Simão Cayatte: "o meu trabalho enquanto realizador é muito privado"
Joana Santos e Rúben Simões em "Vadio" (Simão Cayatte, 2022)
“Vadio” foi uma das estreias nacionais deste ano, marcando a transgressão de Simão Cayatte, do reino das curtas, para a sua primeira longa-metragem. Uma ficção de longa gestação sobre um país em período de seca extrema, e não somente em condições climatéricas, como também em termos político-sociais. Num Alentejano austero, um adolescente (Rúben Simões) une esforços com uma mulher misteriosa e ferida (Joana Santos) para encontrar o paradeiro do seu pai, que o abandonou e que mesmo assim hipótese negada pelo jovem. Um “400 Golpes” à portuguesa, sem novas vagas e Balzacs, onde o desamparo das suas personagens concentram a inevitável fonte dramática deste filme.
Conversei com Simão Cayatte sobre o projeto, expandido pelo seu trabalho enquanto argumentista, ator e ainda produtor, um dos responsáveis pelo resgate do “realizador maldito” Richard Stanley.
Deixa-me iniciar com uma espécie de fact-checking, o argumento deste filme teve aprovação em 2016, certo?
Teve apoio do ICA em 2016 e depois o luso-francês, se não me engano, que complementou a montagem financeira em 2018.
… e em 2019 terminou …
Exato, só em 2019 pude filmar.
E depois deste hiato, o filme estreia em 2023, e mesmo assim, o seu pano de fundo mantém-se presente nos nossos dias, refiro à questão das secas, que ainda hoje abalam o nosso país e pelos vistos não há maneira de abrandar. A sua sociopolítica é também ela representativa dos dias de hoje, mesmo que, tal como deixa subtilmente saliente numa televisão ligada algures na ação - a voz de Pedro Passos Coelho - dando a entender o seu período. “Vadio” decorre nos tempos da Troika?
É, o filme passa em 2012, durante a crise. Essa é a única referência contextual até porque não queria sinalizações muito concretas a nível de datas ou assim, mas é engraçado falar sobre a questão da seca porque as pessoas têm se focado bastante nas personagens, o que é natural, mas por trás há uma falta de água, que é aquilo que abre o filme, uma seca profunda, que é um tema, infelizmente, cada vez mais atual.
E não é meramente uma seca física.
Não, não. É também a da proveniente da alma.
E temos aqui duas personagens marcadas, cada uma, por uma ausência, e não é só o que têm em comum, ambas estão em constante fase de negação para com esse vazio. Ele, André, o pai o abandonou e ela, Sandra, está em negação pela questão da filha, ou seja negando o seu negligente, assim sendo. Até que ponto esta improvável aliança não é uma forma de preencher os seus respectivos vazios.
É verdade. Não sabemos até ao final do filme se o pai o abandonou realmente. Como também nunca saberemos se foi um ato de negligência ou não. Temos a versão da mãe da Sandra e temos claramente uma pessoa que errou. E pode eventualmente ter sido negligente, mas que ao mesmo tempo onde se coloca a questão, vale a pena a crucificação pública que ela sofre? Vale a pena ser despedida do seu estabelecimento? Vale a pena a guarda da filha ser retirada pela própria mãe? Portanto, são estas as questões para mim mais importantes em relação ao que diz respeito à personagem da Sandra. Mas sim, são um pouco a boia de salvação um do outro. Nem que seja num nível mais simétrico. Ele procura um pai. Na realidade, acho que ele procura realmente uma mãe. E é isso que o André procura na Sandra. E é impossível, não é? Porque são pessoas que pertencem a mundos muito diferentes. Ela não sabe dar e ele não sabe receber. Portanto, eles estão o filme inteiro, no fundo, à luta.
Deixemos de parte essa disputa pugilista, que os protagonistas de “Vadio” defrontam até que finalmente conciliam, gostaria que me falasse sobre os desafios deste avanço na primeira longa-metragem, visto que trabalhou várias vezes em Curtas. Aliás, refere-se usualmente que você foi a pessoa que descobriu a atriz Alba Baptista [“Miami”, 2014].
Sim, é o que dizem por aí! [risos]
Sobre os desafios que teve ao avançar numa longa metragem?
