Se a montanha-russa não vai a Pedro, não vai Pedro à montanha-russa
La Morte Rouge (Victor Erice, 2006)
No célebre "Filme que em Portugal tem de ser intitulado outra vez", o detetive John "Scottie" Ferguson perde o medo das alturas quando Judy, que afinal era Madeleine, que afinal era Carlotta, que afinal era Kim, morre outra vez. Sempre que revejo esse filme (que não era o melhor de sempre, que afinal passou a ser, que afinal voltou a não ser), fico com imensa pena de Scottie. Pois, como o cavalheiro chega ao fim da história sem a couraça das vertigens, vai por certo tornar-se um leviano e expor-se a todos aqueles riscos indecorosos que só nós, do alto da nossa acrofobia, sabemos devidamente reconhecer e, em consequência, evitar.
Nunca gostei do medo. Para cumprir o mandamento novo "Sai da tua zona de conforto!", limito-me a abandonar o sofá e a sentar-me na cadeira um pouco mais dura da mesa da sala, onde só me permito deglutir alimentos que estejam dramaticamente assassinados, tragicamente cozinhados e em absoluto fora da zona de influência dos militantes da entomofagia. Como Alexandre O’Neill, não me sinto suficientemente conde para querer corar com uma insígnia, muito menos a da coragem. E também nunca procuro descobrir a minha verdadeira natureza ao ser posto à prova numa situação-limite: não tenho os sete pés necessários para fugir com a graça de um Fred Astaire. O medo simplesmente não me atrai (chamem o Freud, se quiserem: disso não tenho medo).
O próprio Hitchcock nunca me apanhou por esse prisma. Conhecedor das rigorosíssimas estatísticas que provam que o tráfego rodoviário comporta muito mais risco de morte do que o cuidado com a higiene, tenho muito mais medo de ver a Janet Leigh a conduzir do que a tomar banho. Não, o Englishman in Los Angeles interessa-me na medida da sua ininterrupta erupção de formas audiovisuais que sempre convergem para nos falar da necessidade do negrume na formação ou solidificação do par amoroso. Aí, sim, Toto, I’ve a feeling we’re in Kansas again…
Não estou nisto em consonância com os meus parceiros de quarto escuro. Ao que parece, o filme de terror é uma das ervas daninhas, perdão, um dos géneros que mais tem crescido (numericamente falando, claro) ao longo da história do cinema, afugentando quem gostava mais de cantar, de namorar com estilo ou até de usar as imagens fúngicas, mas não fungíveis, da guerra para combater a bactéria da guerra real que, como se sabe, se tem revelado multirresistente (sobre isto, não haja grandes ilusões).
Cada vez que vejo um filme cujo desígnio é meter-me medo, eu fico efetivamente transido de medo (pois, como recusar uma oferta calculadamente elaborada para ser irrecusável?), ao mesmo tempo que um outro, que é eu, despreza aristocraticamente a infantilidade e a tacanhez daqueles truques que, numericamente falando, não dariam para mais do que um rato perante a montanha do Kama Sutra. Sempre dei bolinha preta àquele monstro debaixo da minha cama que é especificamente devido à infinita mediocridade do cinema.
O mais curioso é que, se um meliante me colocasse diante da célebre alternativa “o teu filme favorito ou a vida”, transido de medo, eu diria: “O espírito da colmeia”. Ora, a obra-prima ficcional de Victor Erice narra precisamente o efeito que, na Espanha após a sua Guerra Civil, um filme de terror tem sobre uma criança, fazendo-a intuir que os moinhos talvez sejam muito mais assustadores do que os gigantes. Por que carga de água ou vinho é que eu consigo tomar esta evocação do elo entre cinema e medo como estrela polar?
Julgo que a resposta é dada pelo próprio Erice em “La Morte Rouge”, uma curta-metragem ensaística que ele estreou já no presente século. Ao colocar a situação narrativa de “O espírito da colmeia” sob a aparência da autobiografia, a evocação do medo que se terá entranhado num menino após o visionamento do filme “A garra vermelha” é filtrada pela música de Federico Mompou. Em busca desse tempo que para si nunca se perdeu, Erice já não consegue fazer-nos sentir a ameaça das mãos assassinas do filme que o traumatizou, tem menos poder para as mostrar como sombras expressionistas do que como garras melancólicas extraindo sons sem alvoroço de um piano, algures numa casa vizinha. O medo já só sobrevive como memória distanciada. Pensada. E assim também acontece, de certo modo, em “O espírito da colmeia”.
Agora a brincar, e para resumir, se o cinema quiser seduzir o meu coração pateta, pode jogar múltiplas cartas: beleza, humor, erotismo, compaixão…Sou Anna, sou Elvira, Zerlina, disponível para as 1003 formas com que se desmiola um corpo humano. Já o medo que, por muito que eu não queira,é claro que por vezes também me apanha na vida(o que aí acontece, aí fica), não lhe encontro o menor travo de prazer (nem mesmo o prazer catártico da tragédia) que me convença a ir procurá-lo numa sala de cinema. O medo parece-me coisa mais séria, é para casar… com o pensamento. Chamem o Cronenberg, se quiserem: o seu método não me parece suficientemente perigoso.
*Texto da autoria de Pedro Ludgero (Porto, 1972). Trabalha como pianista acompanhador. Escreve poesia, teatro, textos para a infância e comentário sobre cinema. Até ao momento, realizou cinco curtas-metragens.