Rotações por minuto em coração português ... ou como Paulo Carneiro nos aproximou da nossa identidade
Aviso à navegação: isto não é um filme sobre "tunning" ...
À segunda longa-metragem, Paulo Carneiro mantém-se fiel ao seu processo de utilização dos objetos-estudos como pretexto para abordar um alvo latente. O mesmo procedimento no qual “capturou” a aldeia transmontana que faz do título do seu anterior filme - “Bostofrio” (2018) - uma busca dos restos memorialistas do seu avô e por sua vez redescobrir-se como garantia desse desenvolvimento.
Desta forma nasceu "Périphérique Nord” (“Via Norte”), cujo alvo transferiu-se para os automóveis, ora alterados, ora modelados à imagem do seu condutor, o património acarinhado por imensos imigrantes portugueses, essa paixão pela máquina que cobre todo um desejo de decifrar a condição desses “afastados da terra-mãe”. Tal como “Bostofrio”, Carneiro estabelece um filme expositivo quanto à sua própria construção (“os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”, parafraseando Jacques Rivette) surgindo em cena e assumindo como protagonista perante os entrevistados, grande parte deles filmados em planos gerais que reforçam um tom de “cinema verité”.
Porém, é também essa “fratura exposta” que o filme ostenta um lado aparentemente desajeitado como se estivesse em plena improvisação, intercalando com os momentos noturnos rompidos pelas luzes dominantes dos néons ou da iluminação que assinala a “presença” da bomba isolada, à lá Edward Hopper, o qual o realizador estabelece como paragem para uma segunda fase da sua demanda. São histórias que conhecemos, e como tal, a empatia é automaticamente instalada, pregando a fundo pela panóplia de sentimentos vividos por estes portugueses longe de casa, que invejam a terra que os viu nascer (e que em certos casos os renegam), e que tudo fazem para saírem sucedidos em relação aos seus sacrifícios. No fundo, Paulo Carneiro viabiliza a nossa “Portugalidade”, a identidade exaltada oriunda de um país isento de qualquer força-motora para desafiar o restante Mundo, da mesma forma, como tal repara, os Curdos, os sem-pátria, prevalecendo um feixe identitário, o património que lhes resta. O realizador faz esse paralelismo em um diálogo cuidadoso e simples como qualquer conversa de boleia, aliás, boleia essa que o guiará para o ponto de partida.
Périphérique Nord (Paulo Carneiro, 2022)
Gas (Edward Hopper, 1940) Pintura
Fotografia de Graham Miller
E é então que entramos naquele último plano: o mercado da Pontinha deixado à sua mercê no breu da noite, cartazes sobre uma Revolução passada e de heróis hoje imortalizados como símbolos de uma liberdade com promessas de unir sobreviventes de um regime e "desertores" adornam a cobertura desse espaço. A câmara prossegue o seu agendado travelling, revelando, escondido em fora-do-campo e num “know-how” antonioniano (não pude deixar de pensar naquela façanha de Jack Nicholson em “Professione: Reporter”, o flashback integrado que resgata o travelling para além da mera ostentação, do artifício) uma viatura “quitada” num pensado “pião” que desfaz o silêncio até então inviolável.
É exatamente no momento em que antecede aos créditos finais que a avaliação pesa nestes ditos “novos autores do cinema português”, se por um lado Ico Costa falhou na sua primeira longa’ (“Alva”, em 2019), Paulo Carneiro acerta na “mouche”, resumindo a sua jornada numa só cena. O 25 de Abril e a liberdade de fuga representado nos venerados símbolos, o Portugal “vazio” figurado no mercado “abandonado” e o objeto-estudo no qual se esconde esse orgulho lusitano preste a “libertar-se” das suas amarras. As imagens são a língua própria do cinema e o realizador sabe bem disso.
Em 2018, apontei Paulo Carneiro como um dos nomes promissores do nosso cinema, ao segundo filme mantenho posição.