Passar para uma longa, em primeiro lugar, é a questão de sprint versus maratona. Uma curta acaba-se em seis dias, ou sete, na pior das hipóteses, e aqui [“Vadio”, longa-metragem] estamos a falar de seis semanas ou mais. Neste caso filmei durante seis semanas, com seis dias de rodagem e um dia de descanso. E num contexto bastante violento a nível de calor e de... E pronto, e estar longe de casa e essas ‘coisas’ todas. Agora, com preparação, tudo se faz. Estive rodeado de uma equipa enorme e de grande talento. Nádia Henriques na arte [direção artística], Olivier Blanc no som, o Bartosz Swiniarski na fotografia, Lucha d'Orey no guarda roupa, a Olga José na maquiagem, Angela Sequeira [assistente de direção], Teresa Font [edição], e por aí fora. Não é um trabalho que se faz sozinho, e sim em equipa, obviamente coordenado, mas senti-me mais que tudo preparado.
Simão Cayatte
E visto que foi … quer dizer, neste caso, ninguém o deixa de ser … um ator e que trabalhou com cineastas como o Werner Schroeter, no "Esta Noite" [“Nuit de chien”], ou com o Ivo Ferreira no "Cartas da Guerra", belíssimo filme aliás. De certa forma, adquiriu com essa experiência, ferramentas que foram possíveis para este filme?
Cada vez que estou em platô aprendo sobre o que é que é representar. Quanto às ferramentas, não tanto. Acho que cada realizador tem o seu método. Talvez inconscientemente vá bebendo coisas, mas o meu trabalho enquanto realizador é muito privado. Agora, no meu trabalho como ator, acho que vou crescendo e ajustando. Ainda este ano, atuei logo a seguir nas escrita, o qual foi muito interessante esse saltitar de uma coisa para a outra. Aconteceu com a "A Sibila", realizado pelo Eduardo Brito, que penso que estreará este ano. E o que acontece é que cada vez que trabalho como ator sinto que fico a compreender um bocadinho melhor os atores e isso permite também conseguir falar com eles de igual para igual. Sinto que nunca é real. Não é realmente de igual para igual, mas pelo menos … esforço para tal.
Uma pergunta assim, distante do filme. Trabalhou como “script doctor” na produtora do Darren Aronofsky …
Não trabalhei como “script doctor", e sim como “script reader”. Na altura era jovem demais para ser “script doctor”. Hoje em dia já faço esses trabalhos.
Alguém colocou na sua biografia que trabalhou como “doctor”, mas já agora que é um “reader”?
Na indústria americana o que acontece é que as várias produtoras de cinema contratam, normalmente jovens que estão a começar, mas que tenham experiência de argumento ou que tenham estudado na universidade de argumento, ou assim, contratam para serem readers, ou seja, as produtoras têm sempre muitos guiões a entrar lhes pela caixa de correio, de coisas que podem vir a produzir. E o Aronofsky, para além de fazer os seus filmes, também produz. Produziu, inclusive, o “Jackie” e outros filmes. E chegavam guiões todos os dias. E cabe a alguém ler esses guiões e, no fundo, recomendá-los ou não. Então, até havia alguma responsabilidade. Eu lembro de ler uma versão muito precoce, de 2011, do “The Revenant”, por exemplo, era um guião ainda muito diferente, mas que foi parar ali à Protozoa [produtora de Aronofsky]. E então foi um trabalho super útil porque ler 5 a 6 guiões ou mais, talvez 10 guiões por semana, assim, durante um ano, é um treino daqueles.
O “script reader”, é o que recomenda, e o “doctor” é aquele que, mais ou menos, encaixa as "pecinhas" que estão fora?
É curioso fazeres essa pergunta porque de facto cá ainda há pouco. Tenho executado, sobretudo, lá fora, e vou agora fazer cá com uma produtora nacional e não está longe da função que tenho muitas vezes também enquanto tutor. Eu dou aulas de guião para o Le Groupe Ouest que estão ligados ao Less Is More, mas um “script doctor” é, no fundo, um consultor. É muito comum nos EUA. Pode acontecer numa fase inicial de tratamento, como pode acontecer quando o guião já tem uma ou duas versões, mas é alguém que é contratado para dar uma olhada de fora e fazer uma análise do guião e, em muitos casos, sugerir alterações.
Muito bem, para não desviar mais, a questão é que tem experiência com o guião e a força do guião, e neste mundo, ou melhor, a realidade portuguesa, deparamos com o improviso e a liberdade criativa dos atores quanto aos seus desempenhos. Visto pertencer a um território oposto, e ao mesmo tempo trabalhar como ator e, neste caso, como realizador, como consolida esses dois mundos na direção dos seus atores?
