Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

«Roman Porno»: quando o sexo é o consolo das farsas ...

Hugo Gomes, 10.07.20

152_MG_1204.jpg

“Jimunopedi ni midareru” / “Aroused by Gymnopedies“ (Isao Yukisada, 2016)

Nesta quarta parte do Ciclo “Roman Porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), seguimos por dois filmes que olham de um certo jeito trocista para dentro do seu próprio alinhamento produtivo. Eles são “Black Rose Ascension”, de Tatsumi Kumashiro, o nascimento satírico e transgressivo de uma nova estrela da pornografia (incorporada na atriz Naomi Tani) e o farrapo humano de “Aroused by Gymnopedies”, de Isao Yukisada. Em exibição no Espaço Nimas, em Lisboa.

 

- O NASCIMENTO ATRIBULADO DE UMA ESTRELA PORNOGRÁFICA -

Não é alienado encontrar no movimento "Roman Porno" um júbilo masturbatório que requer olhar para dentro da sua essência no processo logístico e criativo.

Êxtase da Rosa Negra” (“Kurobara shôten” , 1975) é uma sátira aos alinhamentos dos filmes porno-românticos. Dirigido por Tatsumi Kumashiro, esta auto-caricatura surge através de Juzo (Shin Kishida), realizador de filmes de teor lascivo algo charlatão, algo fracassado, que procura uma nova diva para as suas metragens depois de a sua atriz-fetiche encontrar-se de “esperanças”.

Durante a sua procura, que colide numa extravagante recolha de sons (o auge ocorre num jardim zoológico enquanto discute sexo com a sua “parceira do crime” sob um olhar atento de uma excursão escolar), encara uma gravação num consultório de dentista como um possível achado. Nela, é possível ouvir os gemidos de dor e contenção de uma mulher, que mais tarde saberemos pertencer a Ikuyo (Naomi Tani), que o nosso realizador perseguirá, assediará e persuadirá a participar no seu filme. O facto de esta mulher ser uma espécie de gueixa “congelada no espaço e tempo” não ajudará em nada na tarefa de conquista.

Construído em tons de comédia absurda, as contrastadas personagens são como hélices numa sátira que segue de cabeça para o retrato de um Japão dividido entre as suas entranhadas amarras tradicionais, sensualizadas, mas discretas, e a vanguarda libertina com um sedutor desejo de exposição. É um braço de ferro entre dois espectros de um só país, decorridos no auge do "boom" económico daquela época.

“Êxtase da Rosa Negra” é de um absurdismo calculado, arrojado, que adquire a sua força na igualmente caricatural montagem, quer visual e sonora, partituras que desfilam numa cadência de “desvirginação” ao som da marcha nupcial.

127591837.jpg

“Kurobara shôten” (Tatsumi Kumashiro, 1975)

 

- O COITO AO SOM DE MEMÓRIAS PASSADAS -

Se a obra de Tatsumi Kumashiro assenta num dispositivo satírico para expor pornograficamente uma essência algo autorreferencial, já “Gymnopédies Escaldantes” (“Jimunopedi ni midareru” / “Aroused by Gymnopedies“, 2016), de Isao Yukisada, vira-se para a trágica mágoa de um realizador marginalizado, Shinjin (Itsuji Itao), que vê o seu filme interrompido por falta de financiamento.

O percurso deste ser soturno é outro: um luto insaciável que se “alimenta” dos corpos femininos parecem ser a sua fonte de vivência e razão pela deambulação noturna entre espaços conhecidos e desconhecidos. Mulheres são várias nesta jornada algo vampiresca, cada uma delas servindo de atalho para um outro corpo ambicionado, o da esposa de Shinjin, uma pianista, cuja melodia doce da "Gymnopédie No. 1", do compositor e pianista francês Erik Satie, é invocada sobre os atos lascivos como um ritual religioso.

Talvez “Gymnopédies Escaldantes” seja um dos filmes mais sentidos e menos reflexivos do movimento que homenageia, e igualmente um dos mais desengonçados do leque de tributos ao “roman porno”.

O tom depressivo e autodestrutivo entra em gradual embate com um jeito trocista e de hilariante enxovalhamento da personagem de Itsuji Itao. É como se nos deparássemos com o culto de um artista frustrado, presunçoso e negacionista quanto aos seus verdadeiros propósitos existenciais. A pomposa aura intelectual que deseja vestir é, por exemplo, “desmascarada” durante um "Q&A" de um dos seus filmes, ou pelas peripécias com que se aventura para saciar as suas diferentes sedes.

Este é um filme cruel para com o seu protagonista, convertendo-o numa comédia em forma humana, acorrentado a uma cinza de nojo com adiadas urgências por cumprir. A esperada (mas não desejada, nem mesmo pelo espectador) libertação acontecerá em forma de “punchline” de uma longuíssima piada mortal. É a última tirada, demonstrando que as memórias não se duplicam nem a elas se regressam imaculadamente. Isso, em conformidade com a essência de tributo de “Gymnipédie Escaldantes”, é uma mórbida autocrítica.