Será que o androide sonha com a burocracia?
Muito se discute, e de forma cada vez mais frequente, sobre os benefícios e malefícios da I.A., bem como sobre as transformações que ela inevitavelmente trará ao nosso mundo. Entre estas discussões, surgem temas como postos de trabalho, empregabilidade, população ativa, conexão, empatia e, ainda que com menor ênfase, a burocracia. Esta última, uma característica profundamente humana, parece ser um domínio onde apenas a carne e osso da nossa espécie é capaz de sustentar algo tão labiríntico, procrastinador, inseguro e, por excelência, kafkiano.
"Robot Dreams", do espanhol Pablo Berger (uma adaptação da graphic novel de Sara Varon), é uma história sobre amizade entre um cão antropomórfico e um robô, adquirido para mitigar a corrosiva solidão do protagonista, é uma espécie de “Zootopia” que deu certo. Trata-se de uma animação com o coração no sítio certo, mas que se destaca sobretudo pelo seu retrato da burocracia, que é o motor narrativo das peripécias que tanto nos deleitam.
Tudo começa com o nosso “bobi” a levar o seu autómato para todo o lado: pelo Central Park, pelas ruas de uma Nova Iorque alternativa (onde a presença das Torres Gémeas no horizonte nos transporta para uma dimensão paralela) e até aos banhos em Coney Island. Num último dia de época balnear, os dois improváveis amigos banham-se sob um sol abrasador e nas águas cristalinas do mar. Mas a ferrugem, essa velha e implacável inimiga, transforma o corpo artificial do robô num peso morto, incapaz de se mover. Por mais esforços que o cão faz, nem um centímetro consegue arrancar. Regressa a casa, frustrado, e com óleo na mão aguarda pelo primeiro autocarro do dia seguinte para resgatar o amigo metálico. Mas, à chegada, depara-se com a praia encerrada. Época balnear só para o ano, informa um aviso.
O que se segue é um desfile de tentativas desesperadas. O cão tenta alcançar o robô de todas as formas: solicita uma licença na Câmara, que lhe é negada; tenta saltar a barreira, mas é apanhado em flagrante pelo segurança símio (porque é um gorila mesmo); acaba com um mugshot e cadastro. Resta-lhe, então, esperar um ano. Mas como preencher esse período de espera? "Robot Dreams" explora, de forma subtil e quase subliminar, como a burocracia nos empurra para caminhos paralelos: medo, traição, decepção ou pura impotência.
Será que as máquinas abolirão este sistema de adiamentos e complicações? Enquanto refletimos sobre essa possibilidade, Pablo Berger conta-nos uma das histórias mais ternas possíveis, sem recorrer a um pingo de diálogo, exceto pelos jingles que se infiltram na quasi-diegese (com “September”, de Earth, Wind & Fire, a destacar-se como um autêntico tour de force), o realizador continua a aprimorar a ciência do silêncio que havia experimentado na ficção do mudo mimetizado “Blancanieves” (2012). É uma animação com cabeça, tronco e membros, que versa sobre solidão, amizade e as muitas vicissitudes da clássica “história da carochinha”.
Mas por detrás desta ternura, contudo, pulsa um subtexto mais denso, reminiscente de Isaac Asimov ou Philip K. Dick: "Robot Dreams" e "Do Androids Dream of Electric Sheep?" respectivamente. Não há Blade Runners aqui, mas sim o questionamento sobre a capacidade de uma máquina sonhar — ir além da consciência, alcançar a subconsciência, o derradeiro efeito Turing. É através desses “sonhos” que somos confrontados com fail safes, esses incómodos narrativos que desafiam as audiências e as suas percepções do narrador credível. Podemos continuar a confiar nos narradores das histórias animadas? Ou essa confiança é também condescendência para com o género? O que mais desejam, no fundo, é escapismo — e talvez, apenas talvez, também nós ansiamos por fugir desta prisão a que chamamos burocracia.