Será que as tartarugas também amam?
Feita uma pausa na dedicada procissão ao inventário artístico e intelectual de Pedro Costa, Júlio Alves encena a novela de Mário de Carvalho - “A Arte de Morrer Longe” - um “Marriage Story” à portuguesa, constrangido e dotado de um senso de absurdo que passa por representação da espuma dos nossos dias.
Aqui, o casal Arnaldo e Bárbara (Pedro Lacerda e Ana Moreira) colhe os frutos da negligência aos seus “felizes para sempre”, sintetizando que em “terra enfadonha” não existe príncipes encantados e como tal, a separação soa-nos um golpe de misericórdia ao suplício de uma relação moribunda. O processo formaliza-se como um inventário (aliás, outro para a carreira de Alves) - “da cozinha podes ficar com o microondas” - até que alguém menciona o “elefante da sala”, mais precisamente outro animal a assumir o silencioso e embaraçoso ícone do conflito: uma tartaruga.
O pequeno e singelo réptil é a partir daquele específico momento a exaltação de um necessário final de compromissos, possivelmente a última em que o “casal” terá como tomar enquanto … isso mesmo, casal. Porém, através de debates para apurar quem “fica com o ‘bicho’”, ou de quem o “‘bicho’ é propriedade”, que Arnaldo e Bárbara conformam-se em unir ao derradeiro destino do animal, naquele, aparentemente, simbólico e pequeno gesto, uma emancipação dos mesmos, o direito da sua respectiva individualização (possivelmente o digno final do casal, esse conjuntivo social o qual se empreenderam anos e anos).
“A Arte de Morrer Longe” é uma tragicomédia que embarca na alegoria do quelônio, o medidor de tensão arterial a uma relação, prescrevendo-a a um digno final, mais do que a consolidação. O desfecho será visto como acesso à independência social. Enquanto isso, a jornada doméstica destes seres não habilitados para com o anterior animal de estimação é tido num visual respeito quanto à sua privacidade, dito isto são os constantes planos engendrados em que Arnaldo e Bárbara mantêm-se, de alguma forma, separados e retidos para com o seu redor, a solidão por ambos emanadas traduzir-se em “gravidades” próprias (bem presente devaneios oníricos que aludem a essa, cada vez mais, distância para com o estabelecido conformismo), apenas intercalados por grandes planos da tartaruga, cuja natural vagarosidade do animal transfere uma certa indiferença ao conflito do casal.
Dito isto, Júlio Alves converte-se num certificador da imaginária e criada “ordem de restrição" decretada pelas personagens, e sem barricadas, indicia um invulgar trilho de superação para ambas. Os atores, por sua vez, são cúmplices dessa entranhada e voluntária melancolia. O que existe depois do amor?