Sorrindo para a Morte, cuspindo-lhe na cara ... morrer como um ato egoísta?
Os vivos não compreendem os moribundos”
Hélène, uma mulher de 33 anos que sofre de uma rara doença pulmonar, “maleita” que lhe projetou uma vida de dias contabilizados. Essa aproximação para com a morte leva-a distanciar-se socialmente, seja de amigos, família e até mesmo do seu companheiro, sempre pronto a auxiliar-lhe os imediatos socorros. Sentindo-se cada vez mais isolada no seu apartamento em Luxemburgo, confidencia-se no painel de procura de um browser dicas de como lidar com essa morte que lhe chega a passos largos.
O primeiro resultado dá-lhe acesso a uma página motivacional com hurras viradas para os céus, com agradecimentos ao divino ou aceitações quase transcendentes da sua condição. Uma foleirice, pensou ela, partindo para um outro resultado, desta vez um blog de alguém sofredor de um cancro algures no intestino, os dias são-lhe igualmente restritos, cheios de dor, porém sem agradecimentos a entidades extra-terrenos, somente uma página de fotos várias, sem ligações umas com as outras, acompanhados por legenda irónica sob a assinatura de “Mister”. Hélène ficou fascinada pela personagem ali espelhada, uma figura que, mesmo com face voltada ao ceifeiro, brinca com a sua situação como uma piada mortal se tratasse.
Até porque o humor, como defende o humorista Ricardo Araújo Pereira nas muitas badaladas e publicadas edições sobre essa sua tese / obsessão, resume-se a uma consciência da nossa própria mortalidade. Vista a ‘coisa’, aquele homem tem a perfeita noção de que vai morrer, e mais, sabe que a morte não trará qualquer redenção, não será branda, irreversível nem sequer um castigo de outros aléns, para Hélène é esse comportamento que procura, e não só … Em breves conversas via Skype, descobre “Mister” como um residente nas Fiordes noruegueses, pede-lhe refúgio, um outro cenário para o seu fim, e após um parecer positivo parte sem o seu marido, este opondo, porém só a resistência ficou-lhe. Morrer sozinha, abraçar o seu destino, ter essa ilusão de controlo.
Em “Plus que jamais”, a realizadora e argumentista Emily Atef percorre a dimensão performativa do corpo de Vicky Krieps, atriz que tem dado nas vistas desde a sua ‘revelação’ em “Phantom Tread” - sombreando o metódico Daniel Day-Lewis no seu anunciado derradeiro papel - possivelmente é através dela que nasce o filme, algo dorido reluzindo no seu olhar e movimentada sob a destreza do falecimento. É sobretudo um palco de atriz, estas Fiordes filmadas sem o único usos de drones (salienta-se o esforço na atualidade cada vez mais cedida à maquinização desse engenho), da sua entrega corporal, desde a mimetização de um terminio em forma humana até ao sexo, essa funcionando como uma agridoce despedida ao mundo dos mortais e a todos os laços que a vincam nesse domínio. Krieps passa a mensagem de Atef, que por outras mãos soaria a intenção priveligiada de priveligiados, tentando relegar sofrimentos a classes ou a agendas. Por outro lado, “Plus que Jamais” resolve-se arrojadamente como um anti-discurso motivacional ou de no oposto das crencices pró-vida, é morrer numa aceitação atroz, a vivência como uma passagem a ter na consciência.
Recordamos aquela constatação de consultório em “Donnie Darko” (Richard Kelly, 2001), onde o homónimo protagonista aceita a solidão como o último abraço da vida (“Every living creature on Earth dies alone”). Aqui, é o último suspiro, funcionando como um conflito ao estabelecido numa sociedade ocidental, até porque pensamos demasiado na morte mas nunca em como lidar com ela, seja direta ou indiretamente. Coincidência cruel, este é o último de Gaspard Ulliel (1984 - 2022), aqui encenando o fiel à moribunda, o ator despede-se da tela numa procissão ao seu próprio destino, deixando Krieps induzida na sua adocicada fantasia mortal. Pois é, a vida é por vezes maldita, de um humor cerradamente escuro com direito à sua indigesta punchline.