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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Sob o piano, tristemente, vive-se o Tempo Perdido

Hugo Gomes, 10.04.25

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Do cinema, o tempo é matéria maleável — bem o sabemos — sem demarcações óbvias para além da esquadria mainstream, que deseja separar o passado da narrativa corrente como uma forma de proteção à sanidade do espectador, aí incutindo um fail-safe (esse dispositivo tão caro às novelas, onde a coerência do que já se conhece reina com ambição). André Gil Mata resiste a isso — a esse tempo em estágios — e, tal como o tempo que demora a “despir” uma casa, e nele encaramos uma tensão algo eçaiano em prol de um preconceito coletivo. Contudo, é nesse virtuosismo técnico, que vai além dos planos em constante movimento cénico, que se instala uma história de fantasmas. Fantasmas arrependidos, compreende-se, ecoando nessa casa semi-habitada, mas rica em memórias — intrusivas, até. Pelo que se indica, a inspiração encontra-se na avó e na sua empregada, no que as une e no que as separa, nessas correntes invisíveis transfiguradoras num conceito de cinema belatariano: o tempo como inimigo natural, e nós, espectadores, vencidos pela aliança do realizador para com esse tempo.

Esconde-se no ‘não-dito’, no canto que o Sol ilumina por via da janela como aprovação de um novo dia, ou no reflexo do espelho de quarto com mais sapiência que os viventes, em "Sob a Chama da Candeia", regista-se aquilo que de tão português o nosso cinema tem assinalado — no colo dos nossos avós, como uma intenção de dali provocar o cinema que conhecemos. Recordo Gil Mata em "Drvo" (2018), na obscura Sarajevo, rio acima num esconde-esconde com um inimigo tão de perto quanto de longe. Recordo essa experiência de cinema em que só a sala era capaz de exaltar tais imagens, tais cores e as suas ausências, os espectros e as assombrações. Em "Sob a Chama da Candeia", o registo é semelhante — a sala é o que o filme exige como obrigação — mas, ao contrário da longa anterior, é no conforto, e não no risco do seu possível estrangeirismo, que o notamos agora.

É uma experiência, de facto — mas ao invés de nos arrancar do lugar para o desconhecido, conduz-nos a um efeito quase de autognose enquanto espectadores. Tão “portugalmente” certeiro, talvez, e mesmo assim, é a prova de que Gil Mata é um realizador que anseia preencher paredes e todos os cantinhos daquela casa particular, convertendo-a em matéria de cinema — tal como o tempo, essa velha inimizade.