Segunda Chance para a Terra Queimada
Foi no início deste ano que experienciamos nas nossas salas a balada de um foragido que, de forma a desaparecer, tenta diluir-se no meio natural em “Alva”, a primeira longa-metragem do português Ico Costa, enquanto neste galego “O Que Arde” evidenciamos uma negociada trégua entre um homem e o meio natural agredido por este. É a história de um incendiário “acabadinho” de concluir a sua sentença, regressando à sua “casa” para restabelecer a sua vida “interrompida”, ainda na companhia da sua idosa mãe. Nesta sua reconciliação com o espaço que violentou, o tal protagonista (Amador Arias), tenta reaver a confiança, em jeito de convivência com os seus atos passados.
Oliver Laxe, que há uns anos estreava na Semana da Crítica de Cannes com a viagem esotérica na cordilheira de Atlas, em “Mimosas”, separa-se do seu predileto Norte de África e filma a Galiza, do qual é oriundo, com igual exotismo. A veia algo mística perdura nesta demanda de readaptação, aliás, existe um constante gesto xamânico na maneira como o realizador extrai da realidade (as personagens incorporadas por não-atores, os espaços e os seus eventos ainda prevalecidos), desconstruindo-as e refletindo-as perante uma criatividade ficcional. E é como tal que voltamos a “Alva”, não pelo filme em si, e sim pelo movimento (duradouro aliás), que se insere – a docuficção. Conhecemos (nós, portugueses) tão bem esta arte e, sobretudo, esta ruralidade documentada e, mesmo assim, ficamos deslumbrados com as possibilidades ainda restantes de manejo da mesma. Em “O Que Arde” somos incentivados a uma verdadeira prova de fogo ao uso e abuso do realismo e da sua realidade, transformando em matéria minimalista que, enquanto ficção, contraria as clássicas etapas narrativas.
A narrativa, essa, deriva da deambulação de Amador Arias no seu renovado biótopo, o qual cede à sua projetada metamorfose para nos dar um homem reabilitado. Porém, a natureza envolta fará as suas partidas, servindo de analogia ao próprio foro emocional desta “criatura”, onde o espectador encarará como seu iminente carrasco perante o seu dúbio destino. Ao seu lado, a anciã Benedicta Sánchez (que interpreta a mãe de Amador, e curiosamente vencedora do Prémio Goya de Revelação aos 82 anos com esta produção) preserva com graciosidade o naturalismo exato e pretendido por Oliver Laxe. Ela é a figura central, a verdadeira “parceira do crime” para o tom requisitado do cineasta. Uma musa!
Fora essas jogadas nos limites da metodologia do cinema, “O Que Arde” confirma o realizador como um observador nato da beleza paisagista, sendo esta a recortada moldura destes pedestres ocasionais assim como acontecera em “Mimosas”. Contudo, não nos levem a mal as comparações com “Alva” e toda a docuficção portuguesa engatada (apesar de hoje existir alguns ensaios de notável sensibilidade, mas isso não é o caso), até porque este filme é uma pequena jóia dentro desse mesmo universo. E apropriando da sua analogia, Oliver Laxe é um pinheiro num denso eucaliptal ao som de “Suzanne”, de Leonard Cohen. Pois, soa abstrato… naturalmente abstrato!