mutila a sua criação, inutilizando-o para esse estado. Como o faz? Simples manobra, transfigura as leis académicas dos três atos narrativos, opções narrativas que vão contra ao tão chamado storytelling que uma vaga de realizadores e argumentistas nacionais tentam impor. Por outro, essa escolha decepa por completo qualquer emotividade que poderá surgir por parte do espectador, ao mesmo tempo que configura um fatalismo irreversível.

Em “Raiva”, há um espelho de uma sociedade que hoje entra em plena negação, um revisionismo histórico dos “feitos salazaristas”, ou da urgência pela preservação distorcida da luta entre classes para induzir-se numa batalha contra as instituições erguidas atualmente. Tréfaut comete essa declaração política sem o uso do mais grave das leituras politizadas, cada um encontra a sua consciência da forma como pretender.

Mas dentro desse retrato que esboça um Alentejo a passos do esquecimento, “Raiva” instala-se ainda como uma celebração das mulheres e sobretudo das atrizes portuguesas (passamos pela geração que tão bem traduz todo o nossos legado cinematográfico; Isabel Ruth, Leonor Silveira, Rita Cabaço, Lia Gama e Catarina Wallenstein). O signo feminino presente como juízos, quer finais ou motivos para os trilhos conflituosos do nosso “herói”, Hugo Bentes, o cartaz de “Alentejo, Alentejo” (o identitário documentário de Tréfaut) para as ribaltas da ficção, incentivando a sombra de um tipo de ator preciso e sobretudo inexistente no nosso leque profissional. Em “Raiva” há muito por onde olhar e refletir, uma peça discreta que vence por essa mesma discrição. Mesmo não tendo a histeria de um ativismo a ser demarcado, este é sobretudo um filme necessário para as nossas consciências.

“Em terra sem pão, o pobre nasce pobre, o rico nasce rico”