São dois lados da mesma moeda. O ator e o argumentista estão interligados porque ambos trabalham com ações, com verbos e um bom argumentista sabe que um ator tem que tornar aquelas palavras suas principalmente. Não me preocupo com o puritanismo de que cada palavra deve ser dita e daquela e determinada maneira. E um ator precisa de um bom texto dramático. E outras pequenas ‘coisas’, por exemplo, acredito que um argumentista deve ler aquilo que escreveu em voz alta. Por vezes há a tendência de escrever, escrever, e só no confronto com os atores é que se apercebe o que escreveu. Eu como também sou ator tenho por âmbito ler alto o que escrevo, porque no fundo um guião é um guia, são palavras escritas num papel para depois transformarem-se, sair da boca de um ator como algo orgânico. E é isso, custe que custar, as palavras devem ser orgânicas e verdadeiras. Ponto final.
Existem muitos realizadores cujo argumento é sagrado, não há volta a dar. Porém, e tendo em conta a conversa que tenho com outros realizadores, principalmente na área de cinema, é que o argumento é desvalorizado, muitíssimo maleável ou até mesmo descartável na sua integral natureza.
O que acontece é que tens muitos realizadores que escrevem os seus próprios filmes, mas julgo que a situação da classe dos argumentistas está a mudar em Portugal, resultado da grande procura para as séries de televisão ou das plataformas de streaming.
Algo que encontrei em “Vadio”, principalmente no protagonista, André, é possui o espírito de um “400 Golpes” (“Les Quatre Cents Coups”) de Truffaut, uma espécie de Antoine sem Balzac.
Não foi uma influência direta, mas fico lisonjeado com a invocação. Eu conto a história de um vadio, e em certa maneira, os “400 Golpes” é a história de um “pequeno vadio”. Essa falta de um herói, essa solidão, esse abandono, encontra-se muito presente em ambos os filmes, penso que por aí que começa e acaba a comparação entre este pequeno filme e o génio do Truffaut.
Color Out of Space (Richard Stanley, 2019)
Novos projetos?
Já estou a trabalhar numa próxima longa, ainda estamos na fase de escrita, irei começar a filmar neste verão, será para televisão … de momento não posso dar mais pormenores.
Tenho uma curiosidade sedenta que preciso que você me sacie [risos], visto que co-produziu o “Color Out of Space” de Richard Stanley, como foi trabalhar com o …
Nicolas Cage? [risos]
Não, não, mesmo com o Stanley? Eu vi aquele documentário sobre o “acidente” da “A Ilha do Dr. Moreau” [“Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley 's Island of Dr. Moreau”] e fiquei curioso.
Com o Stanley foi inacreditável! [risos].
Portanto, o meu trabalho na produtora SpectreVision foi sobretudo a escolha do país. Recebi um telefonema da Elisa Lleras, que produziu uma das minhas primeiras curtas [“A Viagem”], a perguntar-me se este projeto seria exequível ser rodado em Portugal [em Sintra]. Respondi “obviamente que sim”, expressando vontade imensa em trazer este filme para o nosso país … o resto, logo se via. Depois fiquei encarregue da formação da equipa, e estava tudo a correr bem com uma só excepção - o realizador não chegava!
Nesse momento, o Richard Stanley estava a viver no meio dos Pirenéus, numa pequena vila onde há a maior confluência de teorias da conspiração do Mundo [risos]. Estamos a falar de panóplia que vai desde OVNIs a Templários [risos]. Mas a verdade é que ele não chegava, nem por nada, então literalmente tivemos que o ir buscar. Fomos de carro, eu e o Josh Waller, o outro produtor, e subimos os Pirenéus pela noite dentro, sem saber o que encontrar ou se o iríamos encontrar. E assim deparamos com ele naquele sítio, do qual não recordo do nome. Possivelmente estava com “cold feet”, como dizem os ingleses, ou seja medo visto que não filmava há muito tempo, mas de resto foi um verdadeiro “gentleman”, impecável, com uma visão abrangente.
Foi uma questão de ajudá-lo a adaptar-se em Lisboa, e encontrar um “match” certo para o storyboard, o qual percebi que não era um storyboard convencional e sim algo mais próximo dos comics. A minha função foi mais ou menos essa, pegar em alguém para ajudar a trazer todo aquele imaginário em imagens.
E o Nicolas Cage? Como integrou o projeto? Caiu de “páraquedas”?
O Nicolas Cage havia trabalhado no “Mandy” do Panos Cosmatos, também produzido pela SpectreVision, o qual traduziu numa espécie de renascimento seu, pelo menos naquele género de filmes, estreou em Cannes e foi uma “bomba”. Cage sempre expressou vontade em voltar trabalhar com a produtora, pelo que esta tinha o filme do Richard Stanley na gaveta, e o ator prosseguiu até porque queria trabalhar com o realizador, o qual tinha grande admiração e sentia que fora um autor atropelado pelos infortúnios e negado à carreira que bem merecia. Portanto, juntou-se estas duas forças e assim aconteceu …